sábado, 15 de janeiro de 2022

Benjamin Abrahão - De Padre Cícero a Lampião

 

Lampião surgiu no cenário dos sertões nordestinos em 1921, quando entrou para um grupo de cangaceiros que aterrorizavam a população do sertão, comandados por Sinhô Pereira. O jovem Virgulino Ferreira da Silva, de 23 anos, teria muito a aprender, ao assumir a liderança do bando no ano seguinte, quando Sinhô Pereira, se retirou do cangaço e abandonou o grupo.




Durante anos a figura de Lampião, o rei do cangaço, que assaltava cidades e fazendas, promovia saques, matava gado e gente e escapava da caçada empreendida pelas volantes, era presente no imaginário das gentes simples do sertão e das autoridades. Até que dia esses personagens ganharam rostos, aparências e vestimentas, graças a ousadia de alguns fotógrafos, que adentraram a caatinga, em busca da confiança e das imagens desses homens rústicos, famosos pela violência que empregavam nas suas atividades ilegais.


No Ceará, o autor da façanha foi o sírio Benjamin Abrahão Calil Botto, nascido em 1901, em Zahle (na época, cidade na Síria e, atualmente, do Líbano), de acordo com familiares. Segundo o próprio, havia nascido em Belém, local de nascimento de Jesus Cristo. Em 1915, Benjamin desembarcou no Recife, fugindo do alistamento militar da sua cidade, que recrutava soldados para a primeira Guerra. Passou a morar com parentes, que atuavam no comércio de ferragens.




Depois de dois anos perambulando pelo sertão, atuando como caixeiro viajante, ele se deparou com um grupo de romeiros que ia a Juazeiro para receber a bênção de Padre Cícero. De Juazeiro tinha conhecimento de que era um ótimo local para o comércio, e do padre tinha ouvido falar nos milagres e no prestígio. Decidiu se juntar aos romeiros e partiu para a cidade dos milagres. A presença do gringo, alto e meio alourado no meio dos milhares de nordestinos, chamou a atenção do padre.


A beata Mocinha (Joana Tertuliana de Jesus, secretária e tesoureira do padre Cícero) se aproximou, a mando do padre, para saber de onde vinha o forasteiro. Foi aclamado quando disse que vinha da Terra Santa. “Padre Cícero se dirige aos fiéis e diz: meus amiguinhos, Benjamin que está aqui é conterrâneo de Jesus”. Bastaram 15 dias para Abrahão se converter e ser nomeado secretário pessoal do padre.




A morte do padre em 20 de julho de 1934, aos 90 anos de idade, deixou o sírio órfão. Todas as suas atividades e seus conhecimentos decorriam da ligação com o padre Cicero. Benjamin trabalhou para o padre Cicero entre 1917 e 1934, e após a morte deste, lançou-se em nova profissão: a de fotógrafo. Para começar, filmou o enterro do padim e ofereceu a filmagem a Ademar Albuquerque, que no mesmo ano fundou a Aba Film. Depois, procurou a empresa fotográfica para um novo projeto: uma sessão de fotos e um filme sobre Lampião e seu bando, que à essa altura já era notícia até no "The New York Times". Adhemar Albuquerque forneceu a Benjamin equipamentos e filmes, junto com as instruções de básicas de como utilizá-los.


Benjamin já conhecia Lampião porque o cangaceiro havia visitado o Padre Cícero no Juazeiro, em 1926, no polêmico encontro entre o padre e o cangaceiro que gerou muita controvérsia e acusações de que o padre protegia bandidos.




Durante 18 meses Benjamin perambulou pela caatinga, viajou pelo sertão de Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco e Sergipe, e encontrou-se duas vezes com Lampião. O chefe dos cangaceiros não apenas fez pose para a foto como chamou o bando de todo o Nordeste para se reunir nas fotos. O fotógrafo Benjamin pode registrar vários hábitos dos cangaceiros, como a reza da missa de domingo, celebrada pelo próprio Lampião, o almoço e a maneira de se vestirem e se comportarem. Revelou também que Maria Bonita, devido a uma promessa não trabalhava aos sábados, domingos e segundas-feiras. Fascinado por cinema e pela oportunidade de aparecer nas telas, muitas vezes o próprio Lampião assumiu a direção da filmagem. O resultado:  Noventa fotos de qualidade heterogênea e um filme de 35 mm (hoje restam 15 minutos dele na Cinemateca Brasileira) em que Lampião é transformado em garoto propaganda da Bayer, que patrocinou o filme.


Ao longo do ano de 1937, o material produzido por Benjamin foi divulgado pelos Diários Associados. As fotos e detalhes da vida no Cangaço foram divulgadas por diversos órgãos como o Jornal O Povo, Diário da Noite, Diário de Pernambuco, e a revista o Cruzeiro. Nas matérias escritas, sempre havia questionamentos sobre o fato de Lampião e seu bando continuar solto, já que podiam ser encontrados para fotos e reportagens




As fotografias dos cangaceiros em poses que transmitiam orgulho e segurança irritaram o presidente Getúlio Vargas, fato que impulsionou o definitivo esforço de repressão que exterminaria os bandoleiros do sertão. Além disso, o documentário sobre Lampião foi apreendido. O filme foi exibido no Cine Moderno, em Fortaleza, em sessão exclusiva para autoridades policiais do Estado.



 

Benjamin Abrahão foi assassinado com 42 facadas, em Águas Belas, hoje Itaíba, no interior de Pernambuco, em 7 de maio de 1938. Saiu do bar rumo à pensão onde se hospedava quando as ruas principais da cidade ficaram às escuras. Foi atacado, gritou por socorro e seu amigo Antônio Paranhos foi ao seu encontro, mas foi detido pela voz de um desconhecido que o avisou “Arreda, cabra, que é encrenca”. 

 

As hipóteses vão desde a possibilidade de um crime passional até a de queima de arquivo, já que ele sabia do envolvimento de autoridades com Lampião. Em sua missa de sétimo dia, só estava presente o padre celebrante, Nelson de Barros Carvalho. Com seu jeito malandro de ser, Benjamin Abrahão conviveu e ganhou a confiança de duas das figuras mais notórias da história do Ceará: padre Cicero e Lampião.




A divulgação de fotos e a propaganda sobre o Cangaço contribuiu para acirrar a perseguição aos cangaceiros, e em 28 de julho, pouco mais de 2 meses depois da morte de Benjamin, na grota de Angico, em Sergipe, o bando de Lampião foi cercado por uma força volante comandada pelo tenente João Bezerra da Silva. Além de Lampião, foram mortos sua mulher, Maria Gomes de Oliveira, conhecida como Maria Bonita, e os cangaceiros Alecrim, Colchete, Elétrico, Enedina, Luiz Pedro, Macela, Mergulhão, Moeda e Quinta-feira. Foram todos decapitados.


As cabeças decapitadas dos cangaceiros, após exposição nas escadarias da prefeitura de Piranhas em Alagoas, seguiram para a capital, Maceió. De lá, seguiram para Salvador, onde ficaram no Museu Nina Rodrigues. Em 1969, as cabeças de Lampião e Maria Bonita foram enterradas no cemitério Quinta dos Lázaros, na mesma cidade.



Fontes: 

Lampião e outros cangaceiros sob as lentes de Benjamin Abrahão<disponível em> https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?tag=padre-cicero

Benjamin Abrahão, Entre Anjos e Cangaceiros. Frederico Pernambucano de Mello. Ed. Escrituras. 352 páginas.

Benjamin Abrahão, o homem que iludiu o sertão. <Disponível em> https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/benjamin-abrahao-homem-que-iludiu-sertao-482892.html

Jornal O Povo

Fotos: Brasiliana Fotográfica, O Globo, Aba Film

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Na Vigência da Lei de Gerson


Estava na fila do Correio da Av. Gomes de Matos, quando entrou um homem muito idoso, andando devagar, com dificuldade, com alguns papéis em mãos. Imediatamente, foi encaminhado para o início da fila dada sua condição de prioritário, até mesmo pelos outros da mesma condição que também esperavam na fila. Depois que ele foi atendido, acompanhei sem sair do lugar, a saída do homem, preocupada em saber se ele iria atravessar a Avenida Gomes de Matos, via onde carros e motos  estacionam em cima das calçadas, os pedestres caminham  pelo asfalto disputando espaços inclusive com ônibus, atravessam a pista correndo, enquanto a AMC (Autarquia Municipal de Trânsito), que de vez em quando passa por lá, faz de conta que não vê. 





Que nada! Na calçada, uma mulher jovem, robusta esperava pelo homem, pegou  um volume que ele retirou no Correio, embarcou-o num carro (estacionado em cima da calçada),  e levou-o embora.  

Concluí que ali estava uma fiel cumpridora da Lei: da Lei de Gerson. São muitos os que usam seus idosos ou suas crianças para usufruírem de benefícios a que não fazem jus, que ocupam vagas de deficientes sem serem especiais,  que “dormem” nos ônibus, confortavelmente sentados em assentos destinados a um público  específico e do qual ele(a)  não faz parte. São os que acham que o tempo deles é mais valioso do que o do resto do mundo, os espertalhões que não respeitam as filas, os vivaldinos, que infringem as regras de boa convivência, e que querem se dar bem sempre, em qualquer circunstância, em qualquer lugar. 
  
Em alguns estabelecimentos os responsáveis pelos estacionamentos são obrigados a colocar obstáculos para impedir que essa gente incivilizada pare nas vagas de idosos e deficientes. Note-se que a falta de educação e a esperteza não estão relacionadas à classe social dos infratores, muito pelo contrário, a maioria anda de carro (joga lixo pela janela) e anda bem vestida. 

Sem querer, Gerson criou uma lei   

Gerson foi um jogador que fez parte da seleção brasileira de futebol, que se sagrou tricampeã do mundo em 1970, no México. Craque da bola, teve participação importante e decisiva na conquista da taça, ganhou respeito dos torcedores e da mídia, e ao que se sabe, não há nada que desabone ou ponha em dúvida o caráter do homem ou do atleta. 

A história da “Lei de Gerson” surgiu de um comercial de cigarros veiculado pela TV, numa dessas propagandas ambíguas, em  que o “tiro sai pela culatra” e acaba repercutindo negativamente no produto ou no anunciante. Nesse caso, sobrou para o Gerson. Depois de exaltar as qualidades do produto, Gerson termina com a frase: “gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve o cigarro tal...”. Desde logo, a expressão virou símbolo da esperteza, do indivíduo que faz uso de subterfúgios para obter vantagens, que atinge seus objetivos sem cumprir os trâmites legais.

Segundo o Wikipédia, A "Lei de Gérson acabou sendo usada para exprimir traços bastante característicos e pouco lisonjeiros do caráter midiático nacional que passa a ser interpretado como caráter da população, associados à disseminação da corrupção e ao desrespeito a regras de convívio para a obtenção de vantagens."
Fossemos um país mais civilizado, a lei de Gerson já teria sido revogada. 

foto da Avenida Gomes de Matos (google)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

A Hospedaria Getúlio Vargas na seca de 1958

 

Localizado no antigo bairro Alagadiço, atual São Gerardo, o prédio foi construído para hospedagem provisória dos “Soldados da Borracha”, trabalhadores nordestinos convocados para trabalhar para o governo federal, na extração do látex de borracha, em terras da Amazônia. A hospedaria foi erguida no início da década de 1940, no contexto da segunda guerra mundial.




Passado o período do conflito, o local continuou com suas funções de abrigar retirantes decididos a migrar para diversas cidades do país, com ajuda do governo. Como os períodos de seca sempre acontecem, a hospedaria estava sempre lotada, e acabou se tornando um depósito de miseráveis, carentes de tudo: alimentação, assistência médica, péssimas instalações, alto grau de insalubridade, condições de vida sub-humanas.


O lugar tinha, em teoria, capacidade para receber 1.200 pessoas, com garantia de pouso, alimentação diária e redes. Na prática, nunca funcionou dessa maneira. Os anos 50 encontraram a Getúlio Vargas com uma superlotação nunca vista. A seca de 1958 logo assumiria proporções catastróficas, com a capital mais uma vez sendo invadida por levas de retirantes, que eram direcionados para a Getúlio Vargas. Os oito galpões da hospedaria receberam em torno de 8.000 pessoas, com homens, mulheres e crianças amontoados, maltrapilhos, muitos doentes e todos passando fome. A cozinha tinha capacidade para o preparo de 300 refeições; não havia creche nem enfermaria. Havia um único médico que estava sempre presente, o Dr. Tarcísio Soriano Aderaldo. A água potável era insuficiente e as instalações sanitárias eram praticamente inexistentes. 




 
 

A certa altura, como não havia mais lugar dentro da hospedaria, cerca de 200 famílias ficaram debaixo dos cajueiros que circundavam o lugar, expostos ao calor, à sujeira e ao ataque de moscas e insetos que eram constantes. Para amenizar um pouco, pelo menos a fome das crianças, começou a ser distribuído um leite em pó, produto de doação internacional, que era desviado e vendido em estabelecimentos de Fortaleza.




O governo também enviaria ao Ceará remessas de charque e feijão, e autorizaria a admissão de milhares de flagelados como trabalhadores nas rodovias da região. Açudes seriam construídos para mitigar os efeitos da seca e empregar os necessitados. Essas medidas, todavia, teriam pouco efeito: os recursos liberados pelo governo federal, não chegavam aos flagelados, eram desviados por políticos e cabos eleitorais, ou transformados em alimentos estragados e de baixa qualidade que eram oferecidos aos hóspedes da Getúlio Vargas e aos de outros abrigos similares existentes no Ceará.


Não havia planejamento e ninguém se identificava como coordenador ou responsável pelo andamento da hospedaria. Era um caos, onde morriam cerca de 10 crianças por dia. Os problemas relacionados à escassez de comida foram parcialmente resolvidos com a ajuda do Exército que passou a distribuir 2000 refeições por dia. Para evitar os desvios comuns naquela situação, o próprio Exército fazia a distribuição entre os flagelados.


A superpopulação da hospedaria começou a diminuir com a migração de centenas de famílias para o Norte e o Sudeste do País, e um novo destino que despontava: Brasília. O outro fato relevante para o esvaziamento, foi o fenômeno natural que permeia as esperanças e o renascer do povo nordestino, a volta das chuvas. A Hospedaria Getúlio Vargas cumpriu sua sina de depósito de gente até 1972, quando foi desativada.


  Fontes: 

Reportagem de Edmar Mórel, publicada no O Seminário, ano 1958 <Disponível em>   http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=149322&pagfis=1734&url=http://memoria.bn.br/docreader#

Nordestinos fogem da seca e da Fome <Disponível em> http://memorialdademocracia.com.br/card/retirantes-fogem-da-seca-e-da-fome 

fotos Google