quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A História do Cine São Luiz

Em 1938 quando as picaretas começaram a ser utilizadas na demolição do velho cinema Politheama, nasceu a expectativa de como seria o edifício a ser erguido no local. O projeto abrangia o prédio do Politheama – ultimo  reduto do cinema mudo na cidade – além de alguns imóveis vizinhos, antigos estabelecimentos comerciais, como a Casa Amadeu e a Casa Americana. 

Praça do Ferreira, antes do edifício São Luiz
 
As obras foram iniciadas em 1938, e por razões que nunca foram claramente explicadas, atravessa os anos 40 com um prédio inacabado, que provoca a admiração e curiosidade popular. Havia a promessa renovada de breve inauguração. No início de 1940, o esperado Cine teatro São Luiz parecia bem próximo, pois o edifício erguia-se imponente, para orgulho dos fortalezenses.  Passam os inesquecíveis anos de guerra, com a Praça do Ferreira ornamentada por um prédio inconcluso, a gerar expectativas e provocar as esperanças populares de um novo e moderno Cine Teatro. 


Nos anos 50 dizia-se acerca do edifício - periodicamente objeto de pequenos trabalhos  internos - que Luiz Severiano Ribeiro nunca o inaugurara porque uma cartomante previra sua morte logo após a abertura do novo cinema. Essa versão é contestada por pessoas de credibilidade, conhecedoras do empresário. A explicação para a demora na inauguração seria a opção feita pelo empresário em priorizar as atividades no Rio de Janeiro, sob forte pressão de concorrentes, e a inauguração relativamente recente do Cine Diogo, que demandara altos investimentos, e o empresário acreditava que, Fortaleza não comportaria um novo cinema de luxo na cidade em tão curto espaço de tempo.


Assim, um bom período transcorre até que a cidade recebesse o luxuoso presente. O Cine São Luiz seria teria sua inauguração solene a 26 de março de 1958, às 21h30min, apresentando a película "Anastácia". Para a imprensa e alguns convidados especiais, a Empresa Luiz Severiano Ribeiro concedera o privilégio, dois dias antes da abertura oficial, de conhecerem o cinema, quando foi exibido o filme “Suplício de uma Saudade”.



A inauguração do Cine São Luiz foi objeto de um documentário realizado pela Atlântida Cinematográfica, com narrativa do afamado repórter Heron Domingues. O filme faz um panorama da cidade, fala dos convidados e da festa de inauguração. à Noite, centenas de curiosos se aglomeram em frente ao São Luiz, para assistir à chegada dos convidados. 

O São Luiz surgia como um dos mais luxuosos do Brasil. Dispunha de auditório com área total de 2.653m², 1.300 lugares, palco com recursos para teatro, imponente hall e escadarias para o balcão, piso e revestimento em mármore de Carrara, lustres de cristal importados da Checoslováquia e ricos tapetes. Foi o primeiro a utilizar o então revolucionário Cinemascope, cuja tela era bem mais ampla do que a normal, a implantar o som estereofônico, a oferecer poltronas estofadas e ar condicionado impecável.

No momento da inauguração, o São Luiz contava com três gerentes, 55 empregados e 17 recepcionistas. O uso do paletó era obrigatório para os homens, e as mulheres espontaneamente, se vestiam com roupas de baile, com muitas joias e adereços como luvas e chapéus.  Durante anos, nas sessões noturnas, principalmente a de 21h30min, nas noites de domingo, populares e frequentadores da Praça do Ferreira, se juntavam na frente do cinema para assistir ao desfile de modas.

Em mensagem  distribuída em impresso no ato inaugural do Cinema, Luiz Severiano Ribeiro saudou os convidados com um breve discurso: 

Entregando o São Luiz ao público cearense, sinto-me feliz de ter podido realizar uma aspiração que sempre tive de dotar Fortaleza com uma casa de espetáculos à altura do seu progresso e do seu povo. O São Luiz está na vanguarda  dos melhores cinemas e com as mais modernas instalações, som e ar condicionado. Saudando o povo de minha terra, sentir-me-ei reconhecido se meus conterrâneos fizerem do São Luiz – o seu cinema.

Com a crescente popularidade da televisão, a fuga de empreendimentos do centro e o surgimento de cinemas nos shopping centers, o Cine São Luiz começou a perder seu público e iniciou um processo de decadência. O primeiro indicativo de que o cinema não era mais o mesmo, foi a abolição do uso de paletó, na tentativa de atingir uma faixa de público mais popular. Com isso, os antigos e tradicionais frequentadores se afastaram de vez.

Em determinada época, a queda de frequentadores se acentuou tanto, que o São Luiz passou a exibir filmes de Kung Fu e pornôs de quinta categoria, com a declarada intenção de aumentar a arrecadação. Tudo em vão: em 18 de agosto de 2005 o grupo Severiano Ribeiro anunciou o encerramento das atividades do Cinema.  O espaço foi arrendado pelo grupo Fecomércio na tentativa de continuar operando, mas o baixo rendimento da bilheteria determinou a inviabilidade de manter o São Luiz em funcionamento, em julho de 2010.

O prédio permaneceu fechado por quatro anos, até começar a ser reformado em dezembro de 2013, numa obra na qual foram gastos em torno de R$ 15 milhões, com foco na modernização das instalações, mantidas as características arquitetônicas originais. Finalmente, em 22 de dezembro de 2014, o equipamento totalmente recuperado, foi reinaugurado 56 anos depois de sua primeira inauguração, com quase toda sua lotação esgotada, uma vez que cerca de 1.100 pessoas compareceram ao evento. 


Pesquisa:

Ary Bezerra Leite – A Tela Prateada

Wikipedia

Jornais 
fotos do arquivo Nirez

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Os anos de guerra e o Blackout em Fortaleza

O Ceará ingressou nos anos 40 sob o impacto da Segunda Guerra Mundial. Um intenso noticiário sobre os afundamentos de navios brasileiros por submarinos inimigos, Buarque, Olinda, Cairu, Cabedelo, Parnaíba, e outros, geravam manchetes nos jornais com narrativas dramáticas sobre os afundamentos. 

Depois começaram a chegar a Fortaleza as vítimas: os náufragos americanos sobreviventes, recolhidos nas praias de Camocim após o torpedeamento do Eugen, perto do farol de Jeriquaquara;  em seguida, os náufragos portugueses do Balkis, afundado a 63 milhas de Fortaleza, acolhidos no Astoria Hotel, no centro da Cidade. Há uma comoção generalizada, acompanhando a indignação nacional, que se transforma em festiva explosão, a 22 de agosto de 1942, quando o Brasil declara guerra ao Eixo. 

desembarque dos pracinha brasileiros na Itália
A história da capital ficou marcada por todos esses eventos: as manifestações antifascistas, organizadas pela Comissão de Defesa Nacional; a mobilização de reservistas para o serviço ativo do Exército; a presença das Pirâmides para a Vitória, construídas pela população com materiais inservíveis que seriam aproveitados na produção de guerra; a intensa movimentação aérea das bases aliadas do Pici e do Cocorote; a partida dos pracinhas para a Itália; os militares americanos inseridos no cotidiano da cidade; as hostilidades contra súditos do Eixo; o racionamento de combustíveis, os transportes a gasogênio, e os dirigíveis blimps nos céus da cidade. 

Em 1942 têm inícios os exercícios de defesa passiva antiaérea, após ampla divulgação de instruções para a população e determinações rígidas para os serviços públicos. O sinal de alarme era dado por meio de sirenes e sinos, com toques breves, repetidos a curto intervalo. A orientação para os pedestres, em circulação pela cidade, era procurar abrigo imediatamente, nos edifícios mais próximos;  nas ruas descobertas deitar-se de bruços. As instruções, bastante detalhadas, determinavam a paralisação de todos os veículos em caso de ataque, e estabelecia procedimentos para condutores e passageiros dos tramways.

Nessa época foi decretado rigoroso blackout na região costeira de todo o Estado, segundo determinações das autoridades, no sentido de que fossem eliminadas todas as luzes que pudessem ser observadas. A execução plena dessa medida ocorreu na noite do dia 15 de dezembro de 1942: às 19:30 horas foi apagada a iluminação interna dos prédios, e o escurecimento total da cidade, meia hora mais tarde. No primeiro dia do corte de energia foi feito por desligamento da força na própria usina; posteriormente foi transferida para a população a responsabilidade pelo blackout da cidade. 


flagrante de uma passeata ocorrida no dia 18.08.1942. Um popular carrega um retrato de Getúlio Vargas pedindo ao presidente que saia de cima do muro.

O Jornal “Gazeta de Noticias” publicou uma nota da Secretaria do Serviço de Defesa Passiva Antiaérea de Fortaleza, onde se estipulava que, em função do Estado de Guerra, o movimento nas ruas deveria ser encerrado às 22 horas; a iluminação pública não seria permitida a partir desse horário, principalmente na praia e no centro da cidade. Dentre estas normas do blackout, por tempo indeterminado, as que se referiam às residências, recomendavam:  “todas as vidraças, venezianas, etc, externas, deverão ser cobertas com papel ou fazenda preta, ou reforçadas com madeira, de modo que não haja filtração da luz”.

Na noite de Natal desse ano, a “Missa do Galo” deixou de acontecer à meia-noite, em função das regras rígidas de iluminação noturna. Em 21 de dezembro de 1942, o “Correio do Ceará” anunciou:  “em consequência do blackout adotado na cidade, Fortaleza quebrará este ano, uma tradição, não realizando suas missas das 24 horas, no Natal, tão a gosto do povo católico e sempre concorridíssima. A providência, porém, não prejudicará o povo católico que no dia 25 poderá acorrer em massa para as igrejas, comemorando liturgicamente a data do nascimento de Cristo.” 

A obrigatoriedade de cumprimento das leis do blackout permaneceu em vigência até 1° de dezembro de 1943.

Ainda em 1942, as dificuldades se ampliam com novos problemas. O jornal “O Povo” descreve os problemas da cidade e a grave crise por que passa a Ceará Light, concessionária da energia e dos transportes públicos, impossibilitada de importar novos equipamentos e materiais imprescindíveis à manutenção preventiva: “Fortaleza está vivendo dias de falta. É a cidade  dos sem. Sem água, sem carne, sem leite, sem luz”. 

Com o inverso escasso de 1941 e a demora das chuvas de 1942, as cacimbas secaram. A água do Acarape, principal fonte de abastecimento de Fortaleza, não chegava a abastecer 6.000 prédios. A usina da Light consumia   em suas caldeiras as águas do Pajeú, os poços tubulares da usina não produziam nem 10% da água que as máquinas necessitavam e consumia 20% de sua força no tratamento da água para aproveitá-la novamente. Quando o Pajeú secou, a Light passou a utilizar a água do mar que, apesar de tratada, tinha efeito corrosivo sobre os metais.


Fontes:

A História da Energia no Ceará, de Ary Bezerra Leite
Ideal Clube – história de uma sociedade, de Vanius Meton Gadelha Vieira 
fotos do arquivo Nirez, Ah, Fortaleza e do livro de Ary Bezerra Leite 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Estação de Otávio Bonfim


A estação do Quilômetro 3 foi inaugurada em 1922 pela Rede de Viação Cearense. Logo depois teve o nome alterado para Matadouro por estar junto na época a um abatedouro de gado. O local escolhido para a instalação da estação,  o bairro Farias Brito, surgiu de uma povoação que margeava a antiga Estrada para o Soure (atual Caucaia). 


Até 1917, a linha instalada pela antiga Estrada de Ferro Baturité passava por outro trajeto, que corresponde hoje a Avenida Tristão Gonçalves, até a Estação Central. A partir daí, os trilhos foram arrancados e um novo trajeto foi estabelecido mais a oeste do centro, cortando os bairros do Jacarecanga, Otávio Bonfim e Porangabuçu, chegando até Couto Fernandes.   

Nesse ponto se juntava com a linha antiga, pouco antes da futura estação de Couto Fernandes, e daí seguindo rumo sul do Estado, fazendo nesse trajeto uma grande tomada à esquerda da linha original. Anos mais tarde o nome da estação do Matadouro foi alterado para Otavio Bonfim, em homenagem a um engenheiro da RVC. 

No mesmo atordoamento chegaram à Estação do Matadouro.
E, sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e se
viram levados através da praça de areia, e andaram por um calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de arame
onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo
fogo. Só aos poucos se repuseram e se foram orientando.
(Rachel de Queiroz - O Quinze, pág. 39)


A estação do Matadouro, mais tarde Otávio Bonfim, é citada no livro "O Quinze" de Rachel de Queiroz, como porta de entrada para as pessoas que sofriam com a seca, procedentes de todo o interior do Ceará. Mas a estação só foi inaugurada em 1922, não poderia, portanto, ter sido utilizada pelos retirantes da seca de 1915. Como o romance foi publicado em 1930, pode se concluir que a escritora ilustrou a história utilizando o local que só existia de fato, na época em que a obra foi escrita. 

Nas proximidades da estação, no bairro do Alagadiço, foi formado um dos famosos campos de concentração,  local onde os retirantes ficavam confinados, vigiados por soldados. Ali os retirantes podiam fazer tudo, contanto que não saíssem de lá. O governo fornecia alguma alimentação, água, e prometia soluções que nunca chegaram.  O objetivo era evitar que os miseráveis, vítimas da seca, entrassem em Fortaleza. Foram os flagelados que ajudaram a formar os bairros Alagadiço, Moura Brasil, e Pirambu. 

Conceição atravessava muito depressa o Campo de Concentração.
Às vezes uma voz atalhava:
- Dona, uma esmolinha...
Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro,
fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento.
Que custo, atravessar aquele atravancamento de gente imunda, de latas
velhas, e trapos sujos!
Mas uma voz a fez parar.  me conhece?
( Rachel de Queiroz - O Quinze, pág. 24)


Em 1979, o prédio original da estação foi demolido para acolher uma nova. Em maio de 2009, parte da linha, o trecho entre Parangaba e Otavio Bonfim foi desativado. Com isso, o trem da Metrofor passou a rodar apenas da estação de Parangaba para a estação terminal de Vila das Flores, em Maracanaú. O trecho Estação João Felipe/Otavio Bonfim foi mantido com um trem cobrindo ida e volta entre os dias 11 e 17 de maio, e sustado nesse dia pois o número de passageiros em sete dias não havia passado de quatro por viagem.





Com a implantação do Metrofor, gradativamente, as antigas estações ferroviárias foram sendo demolidas, e a de Otávio Bonfim não escapou da sina: foi demolida parcialmente,  restando as colunas de sustentação e as fundações. Agora, um grupo de ativistas luta pela restauração e preservação da Estação do Otávio Bonfim, e pelo reconhecimento de sua importância histórica e cultural. Uma vez recuperado, o prédio deveria abrigar um memorial para lembrar vítimas das secas.

Lembrando que Fortaleza já contou com um Museu da Seca, que estava localizado no Palacete Carvalho Mota, no Centro, na esquina das ruas General Sampaio e Pedro Pereira. O prédio abrigou o Museu da Seca no período de 1985 até 2003, ano em que fechou as portas para uma restauração que não se concretizou. O imóvel ainda passa por reformas, mas com previsão de reabrir em breve, não mais como museu. 

fotos do site Estações Ferroviárias
fotos atuais Fortaleza em fotos
     

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Encontros Inusitados: Padre Cícero x Lampião x Coluna Prestes

A Coluna Prestes foi um movimento encabeçado por líderes tenentistas, ocorrido entre os anos de 1925 a 1927.  O movimento deslocou-se pelo interior do país pregando reformas políticas e sociais e combatendo o governo oligárquico do presidente Arthur Bernardes (1922 – 1926), que governou o País sob constante estado de sítio.  

Em sua marcha pelo Brasil, os integrantes da Coluna Prestes denunciavam a miséria da população e a exploração das camadas mais pobres pelos líderes políticos.

Alguns membros da Coluna Prestes em sua passagem pelo Ceará

Sob o comando principal de Miguel Costa e de Luis Carlos Prestes, a Coluna enfrentou as tropas regulares do Exército ao lado de forças policiais dos vários Estados por onde passou, além de tropas de informais formadas por jagunços e outros “fora-da-lei”, que partiam para o confronto, estimulados por promessas oficiais de anistia. 
Durante dois anos e meio a Coluna Prestes percorreu 25.000 km pelo interior do Brasil. Apesar dos esforços, não conseguiu sensibilizar a população que, influenciada pela propaganda oficial, temia a presença dos revolucionários em seu território.

Por volta de 1925 rumores davam conta de que a Coluna Prestes se aproximava do Ceará. Diante disso, o governo federal encarregou o deputado federal Floro Bartolomeu de organizar a defesa do território cearense. 
Em dezembro de 1925, Floro chegou a Juazeiro trazendo armas, munição e dinheiro para organizar os chamados “batalhões patrióticos”, cujos componentes eram jagunços enviados por latifundiários da zona sul cearense. Com a proximidade dos tenentes, vários núcleos urbanos se despovoaram tamanho era o pânico dos moradores. 

Mas, não satisfeito com as medidas até então adotadas para enfrentar a Coluna Prestes, Floro Bartolomeu acabou por protagonizar um dos fatos mais pitorescos da passagem dos revoltosos pelo Ceará: resolveu convidar o cangaceiro Lampião, para combater os rebeldes e defender a legalidade.  Sediado em Campos Sales, cidade localizada no sul cearense, com seus batalhões de jagunços, Floro teria enviado um mensageiro portando uma carta para o “rei do cangaço” – carta referendada e assinada também por Padre Cícero – pedindo a presença do cangaceiro em Juazeiro.  

Padre Cícero e Floro Bartolomeu - a união entre religião e política no sertão do Ceará

Lampião por ser devoto de Padre Cícero, evitava atacar o Ceará, mas ao receber o convite do padre apressou-se a atendê-lo, chegando a Juazeiro com cerca de 50 homens, no inicio de março de 1926, quando a Coluna já havia deixado o Estado.  Naquela cidade, num único e marcante encontro, Lampião, após ser aconselhado por Padre Cícero a deixar aquela vida de bandidagem, comprometeu-se a combater a Coluna Prestes, recebendo armas, fardamentos e uma patente de capitão do Exército.

Capitão Virgulino Ferreira

A presença de Lampião em Juazeiro provocou alvoroço. Uma multidão se formou para ver o famoso cangaceiro e seu bando. Lampião concedeu entrevistas, bateu fotos, ofertou esmolas à igreja local, recebeu visitas e foi agraciado com presentes, sem ser incomodado pela polícia. 
O bando deixou Juazeiro satisfeito, sobretudo com o documento que dava ao chefe a “patente” de capitão – o que correspondia ao perdão de seus crimes e a não ocorrência de mais perseguições por parte da polícia – que havia sido assinado a pedido de Padre Cícero pela única autoridade federal em Juazeiro: um agrônomo do Ministério da Agricultura, chamado Pedro Albuquerque Uchoa.

Conta-se que chamado mais tarde a Recife, para explicar tamanho absurdo, o agrônomo teria dito aos seus superiores que, naquelas circunstâncias, e com o medo que tinha de Lampião, ele teria assinado até a demissão do presidente Arthur Bernardes.

Contudo, Lampião não foi combater a Coluna Prestes. O cangaceiro, agora definitivamente nomeado Capitão Virgulino Ferreira, talvez tenha temido a fama de guerreiros dos tenentes, talvez tenha ficado irritado ao descobrir que a “patente” não tinha valor legal, portanto, não valia nada. Virgulino ainda tentou falar com Padre Cícero, mas este se recusou a recebê-lo novamente. 

O patriarca de Juazeiro foi duramente criticado pela imprensa de Fortaleza, a qual usou o episódio como prova da proteção que o padre fazia a criminosos. Apesar do acontecido, Lampião nunca perdeu o respeito nem a admiração que tinha por Padre Cícero. 

Padre Cícero Romão Batista

Em junho de 1927, Lampião voltou ao Ceará, após uma fracassada tentativa de saquear Mossoró, no Rio Grande do Norte. O bando ocupou Limoeiro do Norte, exigindo uma quantia em dinheiro como “resgate”.


bando de Lampião em Limoeiro do Norte 

Chegando a Limoeiro, e ciente de que pisava em terras cearenses, Lampião ordenou aos seus bandoleiros que nada roubassem, pois em solo em que pontificava o padre Cícero não era para ser atacado. Supersticioso, o cangaceiro tinha pelo velho padre verdadeiro fanatismo. Os fazendeiros cearenses foram por isso, poupados da sanha destruidora de Lampião e seu bando. Antes de atingir a cidade, Lampião hospedou-se na casa de fazenda do coronel Anísio Batista dos Santos na Lagoa da Rocha, distante da sede 36 quilômetros. No dia 15 de junho, Virgulino Ferreira encontrou-se com o prefeito, coronel Felipe Santiago, exigindo deste a quantia de 15 contos de Reis pelo resgate da cidade que fora quase que totalmente abandonada pela população. O prefeito expôs a situação ao vigário padre Vital Gurgel Guedes e a outras autoridades. Foi então feito um apelo ao cangaceiro para que reduzisse a quantia imposta, pois as pessoas de posses haviam se retirado para um lugar seguro diante da aproximação do bando.Lampião diminuiu para 6 contos de Réis, ao que as autoridades asseguraram ser impossível juntar, acrescentando que só dispunham de 2 contos, o que levou Sabino, valente cangaceiro, a dizer que aquilo era uma ninharia. Lampião notando a intromissão de Sabino sem que tivesse sido chamado a isso, aceitou os 2 contos sem protesto.

Dias após deixar Limoeiro, Lampião sofreu uma emboscada feita por 500 policiais, perdendo grande parte das provisões, munições e montarias. 
Com poucas armas, a pé na caatinga, os cangaceiros travaram em seguida outro tiroteio com a polícia, desta vez na Serra da Macambira, em Pernambuco. apesar da escassez de armamentos, os bandidos derrotaram centenas de policiais, fazendo aumentar nos sertões a lenda do “rei do cangaço”. Ajudados por coiteiros, os cangaceiros escaparam para os sertões de Pernambuco.    

A Outra Versão para o Encontro

Os fiéis juazeirenses até hoje reagem com indignação a esse relato do encontro entre Padre Cícero e Lampião. Segundo uma versão que veio a público em data recente, Lampião teria “ouvido falar” que Padre Cícero precisava de ajuda para combater os “revoltosos”, e compareceu espontaneamente a Juazeiro.
Pego de surpresa com a presença dos cangaceiros, e sem outras opções, Padre Cícero viu-se obrigado a hospedar Lampião, por temê-lo e para evitar um confronto do bando com a população.  Padre Cícero encontrou-se então, duas vezes com o rei do cangaço e não lhe teria dado nem as armas nem a “patente”, porque como prefeito, não tinha poderes para tanto. 

O secretário de padre Cícero Benjamim Abraão em fotos dos anos 1930 ao lado do bando de Lampião. O libanês registrou as únicas imagens fotográficas do cangaço.

Segundo ainda essa versão, foi o secretário de Padre Cícero, o libanês Benjamin Abraão, que teria sugerido, em tom de brincadeira, que a “patente” poderia ser dada pelo agrônomo. Vendo o interesse do cangaceiro, Abraão viu-se obrigado a convencer Pedro Uchoa a redigir o documento.  

Benjamim Abraão ao lado de Padre Cícero 

Também teria sido sua a ideia de confeccionar e dar fardamentos dos ”batalhões patrióticos” aos cangaceiros. Essa versão exime totalmente tanto o Padre Cícero quanto Floro Bartolomeu de qualquer responsabilidade na contratação dos serviços do bando de Lampião. 


fonte: História do Ceará de Airton de Farias