segunda-feira, 27 de março de 2017

Uma Casa Chamada Boris

prédio da Casa Boris Frères, localizado na antiga Travessa da Praia 

Em 1869 foi fundada no Ceará a Casa Theodore Boris e Irmão, cujos sócios eram os franceses Alphonse e Theodore Boris, nascidos na província de Lorena. Alphonse, o mais velho, tinha chegado primeiro, de navio, procedente do Rio de Janeiro, com a missão de fazer um reconhecimento da praça. 

Em menos de um ano de funcionamento, a Casa Theodore Boris já visualizava, a partir de Fortaleza, amplas perspectivas comerciais, a partir da identificação de produtos locais com ampla aceitação na França. Depois da guerra franco-alemã, entre 1870/1871, os dois irmãos voltaram para a França cheios de ideias, quando fundaram em Paris, com outro irmão mais novo Isaie Boris, a Boris Freres.

Nessa época, Theodore retornava a Fortaleza, na companhia de outros dois irmãos, os gêmeos – Adrien e Achille, estabelecendo-se na Rua da Palma, no centro comercial de Fortaleza. Experimentando um rápido crescimento, em menos de dois anos, a empresa  já mantinha relações de comércio com as principais praças da Europa e dos Estados Unidos e possuía ramificações em quase todo o Ceará e Estados vizinhos.

No início faziam de tudo, como autênticos mascates, visitando Estados e Municípios, rua por rua, de porta em porta, vendendo tecidos, roupas , perfumarias, artigos de decoração e mobílias, material para cozinhas e, papelaria, material de escritório além de uma infinidade de outros produtos importados.


Numa etapa seguinte passaram a comercializar maquinário, cimento, carvão, madeira para obras, gêneros alimentícios, material fixo e rodante para estradas de ferro e um mundo de objetos diversos, entre os quais estruturas de ferro. A estrutura do Theatro José de Alencar, por exemplo, foi importada da Europa por essa empresa, embora esse operação de importação tenha levado quase dez anos até ser concluída. 

Paralelamente a Boris iniciou as primeiras exportações de algodão, cera de carnaúba, couros, peles, borracha, café, penas de ema, cacau, madeiras tintoriais e preciosas e sementes de oiticica. O estabelecimento, transformou-se depois na firma Boris Frères, com sede em Paris e endereço em Fortaleza na antiga Travessa da Praia, atual Rua Boris. 

Em 1878, mais um dos irmãos – Isaie Boris – veio residir no Ceará, o que deu mais prestigio, respeito e credibilidade ao estabelecimento. O nome Boris virou sinônimo de confiança, garantia de seriedade nos negócios. O espírito popular começou a chamar o Mar de Açude do Boris; qualquer impasse que surgia em determinada situação, o gracejo é que seria resolvido pelo Boris; à Justiça deram a alcunha de mãe do Boris, significando que até os tribunais eram influenciados pelos comerciantes franceses. 

máquina de prensar couro e algodão, importada e utilizada pela Casa Boris. Hoje faz parte do acervo do Museu da Indústria 

Isaie Boris tornou-se Vice-cônsul da França e elevou-se mais ainda na consideração e estima da sociedade fortalezense, do comércio e dos poderes públicos. Coordenou e foi presidente da comissão Organizadora quando da participação do Ceará na Exposição Internacional de Chicago em 1892-93, elaborando o catálogo de produtos cearenses que deveriam figurar na exposição. Com o afastamento de Isaie Boris, a firma Boris Frères passou a ser administrada em Fortaleza por Achille Boris, outro grande empreendedor.

máquina de prensar algodão, em operação na Casa Boris Frères 

A tal ponto chegou a influência e a atuação dos Boris em Fortaleza, que algumas vezes, teve a Fazenda do Estado de recorrer ao seu financiamento para atender as carências monetárias dos cofres públicos. Por conta dessa crescente ingerência da Casa Boris nos negócios e na vida da cidade, essa influência foi se acentuando, e ficou ainda maior com as viagens à Europa, de preferência à França, de várias personalidades cearenses, algumas acompanhadas das famílias, onde às vezes se demoravam meses e anos, segundo dizem, as expensas da Casa Boris. Muitos foram os cearenses que estudaram, se graduaram médicos, engenheiros na França, e casaram com damas francesas.

Isaie Boris, hoje é nome de rua em Fortaleza 

Os irmãos Boris chegaram a tal grau de integração cultural, que conheceram Padre Cícero,  acolheram o beato José Lourenço na fazenda Serra Verde em Caririaçu (depois do massacre de 1936), e receberam na mesma fazenda , a visita de Patativa do Assaré, em 1956, que os presenteou com versos improvisados , por ocasião do aniversário da esposa de um deles.


Extraído do livro
Caravelas, Jangadas e Navios, uma história portuária de Rodolfo Espínola


quinta-feira, 9 de março de 2017

Dona Fideralina – A Matriarca do Sertão



As matriarcas são personagens semi-lendárias, proprietárias de terra e gado no interior do sertão, longe das pretensões fidalgas das Casas Grandes da zona açucareira. Levavam uma vida rústica relativamente distante dos padrões culturais europeus que, na época, moldavam as sociedades do litoral nordestino. No sertão, exerciam grande poder de liderança, tendo controle total de seus feudos regionais. 

O poder das matriarcas não era necessariamente vinculado ao poder político ou econômico da região, ainda que, subsidiariamente, tenham desenvolvido atividades e ocupado posições de controle nessas áreas. De forma sintomática surgem elas em cena a partir da posição ocupada na estrutura familiar. São chefes de família, ou melhor, tornam-se chefes de família devido à ausência do patriarca, por morte, ou por viagens constantes. Raramente são solteiras ou sem família. A manipulação de filhos, parentes e agregados, parece ser o foco inicial do poder e do raio de influência das matriarcas.

Começam a exercer seu controle em um âmbito mais restrito, o familiar, e terminam por englobar a rede de poderes que liga, de forma bastante específica no interior do Nordeste, o Estado, a Igreja e a família.

 O refúgio da matriarca - Sítio Tatu, em Lavras da Mangabeira 
(imagem do Blog do Sanharol)
http://blogdosanharol.blogspot.com.br/

 Casa Grande do Sitio Tatu atualmente
(imagem do blog Cariri Cangaço)
http://cariricangaco.blogspot.com.br/

Dona Fideralina reuniu no Sítio do Tatu, cem cabras que havia conseguido juntar com a ajuda de outros coronéis da região. Deu ordens para que seguissem rumo a Princesa, na Paraíba. O grupo de cangaceiros iria vingar a morte de seu neto, Ildefonso Lacerda Leite, médico que logo após formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, começou a exercer a profissão em Princesa, terra de seu pai, Luís Leônidas Lacerda Leite (legítimo ladrão de Lavras – dizia o povo), marido de Joana Augusto Leite, filha de Fideralina.

Lá, Ildefonso casou-se com Dulce Campos, filha de um chefe político do município, coronel Erasmo Alves Campos. Com esse casamento, o doutor precipitava a própria sorte. Manoel Florentino desejava ter Dulce por esposa. Enraivado vendo-a casar-se com o forasteiro Ildefonso, resolveu vingar-se. Junta-se a José Policarpo, ex-aluno do Seminário da Paraíba, ligado ao vigário de Princesa, Manoel Raimundo Donato Pinto. O vigário se opunha ao doutor, acusando-o de ateu.

Em 6 de janeiro de 1903, feriado do Dia de Reis, Florentino e Policarpo mataram, com uma punhalada no peito e um tiro no coração, o neto de Fideralina. O moço ia à farmácia providenciar remédios para acudir sua mulher. Após o crime tentaram os criminosos enterrar o cadáver. Mas, por imperícia, deixaram o corpo com os pés de fora.

Vingança maior aguardava a dupla de assassinos. A velha "Fidera do Tatu" despachara o seu estranho exército com a incumbência de lhe trazer as orelhas de cada um dos assassinos do neto. Não era à toa que se dizia nas Lavras que a velha do Tatu rezava toda noite num rosário feito das orelhas de seus inimigos mortos: queria aumentar a coleção.

Esse crime de Princesa, marca o início da projeção de dona Fideralina para além dos sertões do Cariri, e a extensão da sua influência junto ao governo do Estado. Nascida em 1832, em Lavras, batizou-se por Fideralina Augusto Lima, graças aos entusiasmos republicanos, provocados pelos movimentos revolucionários no Nordeste, no Levante de 1817 e na Confederação do Equador em 1824.

Familiarizou-se desde cedo com o poder. Era a mais velha de doze irmãos; o pai, chefe político na região de Lavras, João Carlos Augusto, descendia de família poderosa. A mãe de Fideralina também se envolvia com política. Isabel Rita de São José, a Zabilinha, era neta de Francisco Xavier, segundo capitão-mor e comandante geral da vila de Lavras, sesmeiro da ribeira do rio Salgado, proprietário de grandes extensões de terra.

Se o pai, João Carlos Augusto, era afilhado do presidente da Província, o batismo de Fideralina já é prenúncio de sua força de vontade, de seu desprezo por regras estabelecidas, de seu temperamento forte, de só fazer o que desejava. O padrinho da filha podia não ser de igual importância, mas em compensação o celebrante da cerimônia foi o padre Verdeixa, figura antológica e curiosíssima dos sertões nordestinos. Pai de família, era o Padre Verdeixa nascido no Crato, ou em Goiana, ou em Olinda; foi vigário de Lavras de 1830 a 1832. Mestre em ações indecorosas, fazia propostas imorais às noivas dos casamentos que celebrava. Chegou a ser espancado por um noivo que não pôde suportar os excessos do padre.

Quando João Carlos Augusto morreu, aos 56 anos, vítima de um atentado político, Fideralina, já estava casada; sendo a mais velha de três irmãos fracos e de oito irmãs que não viam a mulher em posição de mando, assumiu o poder como herança maior.


Casara-se nova, aos 15, 16 anos, com Ildefonso Correa Lima, major da Guarda Nacional, nascido em Várzea Alegre, distrito de Lavras, filho do tenente Raimundo Duarte Bezerra e de Ana Correa Lima, donos de muitas fazendas. Recém-casada, Fideralina já tinha fama de mandona, tanto que a família do marido não aprovou a união. Eram contra, não queriam ver Ildefonso submisso à mulher. Mas não foi uma submissão duradoura. Ele morreu ainda jovem, aos 42 anos, depois de ser presidente da Câmara de Lavras. Deixou uma dúzia de filhos e um certo poder político que logo foi assumido pela mulher.

Rua Major Ildefonso, em Lavras da mangabeira - década de 50 (acervo IBGE)

Herdeira de dois grandes chefes, acostumada a mandar, não admitia oposição. Sendo preciso, esqueceria a religião e lutaria até contra a Igreja. Monsenhor Miceno Clodoaldo Linhares, vigário em Lavras por 49 anos, que ousou opor-se a Fideralina, provou-lhe o ódio. O vigário era conhecido pela sua retidão de caráter, pela facilidade para o discurso, tinha a admiração do clero. Mas tinha uma mancha na vida. Quando jovem, tivera uma filha em Tauá. Fideralina tomou a si a tarefa de tornar público o erro do vigário. Monsenhor Miceno, ao partir de Lavras, profetizou que as crianças daquela época veriam a queda de Fideralina. Errou: passou-se muito tempo até o dia em que ela, ou os seus, não conseguiram eleger o prefeito. Mesmo o sucessor de Monsenhor Miceno, Padre Raimundo Augusto Bezerra, sobrinho-neto de Fideralina e líder oposicionista, sofreu muito nas mãos de Fidera. As piores calúnias foram levantadas contra ele.

Mas Fideralina não tinha inimigos só entre os estranhos, a família também a enfrentava. Seu filho, Honório Correa Lima, foi uma das vítimas da ira materna. Após certo tempo na prefeitura de Lavras, foi eleito deputado, tendo que permanecer longo tempo em Fortaleza. E Honório acreditava estar perdendo suas bases políticas com as longas estadas na capital. Assim, com o prestígio conseguido junto ao presidente da província, articula, à revelia da mãe, sua nomeação para retornar à prefeitura de Lavras. Para isso seria necessária a deposição do prefeito Manuel José de Barros, homem da confiança da matriarca.

Estava criada a confusão. A velha, com o orgulho ferido e influenciada por um outro filho, Gustavo Augusto, tenta primeiro convencer Honório a abdicar do cargo. Apela para os nove meses em que o carregou na barriga. O argumento não surtiu efeito. Honório respondeu que, se o problema era o tempo de gestação, poderiam fazer um trato: ela que afinasse a cabeça para lhe entrar pela “traseira”, e ele a carregaria durante nove meses sem reclamação.

Mas Fidera era incansável. Teimou em convencer o filho até o dia em que ele tomou de um rifle e apontou para a barriga da mãe. Essa afronta, somada à morte de Ernesto Rolim, cabra de confiança da velha, atribuída a Honório, e às ameaças de Honório ao irmão Joaquinzinho, a quem proibiu de aparecer na casa da mãe, por acreditar que fosse ele a origem das atitudes da velha, levaram-na a reunir um bando de cabras com os coronéis mais fortes do sertão.

Os jagunços, eram em grande parte recrutados no Sertão de Pernambuco – Serra do Araripe, região do Riacho do Navio, Pajeú de Flores; eram homens que faziam do cangaço sua vida, e foram os responsáveis pela deposição do “Torto”, apelido de Honório, que era caolho. Escorraçaram-no de Lavras, com mulher e filhos; mudou-se para Fortaleza, e posteriormente para Caririaçu. É a primeira vez em que a misericórdia dá mostras de existir em Fideralina. Em casos de deposição, matava-se o deposto. Mas, na deposição de Honório, os homens tiveram ordem expressa de não acertar sequer um tiro no Prefeito. A velha Fidera avisou que quem o fizesse pagaria com a própria vida. Ninguém desobedeceu.

Desse mesmo episódio deriva a briga de Fideralina com a irmã Pombinha. Era privilégio da matriarca orientar os casamentos da família; destinou ela a Honório e Gustavo, as filhas de Pombinha, Petronila e Joaninha, primas em primeiro grau. E, para azar de Fideralina, o filho que ela escorraçara de Lavras era o genro preferido de Pombinha, que jamais lhe perdoou a ofensa. Na primeira vez em que Fideralina perdeu o poder no município, para os rabelistas, a irmã atravessou a cidade de joelhos, em direção à igreja. Defronte ao altar de São Vicente, ficou beijando o chão, em sinal de agradecimento. E quando, antes de morrer, Fideralina pediu a presença da irmã, obteve fria e dura resposta: “Se ela quer me pedir perdão, diga que perdoo. Mas ir vê-la, diga que não vou”.

Igreja Matriz de São Vicente Ferrer, em Lavras da Mangabeira (acervo IBGE)

Voltando às intrigas políticas de Fideralina; com o intuito de afastar o filho Gustavo da Prefeitura, sob desculpa de honrar a palavra dada, reconduziu Manuel José de Barros ao antigo lugar, retirado por Honório; convenceu Gustavo a concorrer como deputado estadual. Depois, vencido o mandato de Gustavo, ela lhe daria todo apoio para que fosse prefeito; e com ele passou a dividir todo o poder acumulado até então. Mas Gustavo, após pouco tempo frente à Prefeitura de Lavras, sofreu uma tentativa de deposição. Tratava-se, na verdade, de um complô contra a sua mãe.

O poder herdado do pai e do marido foi habilmente mantido. Fidera conseguia sempre estar bem com os governos. De monarquista converteu-se em republicana; o que lhe interessava era dominar a região de Lavras da Mangabeira. Mas por volta de 1911 surgiram movimentos contra as oligarquias no Ceará. A derrubada da família Nogueira Acioli levou de roldão Fideralina e os coronéis do Sertão do Cariri. Pombinha, seus filhos, genros e aliados, queixosos desde a queda de Honório, insurgiam-se contra a tirania da matriarca; davam resposta a tudo que até então tinham ouvido calados.

Proprietária de alguns sítios, todos situados na região árida e pobre, intermediária entre o Sertão Seco e a rica área verde do Cariri, a família Augusto quando ainda unida, vivia no Sítio do Tatu. Era uma propriedade comum: casa grande com alpendre, açude, engenho, uma fileira de casas de taipa para os negros e uma das únicas da região a ter uma capela. O sitio era também a área de maior concentração de escravos nos sertões, a ponto de existirem quadrinhas abordando esse estranho recorde: 



O Tatu pra criar negro 

Sobradim pra criação, 

São Francisco pra fuxico, 
Calabaço pra algodão, 
Caraíba é prata fina 
Sussuarana, ouro em pó 
Xique Xique é mala véia 
E o Tatu é negro só.

Talvez o grande número de escravos no Sítio do Tatu se devesse ao fato de Fideralina possuir um grupo de escravas que eram usadas como parideiras de moleques, que após algum tempo eram vendidos ao aparecer comprador. 

Uma das histórias de crueldade de Dona Fideralina versa sobre uma dessas negras parideiras e o filho que seria vendido, embora já estivesse com ela há mais de um ano. A escrava, agarrada à criança, correu para o mato, mas Fideralina deu ordem para que fossem atrás e trouxessem o menino. Na tentativa de proteger o filho, a negra foi apunhalada; ainda correu para casa, e lá, a patroa mandou que mãe e filho fossem embebidos com querosene, e ela própria lhes ateou fogo. A escrava, soltando o filho, debateu-se até morrer. Conta-se que as marcas de sangue da negra não saíam nunca da parede, mesmo que a caiassem continuamente. O reboco teve que ser retirado, e um outro feito em seu lugar.

Soma-se a essa história, o episódio de Luís Preto, um escravo, que aos oito anos de idade, junto com os filhos da Senhora, ousou tomar banho na cacimba de água limpa de onde Fideralina bebia. Levou tamanha surra que, durante os mais de cem anos que viveu, nunca mais tomou banho e não saía de casa quando ameaçava chover.

Entre os negros da fazenda do Tatu, quatro deles, dos mais fortes, deviam estar sempre prontos para carregar a liteira de Dona Fideralina, nas suas idas à cidade. Corpulenta, medidas avantajadas, quadris largos, rosto cheio, bonita – diziam, trocou a liteira pelo cabriolé e depois de velha, estranhamente, começou a andar a cavalo, inspirando uma crônica ao juiz Álvaro Dias Martins, assustado com a vitalidade da velha cavaleira.

Temida pelo povo, não era só medo que ela despertava nas pessoas. Quando viajava de Lavras para Iguatu, onde tomava o trem para Fortaleza, e se hospedava na casa do chefe político da cidade, despertava imensa curiosidade. O povo ia à casa do coronel para vê-la, corria às calçadas a fim de lhe assistir a passagem e, na hora do embarque, uma multidão se comprimia na plataforma da estação ferroviária para ver aquela mulher perigosa, valente, cheia de coragem, que mandava matar gente.

Essas viagens faziam parte de seu relacionamento com o Presidente da Província. Mas Fideralina abusava às vezes dessas boas relações. Chegou a exigir em carta ao Presidente que nomeasse um amigo analfabeto para o posto de professor de grego do Liceu de Fortaleza. Provavelmente era ela mesma quem escrevia as próprias cartas. Tinha uma bela letra e assinava Federalina, com a letra E no lugar do I, como era conhecida.

Graças a seu poder político e econômico, Dona Fideralina podia manter certos hábitos interditos à mulher. Falava o que lhe viesse à cabeça, usava palavrões em qualquer oportunidade, alteava a voz com os homens. Conta-se que, hospedada na casa do filho mais moço, Chico Correa, em Lavras, não mais de duas léguas do Tatu, pôs-se a tomar a fresca, vestida com uma espécie de camisa, quando o cunhado, tenente Raimundo Tomás de Aquino, marido de sua irmã Florípes, disse-lhe que não era hora de rapariga estar na janela. Rapidamente recebeu sua resposta: “Nem de homem macho estar na rua”.

Os hábitos da matriarca não diferiam muito dos costumes do coronelato da região: tinha um grupo de cabras para proteger a propriedade e garantir a família, andava sempre com um bacamarte sobre as pernas, ou ao alcance das mãos, tinha um filho cujo padrinho era o Padre Cícero, e era muito religiosa. Rezava diariamente, com a família e as escravas, o rosário, – provavelmente o folclórico, confeccionado de orelhas – que, segundo parentes, não foi acrescido das orelhas dos assassinos de seu neto. É que quando o bando chefiado por Zuza Lacerda, cangaceiro renomado, chegou à cidade de Princesa não encontrou mais os criminosos. Haviam padecido de estranha febre epidêmica. No entanto, os adversários de Fideralina, bem como o povo, juram que essas orelhas vieram a enriquecer o seu famoso rosário.

Ficou como tradição a frase sacramental dos matadores enviados por Dona Fideralina no momento em que atacavam os inimigos da velha senhora: “Tá aqui que Dona Fideralina mandou”.

Talvez viesse desse estranho rosário a capacidade que a velha possuía de atrair e manter o poder. O tempo em que ele fugiu de suas mãos, após a queda dos Aciolly, quando seus parentes, partidários do oposicionista Franco Rabelo, mandaram em Lavras, foi insignificante em relação ao período em que esteve com ela. Depressa retomou o domínio da situação, tornando a fazer jus a certas quadrinhas populares.

“O Belém manda no Crato
Padre Cícero em Juazeiro
Na Missão Velha, Antônio Rosa
Barbalha, Neco Ribeiro
Das Lavras, Fideralina
Quer mandar no mundo inteiro.”

Em 1914 reuniu cabras, armas e munições, e enviou, aos cuidados do filho Gustavo, como ajuda a seus partidários, numa tentativa de retomar o poder, apoiando a “Revolução de 14″. O episódio, vitorioso, chamado pelos rabelistas “A Sedição de Juazeiro”, devolveu o poder às oligarquias antigas, dele alijadas após o movimento popular ocorrido por volta de 1911.

Estação ferroviária de Lavras, em 1922 

Dois anos antes de morrer, a sua grande influência fez chegar a Lavras a via férrea que tornariam mais fáceis e menos lentas as viagens à capital. No dia da inauguração da estação, a velha mostrava-se alegre, forte; com o imenso corpo jogado numa cadeira de balanço conversava em altos brados. Sempre gritou. Na primeira vez em que baixou a voz, teve-se a certeza de que realmente chegara a doença que a levaria à morte, aos 87 anos.

Em agosto de 1919 termina a história de Fideralina, mas não a do seu reinado. Gustavo substituiu a mãe, dando lugar a seus próprios filhos, João Augusto e Raimundo Augusto, fortes e violentos. A oligarquia só largou o poder – e por força dos acontecimentos – mais de meio século após a morte da matriarca. Na década de 70, pela primeira vez, os Augusto não conseguiram eleger o prefeito de Lavras. 


Extraído do artigo: Matriarcas do Ceará – D. Federalina de Lavras
Rachel de Queiroz e Heloisa Buarque de Hollanda