Porto do Mucuripe ainda em construção, década de 1940 (foto Ah, Fortaleza!)
O que teria levado Alphonse Boris a buscar o Ceará e a se integrar ao cotidiano da capital com tanto ânimo e determinação? Quando desembarcou em Fortaleza, no dia 6 de agosto de 1865, do vapor Paraná, a cidade não tinha jeito de capital. O francês deve ter passado maus momentos ao desembarcar do navio ancorado ao largo, e embarcar no bote que o traria até a praia. Acertara um ponto perdido do mapa, entre a opulência de Pernambuco e o Maranhão, que já fora França Equatorial.
A ligação do Ceará com a Europa começara desde a remessa, em 1809, de produtos da terra, e amostras de algodão para Londres. No ano seguinte, o irlandês William Wara fundaria a primeira casa de comércio exterior.
Com as ideias fora do lugar, em plena vigência da escravatura, a firma Albano & Irmão declarava aos fregueses do interior da província que não se encarregaria da venda nem do embarque de escravos. Sinal dos tempos: o Hotel de França precisava de um ajudante de cozinha e preferia que fosse livre a escravo.
Hotel de France (foto Ah, Fortaleza!)
Theodore Boris chegou dois anos depois, desembarcando no Recife e refazendo a travessia das boiadas até o Icó. Da ribeira do Salgado até Fortaleza, enfrentou uma enfadonha viagem em lombo de burro. O pretexto era conhecer melhor a terra onde se fixariam e atuariam , em 1869, com a firma Theodore, Boris & Frères.
Em 1867, Fortaleza inaugurava sua biblioteca pública e o arquivo da província; Dom Luiz Antônio dos Santos, primeiro bispo do Ceará, investido em 1861 viajava para Roma, e o Seminário da Prainha formava as elites desde 1864. A água encanada jorrava das torneiras de cobre e inaugurava-se a iluminação parcial da cidade e de alguns edifícios, como o Clube Cearense. A Associação Comercial tinha sido fundada no final deste ano.
Nunca ninguém buscou tantas oportunidades e soube criar tantos negócios como os Boris, apontando em uma globalização avant la lettre (antes de o termo existir), visto que eles haviam estabelecido a matriz em Paris, a capital do século XIX.
Naquele instante o Ceará vivia seu maior período sem estiagens, os quarenta anos de bonança (1846/1876), que antecipariam a seca de 1877/79, quando um quarto da população da província sucumbiria à fome e às epidemias. A primeira temporada cearense dos Boris foi curta. A guerra franco-prussiana entre 1870/1871 os levou de volta para a Europa.
Theodore retornaria em 1872, em companhia de Achille e Adrien; Isaie só chegaria em 1878. Em pouco tempo faziam parte da vida da cidade, preocupados que estavam em impulsionar a nossa economia.
O Cemitério São João Batista, implantado em 1866, obrigaria a sepultar os judeus fora de seus muros, assim foram enterrados Aron Braun, Josephine Levy, Lazare Gradvhol, e Adrien Boris. Anos mais tarde, a expansão do campo santo trouxe os excluídos para o lado de dentro dos seus muros.
A partir de 1875, o aformoseamento mudaria as feições da cidade, com a construção dos boulevards, dos jardins, de alguns prédios públicos. Fortaleza se preparava para ser capital. Isaie fez parte da comissão que negociou a participação cearense na Feira de Chicago em 1893, com direito a catálogo bilíngue, nossa primeira peça de propaganda institucional.
Os Boris foram importadores e exportadores, representaram o Banco do Brasil, operaram com seguros, trabalharam com algodão, e traçaram planos de construção de ferrovias, das serras para o sertão , como meio de escoar a produção de frutas que pretendiam vender para a Europa.
Casa Boris (foto de Mauricio Cals)
Poderosos na navegação e nos afretamentos, se fixaram no imaginário popular , como os donos do mar, esse açude sem fim. Nunca desanimaram e mesmo nos instantes mais difíceis continuavam com sua Casa, os mais velhos passando o comando para os mais novos.
Chegaram a tal grau de integração cultural que conheceram Padre Cícero, acolheram o beato José Lourenço na fazenda Serra Verde em Caririaçu (depois do massacre de 1936), e receberam na mesma fazenda , a visita de Patativa do Assaré, em 1956, que os presenteou com versos improvisados , por ocasião do aniversário de Dona Janine:
Eu vivo a pensar de cá
no senhor Bloc-Boris,
Sebastião e Assis,
e demais amigos de lá,
tudo em minha vida está,
do velho, o moço, a criança,
da terra cor de esperança,
doce passado relembro,
dezenove de setembro,
vive em minha lembrança.
O mar não é mais o açude do Boris, mas ficaram as memórias e os feitos dos empreendedores franceses nas terras de Iracema, que mudaram o sotaque, escreveram e protagonizaram uma parte da história do Estado e principalmente, de Fortaleza.
Extraído do artigo
Quando o Mar era o Açude do Boris, do professor Gilmar de Carvalho.
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