quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

O Talento de Eurícledes Formiga


Nos anos 40, aportou em Fortaleza um poeta e declamador de nome Eurícledes, vindo de Brejo das Freiras, na Paraíba, trazido pelo também poeta Rogaciano Leite. Tinha uns 23 anos de idade, estatura baixa, branco, magro, voz um tanto rouca. Boêmio e aventureiro, chegou sem um vintém, confiado apenas no seu talento.

Em Fortaleza passou a viver do jornalismo e das demonstrações que executava nos recitais, mas o que arrecadava era tão pouco que mal dava para sustentar suas bebedeiras e as três carteiras de cigarro que fumava diariamente. Dormia nas dependências do jornal Gazeta de Notícias, em cima das mesas ou das bobinas de papel.

Rua Senador Pompeu, ano 1935 - Foto arquivo Nirez

Aos domingos, frequentava o Violão Clube, uma associação de boêmios seresteiros que se reunia nos altos do café do Zé Cavalcante, na Rua Senador Pompeu. Poeta espontâneo, era o espetáculo numa mesa de bar ou numa reunião, fazendo versos de improviso ou recitando qualquer autor nacional, desde que fossem versos de apelo direto. Poesia para ele tinha que ter rima ou, pelo menos, ritmo e cadência. Bebia cachaça, tirando gosto com cajá ou pitomba.

Era impressionante como conseguia ser escutado atentamente num boteco, recitando poemas, até por pessoas sem nenhum embasamento literário; já os boêmios artistas, que também faziam versos, ficavam extasiados diante do seu show, não se atrevendo a interrompê-lo. Certa vez desafiou Rogaciano Leite a repartir com ele um recital de improviso no Teatro José de Alencar, e este recusou, declarando-se incapaz de competir com o amigo. Eurícledes conseguia compor um soneto de métrica perfeita, sobre qualquer tema proposto, de improviso.

Teatro José de Alencar  - foto do Arquivo Nirez

Mas o momento maior de Eurícledes Formiga eram os recitais em que demonstrava sua prodigiosa capacidade de memorização. As testemunhas declaravam que o que viram o poeta fazer era inacreditável. Coisa do diabo. Ou um milagre de Deus.
Formiga abria o espetáculo com um poema de sua autoria. Já ganhava a plateia. Pedia em seguida, que citassem um poeta de língua portuguesa, qualquer um, e pedissem um poema. Obtido o título, declamava-o na hora, com todos os pontos e vírgulas. Entrava pela poesia popular, as pelejas do Cego Aderaldo, os motes mais interessantes dos desafios famosos. Depois, pedia que lhe dessem temas para improvisar, contava histórias de Lampião. Sabia todas as façanhas do célebre cangaceiro.

A assistência ficava boquiaberta, mas o talentoso Formiga não tinha chegado ao ponto culminante de sua apresentação. Era a última parte. Ele solicitava dos presentes, que escrevessem uma produção da autoria própria, podia ser um soneto, a letra de uma música, de preferência inéditos, e numerassem todas as palavras da composição (enquanto escreviam, um músico desenvolvia um número ao piano ou ao violino).
Quando o primeiro aprontava seu material, Formiga pedia que lesse, de viva voz, uma única vez, o texto produzido. Concentrado, de olhos fechados, ele ouvia atentamente. Terminada a leitura, repetia o que ouvira, palavra por palavra, imitando inclusive, a entonação do autor. Mas ele não terminara. Para espanto geral, anunciava que iria repetir o texto de trás para frente, como numa leitura hebraica.

Uma vez a façanha foi executada na Casa de Juvenal Galeno, com um soneto de Moreira Campos. Os versos tinham sido feitos para sua esposa Zezé, nos tempos de namoro e nunca tinham sido publicados. Formiga os recitou pra diante e pra trás, saltando uma linha, saltando palavras, enquanto Moreira Campos esfregava os olhos, sem acreditar no que estava vendo. Parecia uma mágica.

Casa de Juvenal Galeno, na Rua General Sampaio
imagem: http://www.casadejuvenalgaleno.com.br

De Fortaleza, Formiga mudou-se para a Bahia. Depois para o Rio de Janeiro. Com a construção de Brasília, mudou-se para lá; depois obteve um cargo importante na Justiça Federal (era formado em Direito) e mudou-se para São Paulo.

Às vésperas da inauguração de Brasília, o Presidente Juscelino reuniu um grupo de amigos numa ilha do Rio de Janeiro para dividir suas emoções e expectativas. Aproveitou para apresentar em primeira mão, o discurso que faria na ocasião e pedir opiniões. A bela peça oratória fora redigida pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, que era o redator-fantasma de JK.

Um amigo comum levara o Formiga e o apresentara ao presidente como um “poeta do Nordeste”. JK dramatizou a leitura, como se já estivesse no momento solene da inauguração da nova capital. E quando terminou, quis saber a opinião dos amigos. 

Formiga, já instruído pelo amigo, pediu a palavra. Considerava aquele um belo discurso. Só que o texto já era do conhecimento público, pois circulava há mais de uma semana entre intelectuais do Rio de Janeiro e São Paulo. E tanto era verdade, que ele, Formiga, iria ler naquele instante a cópia que trazia. E tomando uma folha de papel em branco, que fingia ler, passou a recitar: “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país, e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino...”

O presidente JK estava mudo de espanto e decepção. Então o patife do Schmidt o traíra vergonhosamente? Agora não poderia mais pronunciar aquele discurso! Quando a situação começava a se tornar constrangedora, o amigo do Formiga contou tudo. O poeta era um gênio da memorização. Não vira o discurso antes, decorara-o enquanto era lido pelo presidente.

inauguração de Brasília (acervo O Globo) 

Juscelino suspirou aliviado, embora ainda um tanto incrédulo do que acabara de ouvir. Eurícledes Formiga passou então a demonstrar sua capacidade e deu um espetáculo, sendo testado de todas as formas. Leram vários textos, poemas e até memorandos, e ele, tranquilo, repetia na íntegra.

Ganhou, na hora, o presidente. Tornou-se seu amigo e companheiro de viagens, pois JK costumava pregar peças em seus amigos de Minas. Passou a andar com o Formiga a tiracolo para armar situações semelhantes a que tinha passado. Depois deu-lhe um cargo na Justiça Federal.

Um dos amigos das antigas foi um dia a São Paulo para um tratamento de saúde e, casualmente, foi avistado pelo Formiga na rua. Reconhecendo o velho amigo dos tempos de Fortaleza, gritou do seu carro chamando-o pelo nome: “Murici, seu velhaco, o que fazes em São Paulo?”
Depois dos abraços, foi levado no Cadilac do velho parceiro de farras no Curral das Éguas, para sua residência, um bairro de elite. Era uma mansão, os filhos distintos, a bela esposa, a piscina, a criadagem. O homem era rico. “E os versos, Formiga, como vão os versos? – estão fracos e raros, meu amigo. Poeta só produz com talento quando passa fome.

Eurícledes Formiga morreu aos sessenta e poucos anos em 1983. Um câncer na laringe, por excesso de poesia, cigarro e bebida; ou devido a um problema cardíaco, segundo outra versão. 

Extraído do livro
Sábado – estação de viver
De Juarez Leitão


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

As moradas dos Ricos de Fortaleza (Século XIX/Início do Século XX)


Até o final do século XVIII, Fortaleza, apesar de ser a capital da Capitania, não se destacava em relação a outras vilas cearenses. Poucas ruas eram pavimentadas, as edificações residenciais eram de uma singeleza que se ofuscavam diante das casas assobradadas de Aracati, ou quando comparadas com a qualidade dos materiais utilizados nas construções de Icó.

Com a separação de capitania de Pernambuco, em 1799, Fortaleza, por sua localização e pela qualidade do seu porto, rivalizou com outras vilas a possibilidade de centralizar a exportação de algodão e couro, como também de se destacar enquanto centro importador. Esse período assistiu à mudança do significado político da cidade, que passou a ser a capital econômica da província.

Porto de Fortaleza - década de 1910

Ocorreram mudanças em algumas residências que ganhavam sobrados, no estabelecimento de construção destinados à inspeção do algodão exportado e no porto, que recebia um volume cada vez maior de embarcações portuguesas e inglesas. O comércio e a arquitetura começaram a se diferenciar em comparação com outras localidades cearenses. A partir de 1840, uma série de empresas europeias se instalaram, e intensificaram o comércio com a América com a exportação de produtos agropecuários.

A lenta transformação pela qual a cidade passava, era indicada por um crescimento arquitetônico registrado em 1841, pelo viajante americano Daniel Kidder. Em sua fala o americano não deixava de ressaltar que a população ainda preferia construções mais simples e rápidas de serem erguidas, não sendo usual a edificação de casas mais caras e trabalhosas. As ruas continuavam sem pavimentação até 1857, quando foi efetivado o projeto de calçamento que contou com a contratação de “calceteiros” das Ilhas de Açores.

O sobrado erguido em 1825 por Francisco José Pacheco de Medeiros foi o primeiro imóvel de tijolo e telha a levantar-se em Fortaleza. Em 1831 a Câmara comprou o prédio mudou-se para a nova sede em 1833, dividindo o sobrado com a cadeia pública. Mais tarde, com a saída da Casa de Correção, o prédio foi ocupado pela Intendência Municipal. Foi demolido em agosto de 1941 

A explosão comercial, o aumento da presença de estrangeiros na cidade, o incremento da circulação de produtos e hábitos europeus, poderiam ser considerados alguns dos fatores que contribuíram para uma tímida mudança na arquitetura interna e nos significados dos domicílios de Fortaleza. Essas transformações não alcançavam toda a sociedade, era restrita a um grupo social mais abastado.

Um cronista da época, o conhecido Boticário Ferreira, em 1843 deixava claro que segmento social estava relacionado diretamente com essas transformações: a elite. A cidade era quase toda de casebres. Na maioria das ruas só se encontravam casas baixas e estreitas, de porta e janela, sem rótulas ou persianas. O material empregado era a taipa e a palha (paredes de taipa de sopapo e cobertas de folha de palmeiras eram amplamente utilizadas pela população mais pobre), sendo este o tipo mais comum de edificação.

De beira e bica, a primitiva residência dos governadores, estava localizada na Rua Direita dos Mercadores, atual Sena Madureira. Construção despojada, dos primórdios da cidade, quando ainda não se arrematam os beirais com platibandas.

O desenvolvimento da cidade e o surgimento de famílias com mais recursos financeiros, permitiram um novo padrão de moradia; e entre as simplórias casas de taipa e palha, foram sendo erguidas residências de maior porte, de alvenaria, edificadas com materiais mais duradouros, com o uso de tijolos, assentados com argamassa de cal de ostras e areia e cobertas com telhas. Tudo sem requintes, sem ornamentos nas fachadas, sem platibandas, todas de beira e bica. Aos poucos, a lenta evolução da província ia permitindo aqui e ali, alguma construção de maior vulto, até atingir o período em que senhores de vastas posses, muitas deles detentores de títulos e brasões, traziam da Europa, os projetos para suas moradias.

Mais tarde, a cidade começou a ser dividida em bairros, onde se destacavam casas de grande porte, palacetes e mansões. Alguns desses ricos proprietários até se permitiam o luxo de trazer do Velho Mundo os materiais necessários às suas construções, sem falar nos acabamentos. Foi quando as rústicas telhas de barro, produzidas nos arredores da cidade, foram substituídas pelas delicadas telhas de Marselha e até por ardósia importada da Franca, para as construções mais suntuosas.

Palácio Guarani construído em 1908, cópia de um imóvel europeu. Foi modificado algum tempo depois para retirada do telhado de ardósia. Era de propriedade do Barão de Camocim. O imóvel bastante modificado, fica na Rua Barão do Rio Branco esquina com Senador Alencar.

E os telhados ganharam status de obra-de-arte, motivo de admiração de uma população desacostumada a essas novidades. Da Inglaterra vinham as louças sanitárias (os vasos, as banheiras, os lavatórios). Portugal mandava as pinhas, os jarrões, as estátuas e os ladrilhos de faiança. Algumas casas utilizavam madeiras europeias e o agora raro pinho de riga. Era usado em assoalhos, portas, janelas e bandeirolas. Em muitos casos, até o cimento era importado.    
conhecida por "Casa da Normandia", foi construída em 1920, copiada de uma revista francesa. Permanece praticamente inalterada. Fica na Avenida Filomeno Gomes, no bairro Jacarecanga. 

Outro ponto que distinguia as casas dos mais abastados, era a mobília. Em geral, em casas de pobres, nas vilas, nas cidades e nas zonas rurais, as mobílias das casas eram sintetizadas na presença de redes, malas, algumas cadeiras e mesas rústicas. Já em Fortaleza, começavam a aparecer as mobílias mais pesadas, caras, com o claro objetivo de proporcionar conforto e requinte.

Sofás, cadeiras, mesa de centro, castiçais, lanternas, jarras, cômodas, foram alguns dos itens anunciados pelo leiloeiro Victoriano Borges, objetos oferecidos em leilão por uma família de mudança para o Pará. No armazém de Rocha Junior, eram vendidos canapés com assento de palhinha, mesa de sala, cômodas grandes e pequenas, lavatórios, camas e oratórios.


O requinte da mobília cresceu proporcionalmente ao luxo dos casarões. Tapetes, jarros, pratarias, lustres, quadros, móveis e outros elementos de decoração, passaram a ser importados da Europa.

Fontes:
Entre Paredes e Bacamartes – de A. Otaviano Vieira Jr 
Mansões, Palacetes, Solares e Bangalôs de Fortaleza – de Marciano Lopes 
fotos Arquivo Nirez