sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Fortaleza e Eu – crônica de Milton Dias

 



Numa tarde destas, à hora do sol poente, contemplei do alto com incansável olhar de amante, cobiçoso e comovido, orgulhoso e feliz, esta Fortaleza minha muito amada – e tive direito ao espetáculo mais generoso e mais grato, o que mais me toca e mais me fala – e abracei com o coração está cidade que é um poema feito em pedra e cal, em cimento e ferro, vegetação e sensibilidade, onde o sol dá festa diária e o mar uma permanente companhia.

Lá embaixo, bem perto, o Pajeú que cantarola cantigas aprendidas muito antigamente, guardião da história da cidade, testemunha discreta e humilde, cantante e constante, andejo como o povo que vive às suas margens. E em torno deste Pajeú que foi Marajaig, razão da escolha do local da cidade, os quintais verdes plantados por mãos que já se foram, velhas árvores que abasteceram de fruta e de sombra outras gerações, restos de casas senhoriais que aos poucos vão desaparecendo, mansões de parapeitos pretenciosos, alguns sobrados e casas térreas modestas, amorosamente construídas por homens que provavelmente dormem na sua paz definitiva. Estas moradas todas, imagina-se, tiveram dias laboriosos e noites indormidas, viveram romances e dramas, fracassos e glórias, vida paixão e morte, foram todas cenários de festas e de lutos, saudaram véu de noiva e festejaram vitórias, se engalanaram e se enlutaram, receberam o médico nas horas aflitivas, acolheram o padre para as comemorações dos batizados, para as bençãos das bodas ou para a extrema-unção.


atual Parque Pajeú, com o riacho ainda não canalizado no trecho 


Lembra-me Anatole France: aquelas casas sabem muito sobre a vida e sobre a morte, elas nos diriam coisas que nos fariam chorar, que nos fariam rir, se as pedras falassem. Mas as pedras falam àqueles que sabem ouvi-las. Assim como as estrelas do poeta.

E em torno das velhas casas, num contraste evidente, como protesto contra o que passou, cabeças de edifícios voltadas para o futuro voltadas para o futuro, desafiando o céu, marca do presente, olhando do alto as tímidas construções que ainda se conservam de pé, como se lhes incomodasse a vizinhança, numa velada pretensão de despejar, destruir, acabar tudo para começar uma cidade nova, no sentido vertical.

Como eu dizia, vi a cidade do alto, justamente na hora em que o dia se encerrava, as filas dos ônibus engrossavam, os carros ruidosos abriam impacientes, caminhos pelas ruas cheias, os pedestres voltavam para casa numa pressa que aqui parece desnecessária, e os anúncios luminosos que começavam a se multiplicar, davam a nota entre o fim da província e o início da metrópole.

Fiquei a imaginar como seria. Nesta mesma hora de sol posto, há cento e cinquenta anos, o espetáculo tranquilo que se abriria aos olhos dum habitante desta cidade, que de repente chegasse à sua janela: o sino tocando as ave-marias, a população demandando a casa no começo da escuridão, a igrejinha no centro duma praça, e em frente dela, o pelourinho e a forca. Num ângulo, o forte de madeira e no outro a Casa dos Jesuítas, algumas moradias, umas cobertas de telha, outras de palha. E fechando o quadro, ao poente, a Casa de Câmara, que chamavam Conselho.


primeira planta da Vila de Fortaleza, 1726


Foi assim que nasceu a Vila a que chamaram de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, depois elevada à categoria de Cidade de Fortaleza de Nova Bragança, a 17 de março de 1823.

Foi assim que começou a cidade, embalada desde o princípio e agora e sempre com as graças que Deus lhe deu. Nasceu na areia, em casa de palha, nasceu pobre e altiva, plantou uma cruz, protegeu-se com um forte, preparou-se para as artes da paz e da guerra – que de muitos olhares de inveja e de cobiça foi sofrida – e com trabalho, com inteligência, com fé e com amor se levantou e se fez.

Muito tempo passou desde então. E enrolado no tempo passou índio, passou negro, passou o branco português, passou o holandês louro,  apareceu a mulata, as raças se caldearam, muita estória aconteceu, estórias que os livros contam, que estão na boca do povo, estão nos versos, na prosa, estão na alma da gente, memórias de muitas lutas, lembranças de correr sangue, correr lágrima e correr vida, estórias de valentia, sagas de amor, de bravura, senzala, eito, chicote, protesto e revolução, alforria pros escravos, aula de abolição que o Ceará deu primeiro para o resto do Brasil.

E muita água correu no leito do Pajeú, desde aquele dia 17 de março de 1823. No princípio éramos três mil na Fortaleza de Nova Bragança. Agora somos um milhão. Ou mais.


Praça da Imprensa - anos 70


A crônica de Milton Dias vive na Fortaleza de 1976. E nos fala de uma cidade mais calma, com poucos edifícios, ainda com as velhas residências senhoriais, que não sobreviveram aos ditames da modernidade, que na sua pretenciosa busca pelo novo, esqueceu seu passado e tem sido negligente com o presente. A população de Fortaleza em 1976, era de 1.176.000 habitantes. Hoje, em 2021, somos 2.700.000, meu poeta. Ou mais.

José Milton de Vasconcelos Dias nasceu em Ipu, no dia 29 de abril de 1919. Faleceu em Fortaleza, em 22 de março de 1983. O Livro “Fortaleza e eu”, foi lançado quando Milton Dias recebeu o título de Cidadania, concedido pela Câmara Municipal de Fortaleza

“venho de muitos caminhos e chego à vossa casa, para esta festa de generoso acolhimento, iluminado pela graça do vosso gesto e reconhecido a vossa desvanecedora decisão, que me torna Cidadão de Fortaleza...”  


extraído do livro Fortaleza e eu/ Milton Dias - Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1976.

fotos: postais dos anos 70, Anuário do Ceará. 

   

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