quarta-feira, 24 de março de 2021

O Percurso dos Bondes da Light na Fortaleza dos Anos 40

 

Em tempos passados, o Jacarecanga enquadrava-se como um dos mais distintos bairros residenciais de Fortaleza, embora seu marco principal e seu endereço mais conhecido era o edifício do Liceu do Ceará, estabelecimento padrão do ensino, e o primeiro colégio de Fortaleza, fundado em 1845. O bairro ostentava diversas residências que se diferenciavam da modesta e antiquada linha arquitetônica da cidade mais antiga, com suas casinhas conjugadas, de porta e janelas de frente. No trajeto do bonde do Jacarecanga, todo o corredor constituído pela Rua Guilherme Rocha até a então Praça Fernandes Vieira (hoje Gustavo Barroso), apresentava um conjunto de luxuosas residências, quase todas em amplos terrenos e com dois pavimentos.



Casarão do empresário Oscar Pedreira no bairro Jacarecanga. Com três pavimentos, era uma das residências mais bonitas da área. Foto do acervo Marciano Lopes 

Nos outros bairros, como o Benfica, por exemplo, a então Avenida Visconde de Cauípe – atual Avenida da Universidade – também oferecia uma imagem modernizante. Ladeando os trilhos do bonde, muitas casas residenciais, dentre elas a da família Gentil, feita para acolher nos limites da mansão, implantada numa área equivalente a 2 hectares, todos os membros de sua numerosa descendência.

Pela orla marítima, Fortaleza daqueles dias ficava restrita ao pequeno trecho de moradias dos ricos da Rua dos Tabajaras, na Praia de Iracema, lugar aristocrático, onde se destacava a Vila Morena, da família Porto, mais tarde transformada em sede do clube de oficiais norte-americanos que aqui serviram ou transitaram em tempos de segunda guerra.

Depois da Rua dos Tabajaras havia apenas o “palacete” – uma construção de dois pavimentos, estilo bangalô, do empresário Fernando Pinto, sede do Jangada Clube, onde aconteciam grandes noitadas boêmias e a visita de artistas consagrados, como Orson Welles. Não por acaso denominava-se jangada Clube, porque ficava situada precisamente num “porto de jangadas”, onde à tardinha, centenas dessas embarcações atracavam trazendo o peixe fresquinho, apanhado na linha do horizonte.



O Jangada Clube funcionou de 1935 a 1950. Desativado, o prédio foi vendido ao empresário Ivens Dias Branco, que o mandou demolir em 1984 para construção do Edifício Jangada. imagem do Arquivo Nirez


Rumo ao nascente, acompanhando o trajeto da orla, a Avenida Santos Dumont acolhia os trilhos do bonde do Outeiro, primitiva denominação da Aldeota. O final da linha do bonde era na esquina com a Avenida Barão de Studart, onde após logo à esquerda, encontrava-se o Country Clube, instituição fechada onde a colônia britânica confraternizava-se com a alta sociedade local. Ali morria o Outeiro e começava uma mata fechada que se estendia até à altura do Mucuripe, então um distrito isolado e quase inteiramente ocupado por humildes pescadores.

A Avenida Santos Dumont adentrava mais algumas quadras além da Barão de Studart, com algumas edificações modernas, com especial relevo para o Palácio do Plácido de Carvalho, que viria a ser impiedosamente demolido alguns anos mais tarde. A área relativa à “mata da Aldeota”, era frequentemente denunciada por moradores pioneiros que consideravam o lugar como “coito de ladrões”.

A cidade dos anos 30/40 constituía-se principalmente do centro – Praça do Ferreira e sua vizinhança e ruas residenciais servidas pelas diversas linhas de bondes. A expansão era lenta a partir do término dos trilhos, como, por exemplo, o bairro do Alagadiço, onde havia uma concentração residencial até a altura da Igreja de São Gerardo, seguindo-se amplos espaços vazios e algumas chácaras de famílias mais abastadas.

O mesmo ocorria com o Benfica, os trilhos terminavam defronte ao Dispensário dos Pobres, instituição caritativa, mantida por religiosas. Daí em diante começava o Concreto da Parangaba, longa pista de cimento e pedra construída ao tempo do Governo Washington Luiz e que, com a Revolução de 30, ganhou a denominação de Avenida João Pessoa.

À margem da avenida João Pessoa, foram surgindo residências de classe média; um dos pioneiros da área era o empresário Oliveira Paula, proprietário da Empresa São José, cujos ônibus, bem modernos e confortáveis serviam às linhas do Benfica e de Parangaba e fizeram concorrência aos bondes. Os ônibus eram identificados por uma inscrição nos para-choques dianteiros, havia o “Rio de Janeiro”, o “Bandeirante”, o “Rio Grande do Sul”, e o mais famoso deles, o “Trevo da Felicidade”; motoristas e passageiros se conheciam e se tratavam pelo primeiro nome, nos bons tempos em que até os ônibus tinham sua própria identidade.

No velho Calçamento de Messejana, oficialmente Avenida Visconde do Rio Branco, mais conhecido por Joaquim Távora, havia uma uniformidade no casario, residências geminadas, algumas simples, outras nem tanto, que se derramavam de um lado e do outro dos trilhos de bondes até a chamada “terceira secção”, bem antes da confluência com a Avenida Pontes Vieira. O destaque arquitetônico do Joaquim Távora ficava por conta do Colégio das Doroteias, com sua bonita capela, junto à qual funcionava o Convento das Carmelitas.



Avenida Visconde do Rio Branco, antigo Calçamento de Messejana com o bonde do Joaquim Távora - imagem do Arquivo Nirez

Depois da “terceira secção” uma outra construção se diferenciava da maioria, a residência da família de Alberto Costa Sousa, casado com dona Iracema Gentil, filha do coronel José Gentil, fundador da Gentilândia.

Modesto era o José Bonifácio, outro bairro servido pelos bondes da Ceará Light, hoje incorporado à região central, mas que ainda guarda resquícios dos anos 40, com algumas casinhas baixas, de arquitetura simples. No período da guerra, a Polícia Militar, dona de um quartel naquela área, cedeu o imóvel ao Exército, que ali instalou o 29º Batalhão de Caçadores, o então famoso “vinte e nove” apelidado pelo povo de “terror das areias”, dadas as estripulias cometidas pelos seus soldados nas zonas mais afastadas do centro da cidade.



Quartel da PM que um dia abrigou o famoso "29, o terror das areias". Fica na Praça José Bonifácio - imagem site da PM 

Pobre também era a Prainha, um arruado de casebres nas vizinhanças do Seminário, moradias de pescadores afiliados às Colônias da Praia de Iracema e da Prainha. O bairro possuía um referencial bastante conhecido além do Seminário. Era o Ideal Clube, que construiu moderna sede naquela zona em meados dos anos 30, depois de deixar sua sede das Damas. O Seminário era uma espécie de prolongamento do bairro da prainha, servido por outra linha de bondes, cujo terminal ficava na então denominada Rua da Escadinha, hoje Almirante Jaceguay, em frente à Igreja da Conceição da Prainha.

Além, havia a periferia miserável, como o Morro do Moinho, território atualmente ocupado pelo bairro do Pirambu, a cujos limites pertencia o baixo meretrício da cidade, ponto final das prostitutas envelhecidas, o Arraial Moura Brasil, conhecido popularmente como Curral. A este se podia ter acesso pelo bonde da Linha Férrea, que saía da Praça do Ferreira até a Praça Castro Carreira, a Praça da Estação.



Bonde da linha Via Férrea, que terminava na Praça da Estação - imagem Arquivo Nirez

Paralela ao muro do cemitério São João Batista, corria a Rua Tijubana, típica viela dos bairros pobres, mas a qual também chegavam os bondes da velha Light, a linha Soares Moreno. A Tijubana interligava o bairro Soares Moreno ao Jacarecanga. As casas eram humildes e abrigavam pessoas modestas. 



Bonde Soares Moreno - Arquivo Nirez

Rua Tijubana, por onde corria o bonde da linha Soares Moreno (imagem google) 


Extraído do livro – O Liceu e o Bonde na paisagem sentimental da Fortaleza-província, de Blanchard Girão. Editora ABC - Fortaleza, 1997   

sábado, 13 de março de 2021

A Capital da Província

 

Politicamente inexpressiva, Fortaleza não passava de um pequeno burgo até as primeiras décadas do século XVIII. A chegada do primeiro governador do Ceará, Bernardo Manuel de Vasconcelos, só iria acontecer em 1799. Ao chegar, o governador espantou-se com a pobreza da capital, onde havia escassez absoluta de todas as coisas de primeira necessidade. Surpreso, o governador  fez um paralelo entre a capital e a Vila de Aracati, onde havia um comércio estabelecido, numerosa população, acrescentando que “a civilidade e a polidez de seus habitantes fazem desta vila assaz recomendável, juntando a isso uma agradável e regular arquitetura das casas, e no grande número delas, os donos possuem vultosos cabedais”, enquanto a Vila de Fortaleza era “um montão de areia profundo, apresentando do lado pequenas casas térreas, encontrando nesta classe a muito velha e arruinada casa dos governadores”. Nesse mesmo ano Capitania do Ceará foi desmembrada da Capitania de Pernambuco e Fortaleza foi escolhida capital.



Fortaleza na época em que foi elevada à categoria de Vila, em 1726. Desenho atribuído ao capitão-mor Manuel Francês, que a instalou. Era a Praça do Conselho, atual Praça da Sé. Em cima, à direita, o forte de N.S. da Assunção, com a bandeira portuguesa. 

No início do século XIX, Fortaleza ainda tinha seu crescimento restrito à margem esquerda do Riacho Pajeú, acompanhando as sinuosidades do rio, principal fonte de abastecimento de água. O riacho dividia as terras imediatas à fortaleza de Nossa Senhora da Assunção em duas zonas distintas: o Outeiro da Prainha na margem direita e a margem esquerda, onde a Vila se estendia.       

Por volta de 1810, segundo registros do inglês Henry Koster, que visitou a Vila do Forte naquela época, o lugar tinha cerca de dois mil habitantes, e não era compreensível a razão da preferência pelo local. Não havia rios nem cais e a praia era de difícil acesso; A vila erguia-se ao pé do forte que lhe deu o nome, e tanto a fortaleza quanto o paiol da pólvora erguiam-se sobre uma montanha de areia.

Ainda de acordo com o inglês, a vila apresentava formato quadrangular, com quatro ruas partindo da Praça do Conselho (atual Praça da Sé), onde se encontravam o pelourinho e a igreja matriz. As quatro ruas mencionadas por Koster, eram a antiga Rua da Cadeia ou do Quartel; (atual Gustavo Sampaio), a Rua da Boa Vista, atual Floriano Peixoto; a Rua dos Mercadores, na margem oriental do riacho Pajeú (atual Conde D’Eu) e a Rua da Fortaleza, depois chamada de Rua da Misericórdia, atual Rua Dr. João Moreira; havia ainda outra rua, a das Flores, bem longa, correndo paralelamente, mas sem conexão, e que passava defronte a matriz. (atual Rua Castro e Silva).

Em 1813, a Câmara Municipal possuía uma planta parcial da vila, elaborada pelo engenheiro Antônio José da Silva Paulet, que posteriormente a complementou, incluindo outras áreas que demonstravam a viabilidade de expansão no sentido Leste-Oeste.



A planta de Silva Paulet, de 1813, reproduz a vila avistada por Koster. No mapa já estão presentes os caminhos que orientam o seu crescimento, dispostos de forma radioconcêntrica: estradas de Jacarecanga, do Soure, do Arronches, de Aquiraz, da Precabura e a Picada de Macoripe. A cidade cresceu obedecendo ao traçado xadrez proposto por Paulet.
   

Por ordem de Dom Pedro I, a vila é elevada à categoria de cidade, no dia 17 de março de 1823, passando a ser chamada de Fortaleza de Nova Bragança. Em 1842 há registros de despesas municipais com o alinhamento de becos e ruas, sendo aplicada uma multa de trinta mil réis aos que desobedecessem às determinações da Câmara, ou descumprisse as normas.

No ano seguinte, havia a preocupação com o nivelamento e aterro das ruas, e posteriormente, os proprietários das casas tiveram o prazo de apenas 8 dias para pavimentar os logradouros. A pavimentação era incipiente, não atendia às necessidades, sendo comuns as reclamações acerca de pedras soltas, que dificultava o tráfego de veículos. Era proibido o tráfego de carros puxados por bois nas ruas calçadas, sob pena de multa aos infratores no valor de quatro mil réis ou 8 dias prisão.


Rua Floriano Peixoto - início do séc. XX

Quanto à projeção política só começou com a emancipação do Brasil de Portugal em 1822 e se processou de forma muito lenta. Durante o governo imperial, que se estende até 1889, ano da Proclamação da República, o Brasil viveu uma fase de concentração política. É dessa fase a criação das províncias do império, entre elas, a do Ceará. 

A situação de estagnação só começou a ser superada a partir de 1866, quando a cidade passou a ser o centro coletor de algodão, couro, açúcar e café do Estado. Nessa época, o algodão produzido no interior atingia os maiores preços no mercado internacional, por causa da suspensão da produção nos Estados Unidos, envolvido na guerra de Secessão, entre 1861 e 1864, para a Inglaterra.  

O escoamento da produção através do porto de Fortaleza, fez com que a cidade, capital e centro administrativo da Província, ultrapassasse Aracati também em importância comercial. O que fez Fortaleza vencer a disputa pela hegemonia no Ceará foi o fato de ter sido escolhida como capital da província. O sistema político-administrativo do Império criou os mecanismos políticos e institucionais que favoreceram Fortaleza. Este fato e o volume maior da produção para o comércio externo contribuíram para que a maior parte dos investimentos governamentais em edificações, infraestrutura, e serviços fossem aplicados na capital. 


Rua da Lagoinha, depois Rua do Trilho de Ferro -  um estreito caminho que, depois de alargado com mais de 40 palmos para o poente, serviria à primitiva Estrada de Ferro de Baturité

Com a abertura de estradas de ferro da capital para os principais centros urbanos do interior, Fortaleza assumiu também a hegemonia política. A Estrada de Ferro Baturité foi criada no dia 25 de setembro de 1870, iniciou as atividades de 1873, e tinha como ponto final à cidade de Baturité, na região produtora de café. Em 1878 foi criada outra ferrovia, a Estrada de Ferro Sobral, que ligava Camocim a Sobral. Em 1909, quando a ferrovia alcançava a cidade de Acopiara, a Estrada de Ferro Baturité foi juntada com a Estrada de Ferro Sobral e criada a Rede de Viação Cearense.


Fontes:

Revista do Instituto do Ceará: Fortaleza, capital do Ceará: transformações no espaço urbano ao longo do século XIX – autora Maria Clélia Lustosa Costa. 2014/03.

Revista Fortaleza: De Vila à Capital da Província – autor Erivaldo Carvalho. 30/04/2006

Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza, livro de Gisafran Nazareno Mota Jucá

Fotos do Arquivo Nirez - Mapas do livro "A Cidade do Pajeú", de Raimundo Girão