A zona portuária da Praia de
Iracema sempre foi um lugar de muitos agitos: de passageiros que demandavam a
Ponte Metálica, de carregadores em busca dos velhos armazéns, de donos de
embarcações, de frequentadores dos bares e restaurantes que funcionavam no
local, de mulheres em busca de amores e programas passageiros. Mas o local começou a mudar quando a Ponte
Metálica, enquanto porto de Fortaleza, foi sendo gradativamente desativada, à
medida em que se alargavam as possibilidades oferecidas pelo Porto do Mucuripe.
Assim, devido ao esvaziamento da área, muitos estabelecimentos do entorno, que funcionavam
em função do porto, também perderam suas razões de existência. E esses espaços
vazios, ficaram disponíveis para acolherem novas funções e atraírem um novo
público para o local. E foi o que efetivamente aconteceu.
Ainda na década de 1940, a
região dos antigos galpões que serviram ao porto, começou a ser ocupados por
bares e boates. O lugar ainda era mal iluminado, com vários imóveis velhos, com
fachadas desgastadas, ocupados por antigos moradores do bairro. Havia muitas
casas fechadas e abandonadas, ruas sujas e pavimentação irregular.
Na década de 1950 o bairro Praia de Iracema começou a ser frequentado por um tipo de público diverso daquele que conhecera quando era zona portuária, formado por vários artistas plásticos que vieram morar ali, atraídos pela possibilidade de instalar seus ateliês e pelos baixos preços dos aluguéis das casas.
Na área ainda funcionavam
velhos estabelecimentos como o Cabaré da Pirrita (que na verdade era um
barzinho pra lá de irreverente frequentado por políticos e artistas) e o Cabaré
90, remanescentes da época em que ali funcionava o porto de Fortaleza. Existiam
também duas boates frequentadas pelo público gay-underground - Rainbow e Galpão
- e dois bares que também eram galerias de arte - onde eram expostas e
comercializadas, principalmente, as produções dos seus vizinhos artistas – o Coração
Materno, de propriedade do compositor e produtor baiano Nonato Freire - o local totalmente
heterogêneo, era considerado o mais "gay friendly” da cidade, funcionando
a partir de quarta-feira. Ali perto, ficava um outro bar, o “Besame Mucho”, que
junto com o Coração Materno, atraíam para essa área a elite intelectual e universitária.
Nesta época, o Centro Dragão do Mar ainda não existia, e a rua era aberta ao
tráfego de veículos. Localizados na Rua Dragão do Mar os dois bares fecharam por
conta da construção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
Fora da área dos antigos
galpões, surgiram ao longo dos anos diversos bares e restaurantes que brilharam
e fizeram história nas alegres noitadas da Praia de Iracema: Nos anos 50 o
francês Charles Delleva inaugurou o revolucionário Restaurante Lido, uma
novidade no ramo em Fortaleza, adaptando a antiga casa de praia da família
Markan. O novo restaurante tinha um salão imenso, com decoração onde se
mesclavam o rústico praiano cearense e detalhes que remetiam à França,
inclusive tabuletas de ruas e praças famosas de Paris. Usava uma iluminação em
penumbra, que tornava tudo muito suave, e deu um toque de sofisticação às
noites da Praia de Iracema. Na década de 1970, o Lido começou a entrar em
declínio, quando passou para outras mãos e em declínio continuou, até fechar e
dar lugar a um edifício de apartamentos.
O Estoril começou como
residência, virou cassino de soldados americanos durante a segunda guerra, e
depois teve diversos usos na mas mãos de diversos proprietários. Na metade dos
anos 90 ressurgiu com toda a força como espaço cultural, e virou reduto da
boemia, dos artistas e intelectuais. Todo mundo que tinha uma história para
contar, se encontrava no Estoril.
Na década de 80, abriram bares
e restaurantes memoráveis como o La Trattoria, que ficava onde hoje está o
Centro Cultural Belchior; inaugurado em 1980, o local foi considerado o
primeiro restaurante genuinamente italiano da Capital, oferecendo um ambiente
aconchegante, decorado com peças antigas e regionais da Itália e do Nordeste. O
sucesso foi tanto que o La Trattoria foi diretamente responsável pela chegada
de outro point de bastante sucesso na Praia de Iracema, o Cais Bar.
O Cais Bar, propriedade de Joaquim Ernesto músico conhecido das noites de Fortaleza, funcionou entre 1985 a 2003, e conheceu todas as glórias da Praia de Iracema. Reduto de boêmios, poetas, artistas, intelectuais, acolhia todas as tribos num ambiente alegre e animado. Com a decaída da Praia de Iracema, o Cais bar caiu junto. E a noite de Fortaleza nunca mais foi a mesma.
O Pirata Bar foi criado em 1986 e inaugurou uma inédita segunda feira do forró, que atraia milhares de nativos e turistas, e era a grande sensação da noite da Praia de Iracema. A criação de bares e espaços voltados para o lazer continuaram por toda década de 1990, até que a requalificação, efetivada na área, mudou radicalmente o perfil dos frequentadores da área.
A inauguração do Centro Dragão
do Mar de Arte e Cultura, em 28 de abril de1999, que pretendia a reestruturação
e revitalização da antiga zona portuária da capital, mudou toda a configuração
da área, promoveu melhorias na infraestrutura, expulsou bares tradicionais e
atraiu um público mais diversificado direcionado ao equipamento. A
requalificação da Praia de Iracema de certo modo contribuiu para sua
decadência, quando bares e casas noturnas passaram a ser frequentados por
prostituas e estrangeiros interessados no chamado turismo sexual.
Mesmo antes da propagação da epidemia de Covid, que restringiu a mobilidade da população, o Centro Dragão do Mar já se encontrava em franca decadência, fosse pela insegurança, fosse pela escassez de vagas de estacionamentos, fosse pelos abusos cometidos por flanelinhas; as atrações culturais, proposta maior do equipamento se reduziram drasticamente, vários estabelecimentos do entorno fecharam e os frequentadores habituais debandaram em busca de lugares menos hostis.
Ainda restam bons restaurantes e bares que tentam resgatar os tempos áureos, mas lidam com os mesmos problemas que tem afetado a cidade como um todo: a insegurança pública, o maior deles. Em diferentes períodos algumas intervenções foram feitas visando resgatar o clima e o velho charme do local, mas até aqui, todas essas tentativas deram em nada. A Praia de Iracema, enquanto lugar de encontro de lazer noturno, está seriamente comprometida. E dessa vez, a culpa não é do mar.
Fontes:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/1/22/revista_da_folha/
tese de doutorado de Roselane Gomes Bezerra - Disponível em http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/6247/1/2008-TESE-RGBEZERRA.pdf
Diário do Nordeste