terça-feira, 23 de novembro de 2021

A Zona do Mucuripe

Mucuripe - anos 30

Zona era o termo usado até por volta dos anos 60 para designar a região dos prostíbulos da cidade. Era onde estavam localizadas as pensões alegres, cabarés, casas de tolerância, boates, lupanares e mais uma variedade de nomes que ao fim e ao cabo, designavam o mesmo tipo de estabelecimento que explora a prostituição. Fortaleza tinha algumas zonas famosas: a do Mucuripe, do arraial Moura Brasil, do Centro, e outras menores, dispersas nos bairros.


Jangadas do Mucuripe - provável anos 50

O Mucuripe já era conhecido por causa de sua colônia de pescadores, e das aventuras dos jangadeiros Manoel Jacaré, Tatá, Jerônimo, Manoel Preto que no dia 14 de setembro de 1941, partiram rumo ao Rio de Janeiro, então capital federal, em busca de reconhecimento dos direitos de sua categoria. Na ponta do Mucuripe, meia dúzia de casas de palhas, dunas alvíssimas, muitos coqueiros e cajueiros. Seus habitantes viviam única e exclusivamente da pesca, que era farta e diversificada. Na orla, algumas casas de pescadores, muita vegetação, a igrejinha de São Pedro e um grande pedregal na frente, onde moradores locais faziam ponto.

Os equipamentos no Mucuripe eram poucos naquela época: havia o símbolo maior do Mucuripe, o velho farol, já inativo quando a zona de prostituição ensaiava os primeiros passos; o prédio do SERVILUZ – Serviço de Luz e Força, Usina de que abastecia a cidade de energia elétrica, inaugurada no dia 23 de março de 1955; seis meses depois entrava em funcionamento experimental o Moinho Fortaleza, do grupo J. Macedo; e o promissor Porto do Mucuripe, que acabou se tornando uma fonte inesgotável de novos clientes para as prostitutas, vindos de terras diversas e distantes: os marinheiros estrangeiros.

A prostituição no bairro surgiu praticamente com o início das atividades do Porto, inaugurado em 1947. Em 1952 cerca de 600 mulheres foram ameaçadas de despejo pelas Secretaria de Polícia, em razão da pressão exercida por grupos familiares, que exigiam a transferência dos prostíbulos para outros lugares. Os botequins e a prostituição eram acusados de promover a degradação do lugar.

A zona de baixo meretrício do Mucuripe teve seu apogeu a partir da década de 60, quando a rua principal do então distante bairro, com inúmeros e movimentadíssimos cabarés, com músicas bregas e luzes coloridas, chegou a ser conhecida como a “Las Vegas do Ceará”. As atividades foram incrementadas com a chegada de centenas de meretrizes que ocupavam a região litorânea, ao longo da denominada “Rua de Frente”, que foram intimadas a deixar seus estabelecimentos por determinação da prefeitura, para construção da atual Avenida beira-Mar.


A ocupação do entorno do farol ocorreu em maior escala por volta do início dos anos 60, quando teve início a construção da avenida Beira-Mar. Cerca de 1.200 mulheres, que atuavam no ramo da prostituição foram removidas da zona de praia para aquela região

As mulheres se estabeleceram na região portuária, nas proximidades do porto, e enfrentaram resistência tanto por parte das famílias residentes, quanto por parte das outras prostitutas, que já atuavam no local, temerosas com o aumento da concorrência. Após este primeiro momento, de transferência do meretrício do Mucuripe, a zona do Farol receberia outros grupos de mulheres, das pensões do Centro da cidade, do Curral, e da zona da rua Franco Rabelo, todas expulsas de seus locais originais pela Secretaria de Polícia.

Nesta época o Porto do Mucuripe recebia embarcações com bandeiras de várias nacionalidades, de forma rotineira. A circulação constante de marítimos de diversas culturas, a e a proximidade com o porto, acabou se tornando uma grande vantagem para os prostíbulos, que prosperaram, e se multiplicaram.


Farol do Mucuripe nos anos 70

No Mucuripe, essas mulheres constituíram família, criaram filhos enquanto continuavam exercendo a profissão mais antiga do mundo. algumas se casaram com antigos clientes estrangeiros e foram embora do País; algumas retornam regularmente, para visitar as amigas e relembrar a vida que deixaram para trás. Hoje, a prostituição não é mais setorizada, a zona está na cidade toda, e o Mucuripe, desmembrado em vários bairros, ainda enfrenta velhos e novos problemas, desde o abandono de equipamento histórico como o velho farol, a problemas ambientais e sociais, até a exagerada especulação imobiliária na orla da Beira-Mar.


Fontes: 

Memórias de mulheres e amigos: interesse e afeto no meretrício de Fortaleza (1960-1980) - Érika Bezerra de Meneses Pinho (UFC) – Autora Cristian Paiva (UFC) – CoAutor Francisca Ilnar de Sousa – CoAutora Disponível em  http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/21738/1/2012_eve_ebmpinho.pdf  -

Mucuripe: Verticalização, Mutações e resistências no Espaço Habitado Lidiane Costa Ramos – Dissertação de Mestrado >disponível em <http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/16718/1/2003_dis_lcramos.pdf

Jornal o Povo

http://www.fortalezaemfotos.com.br/2013/05/em-nome-da-moral-e-dos-bons-costumes.html

fotos: IBGE, Anuário do Ceará, Ah, Fortaleza!


 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Fortaleza e Eu – crônica de Milton Dias

 



Numa tarde destas, à hora do sol poente, contemplei do alto com incansável olhar de amante, cobiçoso e comovido, orgulhoso e feliz, esta Fortaleza minha muito amada – e tive direito ao espetáculo mais generoso e mais grato, o que mais me toca e mais me fala – e abracei com o coração está cidade que é um poema feito em pedra e cal, em cimento e ferro, vegetação e sensibilidade, onde o sol dá festa diária e o mar uma permanente companhia.

Lá embaixo, bem perto, o Pajeú que cantarola cantigas aprendidas muito antigamente, guardião da história da cidade, testemunha discreta e humilde, cantante e constante, andejo como o povo que vive às suas margens. E em torno deste Pajeú que foi Marajaig, razão da escolha do local da cidade, os quintais verdes plantados por mãos que já se foram, velhas árvores que abasteceram de fruta e de sombra outras gerações, restos de casas senhoriais que aos poucos vão desaparecendo, mansões de parapeitos pretenciosos, alguns sobrados e casas térreas modestas, amorosamente construídas por homens que provavelmente dormem na sua paz definitiva. Estas moradas todas, imagina-se, tiveram dias laboriosos e noites indormidas, viveram romances e dramas, fracassos e glórias, vida paixão e morte, foram todas cenários de festas e de lutos, saudaram véu de noiva e festejaram vitórias, se engalanaram e se enlutaram, receberam o médico nas horas aflitivas, acolheram o padre para as comemorações dos batizados, para as bençãos das bodas ou para a extrema-unção.


atual Parque Pajeú, com o riacho ainda não canalizado no trecho 


Lembra-me Anatole France: aquelas casas sabem muito sobre a vida e sobre a morte, elas nos diriam coisas que nos fariam chorar, que nos fariam rir, se as pedras falassem. Mas as pedras falam àqueles que sabem ouvi-las. Assim como as estrelas do poeta.

E em torno das velhas casas, num contraste evidente, como protesto contra o que passou, cabeças de edifícios voltadas para o futuro voltadas para o futuro, desafiando o céu, marca do presente, olhando do alto as tímidas construções que ainda se conservam de pé, como se lhes incomodasse a vizinhança, numa velada pretensão de despejar, destruir, acabar tudo para começar uma cidade nova, no sentido vertical.

Como eu dizia, vi a cidade do alto, justamente na hora em que o dia se encerrava, as filas dos ônibus engrossavam, os carros ruidosos abriam impacientes, caminhos pelas ruas cheias, os pedestres voltavam para casa numa pressa que aqui parece desnecessária, e os anúncios luminosos que começavam a se multiplicar, davam a nota entre o fim da província e o início da metrópole.

Fiquei a imaginar como seria. Nesta mesma hora de sol posto, há cento e cinquenta anos, o espetáculo tranquilo que se abriria aos olhos dum habitante desta cidade, que de repente chegasse à sua janela: o sino tocando as ave-marias, a população demandando a casa no começo da escuridão, a igrejinha no centro duma praça, e em frente dela, o pelourinho e a forca. Num ângulo, o forte de madeira e no outro a Casa dos Jesuítas, algumas moradias, umas cobertas de telha, outras de palha. E fechando o quadro, ao poente, a Casa de Câmara, que chamavam Conselho.


primeira planta da Vila de Fortaleza, 1726


Foi assim que nasceu a Vila a que chamaram de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, depois elevada à categoria de Cidade de Fortaleza de Nova Bragança, a 17 de março de 1823.

Foi assim que começou a cidade, embalada desde o princípio e agora e sempre com as graças que Deus lhe deu. Nasceu na areia, em casa de palha, nasceu pobre e altiva, plantou uma cruz, protegeu-se com um forte, preparou-se para as artes da paz e da guerra – que de muitos olhares de inveja e de cobiça foi sofrida – e com trabalho, com inteligência, com fé e com amor se levantou e se fez.

Muito tempo passou desde então. E enrolado no tempo passou índio, passou negro, passou o branco português, passou o holandês louro,  apareceu a mulata, as raças se caldearam, muita estória aconteceu, estórias que os livros contam, que estão na boca do povo, estão nos versos, na prosa, estão na alma da gente, memórias de muitas lutas, lembranças de correr sangue, correr lágrima e correr vida, estórias de valentia, sagas de amor, de bravura, senzala, eito, chicote, protesto e revolução, alforria pros escravos, aula de abolição que o Ceará deu primeiro para o resto do Brasil.

E muita água correu no leito do Pajeú, desde aquele dia 17 de março de 1823. No princípio éramos três mil na Fortaleza de Nova Bragança. Agora somos um milhão. Ou mais.


Praça da Imprensa - anos 70


A crônica de Milton Dias vive na Fortaleza de 1976. E nos fala de uma cidade mais calma, com poucos edifícios, ainda com as velhas residências senhoriais, que não sobreviveram aos ditames da modernidade, que na sua pretenciosa busca pelo novo, esqueceu seu passado e tem sido negligente com o presente. A população de Fortaleza em 1976, era de 1.176.000 habitantes. Hoje, em 2021, somos 2.700.000, meu poeta. Ou mais.

José Milton de Vasconcelos Dias nasceu em Ipu, no dia 29 de abril de 1919. Faleceu em Fortaleza, em 22 de março de 1983. O Livro “Fortaleza e eu”, foi lançado quando Milton Dias recebeu o título de Cidadania, concedido pela Câmara Municipal de Fortaleza

“venho de muitos caminhos e chego à vossa casa, para esta festa de generoso acolhimento, iluminado pela graça do vosso gesto e reconhecido a vossa desvanecedora decisão, que me torna Cidadão de Fortaleza...”  


extraído do livro Fortaleza e eu/ Milton Dias - Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1976.

fotos: postais dos anos 70, Anuário do Ceará.