quinta-feira, 21 de junho de 2018

Chico da Silva, Rei das Artes, da Cachaça e dos Dragões

A vida desse homem exótico, um dos maiores pintores primitivistas do Brasil, forma um roteiro de mirabolantes aventuras. Os que o conheceram de perto, contam coisas incríveis sobre sua arte e suas façanhas, uma mistura de talento e loucura, acomodados na carcaça cabocla de Francisco Domingos da Silva, morador do Pirambu, nascido em 1910, no Acre, artista criativo e presepeiro maior dessa capitania do Siará Grande.


Chegou ao Ceará com 6 anos. Morou em Quixadá e Guaramiranga antes de conquistar Fortaleza, onde exerceu diversos ofícios, todos ligados a trabalhos manuais. Foi fazedor de tamancos, barbeiro, consertador de panelas e guarda-chuvas, amolador de facas e tesouras, funileiro, e pintor de paredes. Neste último ofício, começou a descobrir sua arte, desenhando em muros, inventando pássaros, peixes, galos irados e dragões esquisitos. Misturava na mesma figura bichos alados e quadrúpedes, numa reprodução intuitiva da evolução das espécies. Os peixes viravam pássaros e estes viravam dragões escamosos, com garras ameaçadoras.


Quando a ânsia criativa brotava, pegava carvão ou pedaços de telha vermelha e gesso e enchia todas as calçadas e muros que encontrasse pela frente, tendo, às vezes, que responder aos proprietários irritados pelas “malfeitorias”.

Em 1943 um pintor suíço que visitava Fortaleza, Jean Pierre Chabloz, viu em muros e calçadas da Praia Formosa os desenhos de Chico e ficou maravilhado. Interessou-se por conhecer o autor dos desenhos. – é um índio – disseram os pescadores – quem anda fazendo essa esculhambação nas paredes dos outros. Nossos filhos não têm nada a ver com isso. É coisa de criança, mas quem faz é um cabocão que mora por aqui”.

Chico foi localizado e logo pensou que Chabloz fosse um fiscal da prefeitura ou algum proprietário de muro rabiscado. Quando já achava que seria preso, recebeu os parabéns do visitante e uma proposta tentadora. Receberia tintas e cartolinas para realizar uma série de pinturas. As que ficassem boas seriam adquiridas e pagas imediatamente. Estava começando a acidentada e esfuziante carreira artística de Chico da Silva.

Em 1944 participa do III Salão Cearense de Pintura. A partir de 1945, levado pelas mãos do seu descobridor, ganha o Brasil e o mundo. Expõe no Rio de Janeiro, conseguindo os primeiros comentários favoráveis da crítica. Chabloz leva os trabalhos do Chico da Silva para a Europa, e os cadernos de arte europeus comentavam sobre o índio brasileiro que estava reinventando a pintura. Enquanto isso, sem incentivo em Fortaleza, Chico voltava ao seu antigo ofício de fazedor de fogareiros e lamparinas de latas de flandres no Pirambu.

Jean Pierre Chabloz e sua pintura exposta no MAUC

Só quando Chabloz volta a Fortaleza, em 1959, e o reencontra, Chico retoma sua arte. Por interferência do suíço, é contratado pelo Museu da Universidade Federal do Ceará (MAUC), passando a pintar em suas dependências. Depois sai da Universidade, onde se sentia bitolado, pois não podia beber suas cachaças nem fazer suas presepadas. Entretanto, consegue novos clientes. Vende quadros à sociedade local e consegue expor numa galeria carioca.

A fama de Chico corre mundo. Vem pedidos de toda parte, os turistas não deixam de levar uma obra do índio. Mas como produzir tantas telas para suprir essa grande procura? Só se trabalhasse dia e noite. Teve uma ideia. Pegaria uns meninos ali mesmo do Pirambu para lhe ajudar. Procurou saber quem, no bairro, levava jeito para a pintura. Logo arranjou um time razoável de aprendizes para a produção em série que pretendia iniciar.

Com ligeiras instruções, Babá, Claudionor, Garcia e Ivan de Assis, puseram-se a pintar galos, peixes e monstros de Chico da Silva. Agora, Chico, um sujeito famoso, tinha tempo para beber e raparigar à vontade. Seu único trabalho era assinar os quadros. O negócio era tão rápido que teve que funcionar por setores: enquanto um riscava os desenhos, o outro ia botando as cores e um terceiro tracejava as escamas, as penas e fazia os pontilhados. Quando Chico ia assinar, dava uma “guaribada” e pronto: mais uma obra pronta para o consumo.

Havia esperteza na cabeça do pintor, posto que ele não queria que soubessem da existência da oficina. Na chegada dos clientes, os auxiliares eram obrigados a fugir saltando a cerca do fundo do quintal da residência de Chico. Mas, um dia, o marchand Henrique Blun, chegando de surpresa ao Pirambu, encontrou o Chico, bêbado, capotado, enquanto Babá pintava seus quadros. Ao invés de denunciar a maracutaia, Blun se aproveita da situação, levando o falsificador para trabalhar em sua casa, por onde passava o Chico, de vez em quando, para assinar as telas, autenticando-as.

Essas telas pintadas por Babá foram expostas na Petiti Galeria, no Rio de Janeiro, em 1966. Chateada por ver seu homem se envolvendo com outras mulheres, dona Dalva da Silva, mulher do Chico, denuncia nos jornais que as telas da exposição são falsas. Houve um grande barulho na imprensa, mas o pintor negou as declarações da esposa e reafirmou que os trabalhos eram de sua autoria. E ficou tudo por isso mesmo.


Chico viaja para a Europa, em companhia de Clarival do Prado Valladares e participa da Bienal de Veneza em 1966. Em seguida, participa de mostras na França e na Espanha. Quando retorna, demora-se no Rio de Janeiro, farreando nos cabarés da Lapa e nos inferninhos da Cinelândia, até gastar todo o dinheiro que ganhara. De volta à Fortaleza, Chico se vangloria de suas façanhas, diz que foi recebido no Palácio pela Rainha Elizabeth da Inglaterra, e na sede do governo da França pelo próprio Charles De Gaulle. Toda artista ou mulher famosa e bonita que aparece nas revistas, ele diz que namorou.

Os marchands, com a conivência do pintor, contratam os falsificadores de sua oficina e montam várias “fábricas de Chicos da Silva”, ele só participa com a assinatura, acrescida agora da digital e uma foto ao lado do quadro para simular autenticidade. Em sua casa Chico ainda mantém sua oficina, agora com a participação de seus filhos Francisca e Roberto, e ainda Gilberto, Manuel Lima, Caínha, Carabina e Maria Augusta, entre outros.

Em 1969, Maria Augusta, então com 15 anos, ao ser posta para fora da casa de Chico pela ciumenta dona Dalva, vai aos jornais e denuncia mais uma vez a falsificação. A notícia é estampada na imprensa nacional. A revista O Cruzeiro conta toda a história, com detalhes. Agora, ninguém sabe mais se o quadro que tem na parede é um Chico da Silva legítimo ou uma falsificação. Aí caem as vendas e a decadência começa. Desmoralizado, Chico se entrega com afinco à bebida, sem intervalos. Talvez, acometido de delirius tremens, diz que os dragões que ele pintou estão saindo das telas para lhe atacar.

Por volta de 1972 saiu um comentário num jornal francês sobre o mais famoso morador do Pirambu. E o articulista lamentava que as autoridades brasileiras tivessem abandonado um dos maiores artistas primitivistas do mundo, deixando-o morrer à mingua, como um pária. A repercussão do estado de decadência de Chico da Silva mexeu com os brios do governador César Cals que, convocando um grupo de senhoras ligadas às artes plásticas, mandou procurar a família do pintor, e ver o que poderia ser feito.

O grupo de senhoras encontrou Chico da Silva em estado deplorável. Sua mulher, Dalva, informou que ele havia se entregado de vez ao alcoolismo e já estavam passando por sérias dificuldades. A ajuda mais imediata seria arranjar dinheiro.

Pensaram, então, numa exposição. Chico da Silva identificaria os quadros verdadeiramente seus, e seria feita uma vernissage num clube da Aldeota. Ouvindo a conversa, Chico levantou da rede e veio participar. Topava a ideia da exposição, mas tinha umas exigências. Queria um paletó branco, uma gravata encarnada e um par de sapatos também branco.

rua do Pirambu (2010)

Saíram pelo bairro procurando nas bodegas os quadros que ele trocara por cachaça. O trabalho foi exaustivo, mas proveitoso: 28 telas foram recuperadas, com outras que o Chico se dispunha a pintar, dentro de uns dias tudo estaria pronto.

Tudo foi acertado e providenciado, convites, cobertura da imprensa, instalações. Na véspera, a badalada exposição já estava devidamente instalada no clube mais elegante de Fortaleza. A festa deveria começar às 20 horas.

Na manhã do grande dia as organizadoras foram à casa do Chico. Eram nove horas da manhã e o índio já havia saído. Dona Dalva informou que ele fora à alfaiataria do Girão para apanhar o traje. Correram para lá. Nada de Chico: já pegara a roupa e se mandara, ninguém sabia para onde.

Praia do Pirambu (imagem IBGE)

Voltaram ao Pirambu, falaram para dona Dalva que, sem o Chico, ela iria representar a família na cerimônia de abertura da exposição. À noite, maquiada e de vestido longo – numa produção bancada pelas organizadoras do evento – dona Dalva recebeu cumprimentos do governador, foi abençoada pelo arcebispo, fotografada pelos repórteres e acompanhada da fina flor da sociedade, dona Dalva estava em seu esplendor.

Quando a cerimônia já ia começar, ouviu-se um grito forte na entrada do clube
– cadê o dinheiro pra pagar o táxi, cambada de burguês? Eu sou o dono da festa e tô chegando pra arrepiar!”. 
Era, sem sombra de dúvida, o Chico da Silva. O paletó já estava sujo, os sapatos com respingos de lama e ele não vinha só. Puxava pela mão uma rapariguinha, quase uma menina, a cara pintada com exagero, os peitos grandes, prestes a saltar do decote cavado, provocante. Vestia ainda uma minissaia, dessas que deixam a descoberto o fundo das calças.

Ao notar o lugar solene em que era introduzida, com aquela gente bem vestida e cerimoniosa, a moça quis recuar. Não conseguiu. O desarvorado Chico lhe arrastou firme e ele teve que prosseguir rumo ao salão principal, onde os discursos deveriam ter lugar. Dona Dalva mal podia acreditar no que estava vendo. Então o safado do seu marido tinha a audácia de trazer para um lugar daquele uma puta do farol, logo no dia em que ela estava tão bonita, tão arrumada? Ah, mas isto não ficar assim, não. Se o Chico queria confusão ia ter, e da grossa.

E passando das palavras à ação, a destemida Maria Dalva, que era natural de Salvador, rodou a baiana. Partiu para cima da ninfeta, atingindo-a com um murro na cara. A pequena, escolada nas escaramuças do Farol do Mucuripe, não foi apanhar sozinha e se atirando, em pulo felino, atingiu com a cabeça a pança de dona Dalva que caiu para trás.

As duas se enroscaram pelo chão como se fossem duas serpentes ferozes dos quadros do Chico e, ante o espanto das autoridades civis, militares e eclesiásticas, derrubaram os cavaletes da exposição, e com eles as telas, num turbilhão de safanões, pernadas e palavrões. No seribolo armado, não se sabia quem ganhava ou perdia, quem estava em cima ou embaixo. As dondocas soltavam gritinhos histéricos, corriam espavoridas, desarmando as cabeleiras enlaquezadas, enquanto o pau comia entre as duas suburbanas.

No fim, contidas a custo por oito seguranças, as mulheres estavam em frangalhos, riscadas de unha e sangrando pela boca. O clube parecia que tinha sido atingido por um desses ciclones tropicais: mesas viradas, telas rasgadas, cavaletes transformados em espetos. Nem nos mais ferozes arranca-rabos do Pirambu se vira coisa igual.

Apesar dos escândalos e da vida desregrada que levava, Chico da Silva continuava a ser uma importante referência cultural no Ceará. Várias foram as tentativas para reabilitá-lo. Em 1974 o governo do Estado e a prefeitura de Fortaleza lhe deram uma bonita casa-atelier, na recém-inaugurada Avenida Leste-Oeste. Em 1975 o Grupo Mercantil São José presenteou-o com um automóvel. Por esse tempo foi feito um documentário sobre sua obra e sua história pelo cineasta Pedro Jorge de Castro.

Os jornais assediam-no sem parar. Suas entrevistas fazem sucesso pelo inusitado. Ao Jornal do Comércio, de Pernambuco, ao ser perguntado sobre sua temática, declarou: "eu pinto o cão, pinto a mãe do cão, pinto a tia do cão e vou pintar o cão aqui pra todo mundo ver”. Recebe homenagens de toda ordem: a medalha Anchieta, da Câmara Municipal de São Paulo, a medalha da Abolição, maior comenda do governo do Ceará, e em 1983, uma pensão vitalícia, de dois salários mínimos, do Estado. 


Continua, porém, explorado por espertalhões e mergulhado no vício. De vez em quando fica doido e quebra tudo em casa. Vangloriava-se de bêbado, ter derrubado três metros de muro sem sentir nada. Dona Dalva já não mais existia, morreu de sofrer. Chico despenca ladeira abaixo. Alterna internamentos em hospitais com grandes bebedeiras. Uma vez quase morto, foi internado às pressas pelo casal Heloísa e Haroldo Juaçaba, na Casa de saúde São Raimundo. Outras internações se seguiram, sequenciadas por novas recaídas, até o desfecho final no dia 06 de dezembro de 1985.

A Agência Terraço, produziu um belo texto em homenagem a Chico da Silva, publicado em página inteira do Jornal Diário do Nordeste



“Neste Natal
A Familia Silva
Tem uma estrela no céu
Era um privilegiado,
Tinha sensibilidade para captar o invisível.
Artista,
Viveu numa estrada colorida
Entre o sonho e a realidade
Ingênuo – por ser bom – se perdeu na madrugada
E adormeceu no cansaço da desilusão.
Não passou pela vida despercebido.
A pureza-beleza de sua obra
Saiu dos limites do individual,
Transcendeu o universal
E alçou o lume das estrelas,
Glória maior de todo artista
Ele adotou esta terra
E não soubemos compreender a dimensão de seu gesto!”


Extraído do livro - Sábado, Estação de Viver – histórias da boemia cearense
De Juarez Leitão 
fotos: Internt, O Povo, IBGE e Fortaleza em Fotos
 


quarta-feira, 13 de junho de 2018

O Náufrago Chagas dos Carneiros


Na noite de 24 para 25 de março de 1887, navegavam ao longo da costa entre Pernambuco e Paraíba, o paquete Bahia, da Empresa Brasileira de Navegação, e o vapor Pirapama, da Companhia Pernambucana de Navegação, ambos carregados de passageiros. O primeiro rumava para o Sul e o segundo para o Norte. Havia luar, o céu estava claro e o mar iluminado e calmo como um lago. A umas 35 milhas do porto do Recife, os dois barcos deveriam cruzar-se. Todos dormiam a bordo, e certamente, também os vigias e timoneiros, porque não se compreende de outra forma que as duas embarcações tenham abalroado violentamente, com as piores consequências para uma delas. 


 Porto de Fortaleza - 1910 (foto Arquivo Nirez)

 Vista da Praia de Iracema - 1914

Na versão pernambucana do sinistro, o Pirapama colidira com o Bahia, que procedia da Paraíba e destinava-se ao Recife, onde amanheceria. Reunidos no convés, e enquanto se preparavam as baleeiras para possível salvamento dos passageiros do Pirapama, viram o paquete Bahia a toda força de suas máquinas, afastar-se do local do acidente e de repente desaparecer. O exame do casco do navio pernambucano não exigira seu abandono, assim poderia voltar a Pernambuco sem risco de naufrágio. E assim o fez. Após demora de meia hora, ainda a fim de apurar o destino do Bahia, o que não conseguiu. A algumas milhas, porém, o Bahia fora a pique...

A versão cearense é muito diferente, e tudo leva a crer que esteja mais próxima do que realmente aconteceu. Está nos jornais da época e no depoimento dos sobreviventes. Foi de fato o Pirapama que abalroou o Bahia, tanto que do choque saiu quase intacto, podendo alcançar o porto do Recife algumas horas depois sem perda de nenhuma vida. No entanto, avariado na proa, o Bahia naufragaria com rapidez, os porões e a casa das máquinas invadidos rapidamente pelas águas. O que fez seu comandante, o 1° tenente Aureliano Isaque, morto no acidente junto com seu imediato Silvério Antônio da Silva, foi procurar dar toda força às hélices, na tentativa de aproximar o máximo possível, a embarcação da costa e encalhar, o que tornaria mais fácil a salvação das duzentas vidas pelas quais era responsável.


Porto do Recife (imagem Tok de História)

Os jornais do Recife deram alguns pormenores da tragédia que então, abalou o País: mais de 200 pessoas tentaram se salvar agarradas a tudo que pudesse mantê-las à flor da água... alguns conseguiram alcançar a costa, a maioria, não. Barcaças da praia de Goiana acudiram por terem visto, com o luar, o afundamento do Bahia, que tentava se avizinhar o mais possível do litoral. Talvez junto com os jangadeiros, tivessem ouvido a explosão das máquinas. Recolheram os náufragos como lhes foi possível. 

Em compensação, todos comentavam o estranho caso de cegos que se salvaram. Caso da mulher que dormia no camarote com o marido, quando ambos ouviram o estrondo e sentiram o choque. O marido subiu rápido ao convés, e ao se certificar do perigo iminente, viera busca-la. Tentaram embarcar numa das baleeiras do vapor, mas a cega, ao pular para a embarcação, erra o alvo e cai dentro d’água. Separa-se assim do marido. Ficou boiando de costas durante duas horas, quando foi resgatada por uns marinheiros que tinham se salvado em cima de uma capoeira de galinhas. Por fim, uma barcaça recolhe a todos. 


Um outro cego, que se safou do naufrágio, era o famoso Chagas dos Carneiros, sertanejo alto, magro, de olhos encovados, cabelos desalinhados sob o chapéu de palha, sempre de ceroulas apresilhadas nos tornozelos, calças arregaçadas até os joelhos e camisolão branco. Essa figura popularíssima na capital cearense, perambulava pelo Brasil inteiro a pedir esmolas. Quando desaparecia da terra natal, percorria os sertões do Maranhão, do Piauí, da Parnaíba, e de Pernambuco até o São Francisco, a pé, de vila em vila, de cidade em cidade, ou então, viajando de vapor-gaiola pela Amazônia, de paquete de carreira regular para o Rio e São Paulo. Numa dessas andanças, se achava na Bahia.

Escapou porque era bom nadador, desde a infância, nos rios e açudes do sertão. Ao pressentir o perigo, atirou-se ao mar, e depois de nadar algum tempo sem saber em que direção, aproximou-se duma boia improvisada na qual dois náufragos se agarravam.

– ceguinho, disse um deles – aqui não há lugar para você, Se você se agarrar, ela vai ao fundo com mais esse peso.

– está bem, respondeu o Chagas, não preciso dessa armação porque sei nadar bem, só quero um favor: um dos senhores me vire no rumo da praia, que eu vou bater lá. Assim fez um deles, e com o seu nado-de-cachorro, lento, mas seguro, o cego dirigiu-se para o litoral. Quase chegando, uma jangada o resgatou.

Perdera, no entanto, os seus carneiros. Andava sempre com 4 ou 6 desses animais, servindo-lhe um de guia à ponta duma corda. Os outros caminhavam à sua frente, ao seu lado ou às suas costas, em plena liberdade, fazendo tinir os chocalhos que traziam ao pescoço e cujos sons indicavam ao Chagas os seus movimentos e onde se achavam.


Rua Formosa em 1910

Chagas morava numa choupana, nas areias da Rua Formosa, na parte em que já não havia calçamento, em companhia de sua velha mãe, que sustentava com seus ganhos. Esta com anil, urucu e outros corantes, pintava os carneiros de cores vistosas: verde, vermelho, azul e amarelo. Eram eles, parte dos acessórios com que o cego ganhava a vida. Conduzia a tiracolo um saco contendo suas gaitas, e mais alguns apetrechos que usava em suas apresentações. Verdadeiro artista ambulante, sentava-se no meio fio dum passeio, logo rodeado de crianças e populares, e dava início ao espetáculo, com solos de gaita, passos de dança e muita cantoria. Por fim, os carneiros entravam em cena. O Chagas imitava o som de tiros e ia fuzilando um a um, enquanto os animais caiam e pareciam mortos. Tombado o último, o cego dava um berro: – ressuscita cambada! E a carneirada o rodeava, aos pulos, berrando de alegria. E a cuia de esmola ficava cheia.

O cego era monarquista ferrenho. Tirava o chapéu quando falava em D. Pedro II. Para ele, a República era a Lei do Cão. Serviam-lhe os carneiros para desabafo desse modo de sentir. O mais adestrado, o guia tinha o nome de Mimoso. Ele chamava o animal para perto de si, batia-lhe levemente com o bastão às costas, e começava o espetáculo: - Mimoso, como foi que o Deodoro proclamou a Lei do Cão? O carneiro empinava-se e berrava alto.

Chagas trazia numa das mãos uma vara encerada, cuja ponta untada de breu e carvão quando em contato com a calçada, produzia um barulho onde se podia perceber certas variações musicais. Com esses arranjos, que só ele sabia fazer, construiu uma típica charanga que chamava a atenção de todos. Era natural que a criançada, aos bandos, acompanhasse pelas ruas afora o cego que escapara ao naufrágio do Bahia. Chagas dos Carneiros desapareceu por volta de 1912. Foi embora e nunca mais voltou.

extraído do livro
à Margem da História do Ceará, de Gustavo Barroso 
fotos da internet e de origens diversas