Numa tarde destas, à hora do
sol poente, contemplei do alto com incansável olhar de amante, cobiçoso e
comovido, orgulhoso e feliz, esta Fortaleza minha muito amada – e tive direito
ao espetáculo mais generoso e mais grato, o que mais me toca e mais me fala – e
abracei com o coração está cidade que é um poema feito em pedra e cal, em
cimento e ferro, vegetação e sensibilidade, onde o sol dá festa diária e o mar
uma permanente companhia.
Lá embaixo, bem perto, o Pajeú
que cantarola cantigas aprendidas muito antigamente, guardião da história da
cidade, testemunha discreta e humilde, cantante e constante, andejo como o povo
que vive às suas margens. E em torno deste Pajeú que foi Marajaig, razão da
escolha do local da cidade, os quintais verdes plantados por mãos que já se
foram, velhas árvores que abasteceram de fruta e de sombra outras gerações,
restos de casas senhoriais que aos poucos vão desaparecendo, mansões de
parapeitos pretenciosos, alguns sobrados e casas térreas modestas, amorosamente
construídas por homens que provavelmente dormem na sua paz definitiva. Estas
moradas todas, imagina-se, tiveram dias laboriosos e noites indormidas, viveram
romances e dramas, fracassos e glórias, vida paixão e morte, foram todas
cenários de festas e de lutos, saudaram véu de noiva e festejaram vitórias, se engalanaram
e se enlutaram, receberam o médico nas horas aflitivas, acolheram o padre para
as comemorações dos batizados, para as bençãos das bodas ou para a
extrema-unção.
atual Parque Pajeú, com o riacho ainda não canalizado no trecho |
Lembra-me Anatole France:
aquelas casas sabem muito sobre a vida e sobre a morte, elas nos diriam coisas
que nos fariam chorar, que nos fariam rir, se as pedras falassem. Mas as pedras
falam àqueles que sabem ouvi-las. Assim como as estrelas do poeta.
E em torno das velhas casas,
num contraste evidente, como protesto contra o que passou, cabeças de edifícios
voltadas para o futuro voltadas para o futuro, desafiando o céu, marca do
presente, olhando do alto as tímidas construções que ainda se conservam de pé,
como se lhes incomodasse a vizinhança, numa velada pretensão de despejar,
destruir, acabar tudo para começar uma cidade nova, no sentido vertical.
Como eu dizia, vi a cidade do
alto, justamente na hora em que o dia se encerrava, as filas dos ônibus
engrossavam, os carros ruidosos abriam impacientes, caminhos pelas ruas cheias,
os pedestres voltavam para casa numa pressa que aqui parece desnecessária, e os
anúncios luminosos que começavam a se multiplicar, davam a nota entre o fim da
província e o início da metrópole.
Fiquei a imaginar como seria. Nesta
mesma hora de sol posto, há cento e cinquenta anos, o espetáculo tranquilo que
se abriria aos olhos dum habitante desta cidade, que de repente chegasse à sua
janela: o sino tocando as ave-marias, a população demandando a casa no começo
da escuridão, a igrejinha no centro duma praça, e em frente dela, o pelourinho
e a forca. Num ângulo, o forte de madeira e no outro a Casa dos Jesuítas,
algumas moradias, umas cobertas de telha, outras de palha. E fechando o quadro,
ao poente, a Casa de Câmara, que chamavam Conselho.
primeira planta da Vila de Fortaleza, 1726 |
Foi assim que nasceu a Vila a
que chamaram de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, depois elevada à
categoria de Cidade de Fortaleza de Nova Bragança, a 17 de março de 1823.
Foi assim que começou a cidade,
embalada desde o princípio e agora e sempre com as graças que Deus lhe deu.
Nasceu na areia, em casa de palha, nasceu pobre e altiva, plantou uma cruz,
protegeu-se com um forte, preparou-se para as artes da paz e da guerra – que de
muitos olhares de inveja e de cobiça foi sofrida – e com trabalho, com
inteligência, com fé e com amor se levantou e se fez.
Muito tempo passou desde
então. E enrolado no tempo passou índio, passou negro, passou o branco
português, passou o holandês louro, apareceu a mulata, as raças se caldearam,
muita estória aconteceu, estórias que os livros contam, que estão na boca do
povo, estão nos versos, na prosa, estão na alma da gente, memórias de muitas
lutas, lembranças de correr sangue, correr lágrima e correr vida, estórias de
valentia, sagas de amor, de bravura, senzala, eito, chicote, protesto e
revolução, alforria pros escravos, aula de abolição que o Ceará deu primeiro
para o resto do Brasil.
E muita água correu no leito
do Pajeú, desde aquele dia 17 de março de 1823. No princípio éramos três mil na
Fortaleza de Nova Bragança. Agora somos um milhão. Ou mais.
Praça da Imprensa - anos 70 |
A crônica de Milton Dias vive
na Fortaleza de 1976. E nos fala de uma cidade mais calma, com poucos edifícios,
ainda com as velhas residências senhoriais, que não sobreviveram aos ditames da
modernidade, que na sua pretenciosa busca pelo novo, esqueceu seu passado e tem
sido negligente com o presente. A população de Fortaleza em 1976, era de
1.176.000 habitantes. Hoje, em 2021, somos 2.700.000, meu poeta. Ou mais.
José Milton de Vasconcelos Dias nasceu em Ipu, no dia 29 de abril de 1919. Faleceu em Fortaleza, em 22 de março de 1983. O Livro “Fortaleza e eu”, foi lançado quando Milton Dias recebeu o título de Cidadania, concedido pela Câmara Municipal de Fortaleza :
“venho de
muitos caminhos e chego à vossa casa, para esta festa de generoso acolhimento,
iluminado pela graça do vosso gesto e reconhecido a vossa desvanecedora
decisão, que me torna Cidadão de Fortaleza...”
extraído do livro Fortaleza e eu/ Milton Dias - Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1976.
fotos: postais dos anos 70, Anuário do Ceará.
Nenhum comentário:
Postar um comentário