sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

As Noites Boêmias da Praia de Iracema

 

A zona portuária da Praia de Iracema sempre foi um lugar de muitos agitos: de passageiros que demandavam a Ponte Metálica, de carregadores em busca dos velhos armazéns, de donos de embarcações, de frequentadores dos bares e restaurantes que funcionavam no local, de mulheres em busca de amores e programas passageiros. Mas o local começou a mudar quando a Ponte Metálica, enquanto porto de Fortaleza, foi sendo gradativamente desativada, à medida em que se alargavam as possibilidades oferecidas pelo Porto do Mucuripe. Assim, devido ao esvaziamento da área, muitos estabelecimentos do entorno, que funcionavam em função do porto, também perderam suas razões de existência. E esses espaços vazios, ficaram disponíveis para acolherem novas funções e atraírem um novo público para o local. E foi o que efetivamente aconteceu.



Zona portuária de Fortaleza em 1910, Alfândega e armazéns (Arquivo Nirez)


Ainda na década de 1940, a região dos antigos galpões que serviram ao porto, começou a ser ocupados por bares e boates. O lugar ainda era mal iluminado, com vários imóveis velhos, com fachadas desgastadas, ocupados por antigos moradores do bairro. Havia muitas casas fechadas e abandonadas, ruas sujas e pavimentação irregular.

Na década de 1950 o bairro Praia de Iracema começou a ser frequentado por um tipo de público diverso daquele que conhecera quando era zona portuária, formado por vários artistas plásticos que vieram morar ali, atraídos pela possibilidade de instalar seus ateliês e pelos baixos preços dos aluguéis das casas.

 


Região da Praça do  Cristo Redentor antes da construção do Centro Cultural Dragão do Mar (foto de Amélia Earhart - 1937)
  

Na área ainda funcionavam velhos estabelecimentos como o Cabaré da Pirrita (que na verdade era um barzinho pra lá de irreverente frequentado por políticos e artistas) e o Cabaré 90, remanescentes da época em que ali funcionava o porto de Fortaleza. Existiam também duas boates frequentadas pelo público gay-underground - Rainbow e Galpão - e dois bares que também eram galerias de arte - onde eram expostas e comercializadas, principalmente, as produções dos seus vizinhos artistas – o Coração Materno, de propriedade do compositor e produtor baiano Nonato Freire - o local totalmente heterogêneo, era considerado o mais "gay friendly” da cidade, funcionando a partir de quarta-feira. Ali perto, ficava um outro bar, o “Besame Mucho”, que junto com o Coração Materno, atraíam para essa área a elite intelectual e universitária. Nesta época, o Centro Dragão do Mar ainda não existia, e a rua era aberta ao tráfego de veículos. Localizados na Rua Dragão do Mar os dois bares fecharam por conta da construção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.

Fora da área dos antigos galpões, surgiram ao longo dos anos diversos bares e restaurantes que brilharam e fizeram história nas alegres noitadas da Praia de Iracema: Nos anos 50 o francês Charles Delleva inaugurou o revolucionário Restaurante Lido, uma novidade no ramo em Fortaleza, adaptando a antiga casa de praia da família Markan. O novo restaurante tinha um salão imenso, com decoração onde se mesclavam o rústico praiano cearense e detalhes que remetiam à França, inclusive tabuletas de ruas e praças famosas de Paris. Usava uma iluminação em penumbra, que tornava tudo muito suave, e deu um toque de sofisticação às noites da Praia de Iracema. Na década de 1970, o Lido começou a entrar em declínio, quando passou para outras mãos e em declínio continuou, até fechar e dar lugar a um edifício de apartamentos.

O Estoril começou como residência, virou cassino de soldados americanos durante a segunda guerra, e depois teve diversos usos na mas mãos de diversos proprietários. Na metade dos anos 90 ressurgiu com toda a força como espaço cultural, e virou reduto da boemia, dos artistas e intelectuais. Todo mundo que tinha uma história para contar, se encontrava no Estoril.



Estoril - Vila Morena (foto O Povo)

Na década de 80, abriram bares e restaurantes memoráveis como o La Trattoria, que ficava onde hoje está o Centro Cultural Belchior; inaugurado em 1980, o local foi considerado o primeiro restaurante genuinamente italiano da Capital, oferecendo um ambiente aconchegante, decorado com peças antigas e regionais da Itália e do Nordeste. O sucesso foi tanto que o La Trattoria foi diretamente responsável pela chegada de outro point de bastante sucesso na Praia de Iracema, o Cais Bar.

O Cais Bar, propriedade de Joaquim Ernesto músico conhecido das noites de Fortaleza, funcionou entre 1985 a 2003, e conheceu todas as glórias da Praia de Iracema. Reduto de boêmios, poetas, artistas, intelectuais, acolhia todas as tribos num ambiente alegre e animado. Com a decaída da Praia de Iracema, o Cais bar caiu junto. E a noite de Fortaleza nunca mais foi a mesma.


 

Cais Bar na Praia de Iracema (foto O Povo)

O Pirata Bar foi criado em 1986 e inaugurou uma inédita segunda feira do forró, que atraia milhares de nativos e turistas, e era a grande sensação da noite da Praia de Iracema. A criação de bares e espaços voltados para o lazer continuaram por toda década de 1990, até que a requalificação, efetivada na área, mudou radicalmente o perfil dos frequentadores da área.



Restaurante Sobre o Mar de Iracema anos 90 (acervo particular)

A inauguração do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em 28 de abril de1999, que pretendia a reestruturação e revitalização da antiga zona portuária da capital, mudou toda a configuração da área, promoveu melhorias na infraestrutura, expulsou bares tradicionais e atraiu um público mais diversificado direcionado ao equipamento. A requalificação da Praia de Iracema de certo modo contribuiu para sua decadência, quando bares e casas noturnas passaram a ser frequentados por prostituas e estrangeiros interessados no chamado turismo sexual.



bares no entorno do Centro Cultural Dragão do Mar em 2010 (foto Fortaleza em Fotos)

Mesmo antes da propagação da epidemia de Covid, que restringiu a mobilidade da população, o Centro Dragão do Mar já se encontrava em franca decadência, fosse pela insegurança, fosse pela escassez de vagas de estacionamentos, fosse pelos abusos cometidos por flanelinhas; as atrações culturais, proposta maior do equipamento se reduziram drasticamente, vários estabelecimentos do entorno fecharam e os frequentadores habituais debandaram em busca de lugares menos hostis.   

Ainda restam bons restaurantes e bares que tentam resgatar os tempos áureos, mas lidam com os mesmos problemas que tem afetado a cidade como um todo: a insegurança pública, o maior deles. Em diferentes períodos algumas intervenções foram feitas visando  resgatar o clima e o velho charme do local, mas até aqui, todas essas tentativas deram em nada. A Praia de Iracema, enquanto lugar de encontro de lazer noturno, está seriamente comprometida. E dessa vez, a culpa não é do mar.


Fontes:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/1/22/revista_da_folha/

tese de doutorado de Roselane Gomes Bezerra - Disponível em  http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/6247/1/2008-TESE-RGBEZERRA.pdf

Diário do Nordeste 

 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021


Fortaleza - 1976 - Você vivenciou a cidade nessa época? 

Reportagem da Agência Nacional sobre a cidade de Fortaleza. O vídeo mostra diversos aspectos da capital cearense, como o bairro de Aldeota, a Praia do Náutico, o Teatro José de Alencar e a Catedral. O vídeo também apresenta as atividades do Centro Social, e outros

domingo, 7 de fevereiro de 2021

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A iluminação e a escuridão das ruas

 

Numa cidade que contava com a intensa iluminação e constante presença do sol, quando este desaparecia, a população sofria com a escassez de iluminação, e a escuridão imperava nas ruas de Fortaleza. Seguindo uma tradição que então impregnava o imaginário da Europa moderna, a noite era considerada "amiga da maldade, companheira de Satã e de seus malefícios".



Praça do Ferreira, fins do século XIX. Ao fundo, o Café Java. (Foto Arquivo Nirez)

Aliados a esta tradição havia o temor que faziam da iluminação um tema tratado não apenas como modernidade para a cidade e sim como matéria de segurança. Mas a preocupação com a segurança noturna da cidade veio de maneira tardia. Somente no ano de 1838 é que foram instalados cinquenta lampiões para a iluminação pública. O encarregado da aquisição foi o comerciante Martinho Borges, que enviaria os lampiões diretamente do Rio de Janeiro, do mesmo feitio e construção que os usados naquela cidade.

O montante de recursos destinados à iluminação da cidade, 2:000$000, foi supostamente quase todo gasto na aquisição dos lampiões e suas ferragens. Com o desejo de completar a iluminação, Manoel de Sousa Mello solicitava a liberação de verba para compra de azeite – combustível fundamental para efetivação das luminárias.

A opção pelo azeite de peixe como combustível, acompanhava, àquela época, uma tendência nacional. Cidade como o Rio de janeiro já industrializava a extração do óleo de baleia, comercializado para uso nos lampiões de óleo. Na costa do Ceará, teria ocorrido a dizimação das baleias e do peixe-boi a partir do século XVIII, abatidos para o consumo da carne e usados na produção de óleo, consequência da atividade predatória dos corsários e dos Tremembés, índios célebres pela ferocidade e que eram hábeis pescadores, o que se leva a deduzir que o azeite usado na iluminação de Fortaleza era importado de outros Estados. O óleo de baleia, aqui chamado de azeite de peixe,  gerava uma luz estável e brilhante, embora produzisse muita fumaça. O Azeite de peixe foi utilizado também como argamassa na construção civil. 



O prédio da antiga alfândega de Fortaleza,  teve projeto de José Gonçalves da Justa, execução e obras de Tubias Laureano Figueira de Melo e Ricardo Lange, que utilizaram pedras e argamassa feita de óleo de peixe e areia. (Foto Arquivo Nirez)

Em 1839, a iluminação ainda era uma expectativa: os lampiões adquiridos no Rio de Janeiro chegaram e foram fixados nas ruas, porém não funcionavam. O motivo era a falta de quem se encarregasse da iluminação, pois a quantia destinada ao prestador do serviço era ínfima e não atraía nenhum interessado. A sugestão do presidente da província João Antônio de Miranda, era mandar iluminar sem arrematação, pois esse empreendimento não atrairia nenhum investimento, por não permitir maior especulação.

Em 1841, ou seja, três anos depois da aquisição dos lampiões a situação da iluminação da cidade continuava delicada. O orçamento da província havia destinado 4:000$000 para o fornecimento de  azeite de peixe – o dobro do utilizado para aquisição dos candeeiros. Como não pareceram licitantes, o fornecimento poderia ser por empreitada. O único que se apresentou foi José Teixeira Pinto, que ofereceu 1700$000 por semestre. O governo indeferiu a proposta, por achar que o candidato não tinha condições de cumprir o acerto.



representação da troca de óleo dos lampiões. (Tela de Debret) 

No mesmo ano, diante das restrições orçamentárias, o governo decidiu eliminar as verbas que seriam destinadas à iluminação. Mais tarde, o assunto voltava a ser matéria de discussão na Assembleia, mas não para sugerir novos investimentos ou a necessidade de expansão do serviço, mas para examinar proposta do presidente da província, de suspensão das despesas com os lampiões, considerando a situação delicada do erário público. De acordo com aquele administrador, fazia-se necessário economizar os gastos com a iluminação não só, porque não era considerada prioridade, como era muito onerosa aos cofres provinciais.

Assim, mesmo depois da década de 1840, Fortaleza não conhecia um sistema competente e continuado de iluminação pública baseado em lampiões de azeite. As noites eram longas e assustadoras, o que imprimia uma rotina de recolhimento cedo, na qual os moradores precisavam se recolher às suas casas e improvisar a iluminação de suas moradas, na maioria das vezes, feitas por lamparinas e velas de cera de carnaúba.



primeira concessionária para exploração da iluminação pública da cidade, a companhia inglesa Ceará Gas Company (foto do livro A História da Energia no Ceará)  

A tão esperada iluminação das ruas só veio a se concretizar alguns anos depois e foi iniciada em 01 de março de 1848. O trabalho foi contratado com Vitorino Augusto Borges, que se obrigava, entre outras coisas, a instalar 44 lampiões, que deveriam ser mantidos sempre limpos e brilhantes, e a conservá-los acesos entre as 6 horas da tarde até o raiar do dia seguinte, ou até que saísse a lua.

O privilégio da concessão foi transferido, com autorização do governo para a companhia inglesa Ceara Gaz Company Limited. No mesmo ano de 1848, foram colocados nas ruas de Fortaleza 25 lampiões pendentes com iluminação de azeite de peixe. Desse período de experiências inovadoras na cidade, fica também a lembrança de um homem simples, o primeiro acendedor de lampiões a percorrer as ruas da cidade, na tarefa diária de acender e apagar os pontos de iluminação, conhecido na memória da cidade pela alcunha de Chico Lampião.

 



Nas noites de lua os lampiões não eram acesos, o que levou alguns cronistas da época a denominarem o acordo de "contrato com a lua". Mas a prática não era só dos cearenses. Em alguns dos outros Estados, havia cláusula contratual prevendo o não acendimento dos lampiões em noites de luar. 

Fontes:

Entre o Futuro e o Passado – aspectos urbanos de Fortaleza (1799-180), de Antônio Otaviano Vieira Jr. 

História da Energia no Ceará, de Ary Bezerra Leite

Fortaleza Velha, de João Nogueira