terça-feira, 29 de novembro de 2016

Moreira Campos: Dizem que os Cães veem Coisas

José Maria Moreira Campos nasceu em Senador Pompeu no dia 06 de janeiro, no ano de 1914, filho de Francisco José Gonçalves e Adélia Moreira Campos. Teve dois irmãos – um irmão e uma irmã – que morreram cedo.
O estudo inicial, básico foi feito no interior, em Lavras da Mangabeira. Em 1930 a família veio morar em Fortaleza, por um motivo que foi considerado pelo escritor como trágico: seu pai passou a se dedicar ao comércio em 1924. Em Lavras da Mangabeira, mantinha um bem-sucedido comércio de algodão, peles e cera de carnaúba. O desastre começou quando a fábrica se incendiou e não estava no seguro. Devido às dificuldades financeiras, a família mudou-se para a capital.

Moreira Campos aos 12 anos de idade

Em Fortaleza Moreira Campos ingressou no Educandário Moacir Caminha; lá fez o vestibular e ingressou no secundário. Acostumado à vida pacata do interior, onde passou a infância e parte da adolescência, encantou-se e impressionou-se com os serviços que encontrou na capital. Um dos maiores encantos foi andar de bonde, outro foi o cinema. Gostava tanto de cinema que chegava a assistir ao mesmo filme quatro vezes.

A Praça do Ferreira que Moreira Campos conheceu quando chegou à Fortaleza em 1930. O coreto foi demolido em 1933, na gestão do prefeito Raimundo Girão. 

Depois do Educandário Moacir Caminha estudou no Liceu, mas não pode terminar o curso em razão do falecimento dos pais. O pai faleceu aos 44 anos em 1931; ano seguinte morreu a mãe, aos 38 anos. Pobre e sozinho foi acolhido por um primo, e morou em casa de algumas tias. Mais tarde conseguiu um emprego de ajudante de arquivista na Secretaria do Interior e da Justiça e foi morar numa pensão.

Retomou os estudos fazendo um Curso Madureza, trabalhando de dia e estudando à noite. Fez vestibular para Direito e concluiu o curso em 1946. Depois, ingressou na Faculdade Católica de Filosofia e Formou-se em Letras.
A vida literária começou quando ainda era muito jovem. Ainda no interior, gostava de ler romances, e aos 13 anos já fazia sonetos sem sequer saber ao certo o que seria um soneto, posto que não conhecia métrica e rima. Retomou a vida literária quando chegou a Fortaleza.

Junto com os colegas do Liceu criou a Escola Moça de Cultura. Depois surgiram os moços do grupo Clã, grupo que consolidou o movimento modernista no Ceará. A denominação Clã – Clube de Literatura e Arte – era porque no início o grupo contava com literatos e artistas plásticos: Antônio Bandeira, Aldemir Martins, Barbosa Leite e Márcio Barata. Depois os artistas plásticos foram embora, ficaram apenas os intelectuais.

A Escola Moça de Cultura, foi um grupo literário que surgiu espontaneamente, sem sede, sem estatutos, sem regimentos. As reuniões ocorriam nos cafés da Praça do Ferreira.

com D. Maria José e os 3 filhos

O escritor casou-se em 14 de dezembro de 1937 com Maria José Nogueira Alcides, que trabalhava com Moreira campos na mesma repartição – Secretaria do Interior e da Justiça. O casal teve três filhos: Natércia, Marisa e Cid.
Moreira Campos foi funcionário público e diretor de repartição, mas sonhava com o magistério. Foi professor de Geografia na Fênix Caixeiral e lecionou Português no Colégio Padre Champagnat. Em 1965, Ingressou no magistério, na UFC, e fez novo vestibular para licenciatura em Letras na Faculdade Católica de Filosofia. 

com a escritora Rachel de Queirós

O seu livro de estreia foi Vidas Marginais em 1949. Em 1957 lançou o segundo livro Portas Fechadas, editado pela Cruzeiro no tempo de Assis Chateaubriand. Em seguida veio o Terceiro livro: As Vozes do Morto, em 1963. Foi publicado pela Editora Francisco Alves, mas o autor não gostou da edição e mandou tirar de circulação. Em 1969 lançou O Puxador de Terço, que retrata uma figura que o autor conheceu no sertão.
Depois veio o quinto livro: Os Doze Parafusos, em 1978, que relata um caso que foi contado ao autor: uma mulher neurótica, com ciúme exacerbado, que para mostrar sacrifício ao marido, retirou dezoito parafusos de uma janela para se atirar lá de cima. Ao escrever o conto o autor reduziu os parafusos a doze por achar que dezoito era muito.
Contos Escolhidos de 1981, é uma seleção feita pelo autor de histórias publicadas nos livros anteriores. Depois foi lançado em 1985, A Grande Mosca no Copo de Leite, livro que o ator considera de cunho erótico.
O último livro a ser lançado por Moreira Campos foi Dizem que os Cães Veem Coisas, de 1987. O título é uma tradição do folclore. Dizem que os animais veem e pressentem acontecimentos da natureza antes dos humanos. Há ainda um livro de poesias: Momentos.

Moreira Campos participa de cerca de catorze antologias, entre nacionais e estrangeiras. Suas obras já foram traduzidas para o francês, italiano, inglês, alemão e hebraico. Foi membro da Academia Cearense Letras, da Academia Cearense de Língua Portuguesa e Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará; foi agraciado com diversos prêmios e comendas ao longo de sua existência. O escritor e poeta faleceu em Fortaleza, no dia 6 de maio de 1994, aos 80 anos de idade.



Dizem que os cães veem coisas
(conto)

Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. Ninguém lhe ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiquíssima, atual e eterna, com a sua cara de máscara. Moldada em gesso? Apenas uma presença, porque pousou como uma sombra. Mas por um fragmento de tempo, um quase nada, reinou entre todos um silêncio largo, que se estendeu pelo vasto terreno murado da mansão ensombrada pelas árvores, dominou a enorme piscina e emudeceu as próprias crianças pajeadas pelas babás de aventais bordados, e vejam que as crianças são indóceis.
              Um presságio.
              Fragmento de tempo apenas, porque o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da piscina com o copo de uísque na mão. Espadanou água por todos os lados, a piscina transbordou. Muitos se molharam, outros saltaram da cadeira de lona.
              - Bruto! – disse alguém íntimo, sem que ele se aborrecesse, bêbado.
              A onda de água despejou-se sobre Ela, que não se moveu: era trespassável e transparente. Floco de névoa pronto a esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum ricto. Apenas parecia consultar no pulso um relógio invisível, para marcar o tempo. O homem de ventre enorme já estava à beira da piscina, gotejante e trôpego, para uma nova dose de uísque, os dedos graúdos catando no balde os cubos de gelo. Mulheres seminuas, o cordão do biquíni, as nádegas reluzentes de sol e gotas d’água. As rodas, as conversas, os garçons que circulavam, as bandejas de salgadinhos.
              Uns óculos escuros sofisticados no sutiã mínimo:
              - Por favor.
              O garçom atendia, solicito, perdendo os olhos ávidos nos seios mal contidos, oferecidos e inatingíveis.
              - Obrigada.
              O garçom mantinha a dignidade, ereto. A menina chegou e segurou a mãe pelo queixo:
              - Mãe-ê, quero uma Coca-Cola.
              A mãe não lhe dava atenção em flerte com o recente campeão de vôlei, uma estrutura de tórax (a mãe da menina contrariava-se apenas com o tufo de pelos que ele tinha no peito, quase imoral). A menina impacientava-se:
              - Mãe-ê, uma Coca-Cola.
              - Deixa de ser chata!
              O campeão levantou-se para apanhar o refrigerante. Em roda mais distante conversavam os homens graves: a última medida do governo, a crise econômica.
              - O país vai à bancarrota.
              - Vai o quê?
              - A bancarrota.
              - Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra.
              - Mas vai.
              Aceitava-se a bancarrota sem muita convicção. Na grande varanda, as senhoras grisalhas e indesnudáveis, pulseiras tilintantes na flacidez dos braços, discutiam os novos valores morais e comentavam o recente desquite.
              - A menina dela não tem um ano de casada.
              - É a segunda que se separa.
              - Como?
              - A segunda.
              Aniversário da dona da mansão, que se acompanhava ao violão com graça, aplaudida pelos que estavam em volta. O garçom (ou maitre, porque era solene) curvou-se ao seu ouvido. Ela se livrou do violão, levantou-se e bateu palmas chamando todos para o almoço à americana, as mesas sob as árvores. Cada um apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cedeu lugar a umas nádegas rijas, cortadas sempre pelo cordão do biquíni:
              - Faz favor.
              - Obrigada.
              Os cães de raça latiam e uivavam desesperadamente nos canis (e dizem que os cães veem coisas). Foi preciso que o tratador viesse acalmá-los, embora eles rodassem sobre si mesmos e rosnassem. A distância, a piscina quase olímpica, agora deserta: toalhas esquecidas. O vidro de bronzeador, o cinzeiro sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro marcadas de batom.
              As filas. Alguém tangeu o gato que lutava com um pedaço de osso. Lenita fez o prato do marido, preparou também o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se lembrou do filho:
              - Cadê o Netinho?
              Certa angústia na voz. Chamou o marido, gritou pela babá, que se distraía com as outras na varanda. Olhos espantados e repentino silêncio talvez maior de qualquer outro. Refeições suspensas, uma senhora mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam segurar Lenita. Ela se desvencilhava:
              - Cadê o Netinho? Cadê?
              As águas da grande piscina eram tranquilas, apenas levemente franjadas pelo vento. Boiava sobre elas uma carteira de cigarros vazia. Mas a moça que se aproximava parecia divisar um corpo no fundo, preso à escada. Voltaram a afastar Lenita, o marido a envolveu nos braços possantes, talvez procurando refúgio também. O campeão de vôlei atirou-se à piscina e veio à tona sacudindo com a cabeça os cabelos longos: trazia sob o braço um corpo inerme, flácido, de apenas quatro anos e de cabelos louros e gotejantes.
              O médico novo, de calção, tentou a respiração artificial, e boca-a-boca (os lábios de Netinho estavam arroxeados), e levantou-se sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita soltou-se e agarrou-se ao filho:
              - Acorde, acorde! Pelo amor de Deus, acorde?
              Conseguiram afastá-la mais de uma vez, quase desmaiou. A amiga limpava-lhe com os dedos a sobra de farofa que se grudava ao seu rosto. Os cães de raça voltavam a latir desesperadamente, e dizem que os cães veem coisas.
              Lenita ficou para sempre com a sensação do corpo inerte e mole entre os braços. Uma marca, uma presença, que procurava desfazer com as mãos. Cabelos louros e gotejantes. Às vezes, ela despertava na noite:
              - Acorde, acorde!
              A presença também daquele instante de silencio que pesara sobre a piscina. Um pressentimento apenas? Precisamente o momento em que Ela chegara, transparente e invisível, e se sentara  à beira da piscina, cruzando as pernas longas, antiquíssima, atual e eterna.

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Fontes: 
CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.
Roteiro Sentimental de Fortaleza/ Depoimentos de História Oral de Moreira Campos, Antonio Girão Barroso e José Barros Maia/ Coordenadores: Simone de Souza e Sebastião RogérioPrefácio de José Carlos Sebe B. Meihy; transcriadores: Oswald Barroso, Caterina de Saboya Oliveira e Sebastião R. Ponte. Fortaleza: UFC-NUDOC/SECULT-CE, 1996.


segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Fortaleza no Pós-Guerra: de Francesa para Americana

Na segunda metade dos anos quarenta, terminada a Segunda Guerra Mundial, enquanto a Europa tentava recuperar-se dos estragos causados pelo conflito, os americanos emergiram como os novos heróis, os vencedores que derrubaram Hitler e seus aliados.

O Estoril na Praia de Iracema era o reduto dos soldados norte-americanos em Fortaleza durante a 2a. Guerra

Em toda América Latina os americanos viram aumentar o prestígio e a idolatria pelos bravos soldados do Tio Sam. Nada mais natural para essas populações, inclusive a do Brasil, do que aderir à emergente cultura proveniente da América do Norte, o que significava, dentre outras coisas, aceitar as grandes invenções americanas: os utensílios de plástico, o pirex, as meias de nylon, a caneta esferográfica, além é claro, da Coca-Cola e outras bugigangas. 

Fortaleza, que antes da guerra estivera sob jugo da moda francesa, de onde eram importados tecidos finos, chapéus, vestidos, sapatos e perfumes, de repente, encantou-se pelas quinquilharias americanas. Já não eram as sofisticadas vitrines da Casa Sloper e da Broadway que chamavam a atenção; antes da guerra, maravilhosa era a Alemanha, grande parceira econômica com seus gênios inventores, onde o Brasil comprava máquinas e carros, e vendia grãos, matéria-prima e até armas. 

Passeio Público no tempo da Belle Epoque: chapéus, ternos e belos vestidos inclusive para as crianças (1920) 

A França mandava a frescura na forma de moda, de hábitos culturais, de artes e no modelo de urbanização. Agora, porém, a coisa estava mudando, e Tio Sam com sua festiva cartola estrelada começava a exercer sua influência sobre os ingênuos habitantes do Terceiro Mundo. E não foram só as quinquilharias que causaram sensação por aqui: a música latina, bem alegre e vibrante, as danças sensuais, a moda, a gastronomia, e a arquitetura. Os filmes encontraram espaço nos salões e nos cinemas da cidade e os colégios católicos passaram a priorizar o inglês como segunda língua, em vez do francês. Os jovens mascavam chicletes, tomavam Coca-Cola e dançavam Fox. Os mais velhos dançavam ao som de Glenn Miller e dos ritmos caribenhos. 

Fortaleza antes e depois da 2a. Guerra

Em frente as lojas do centro se juntavam pequenas multidões para assistir as demonstrações das novas aquisições. Nas Lojas de Variedades na Praça do Ferreira, os vendedores mostravam as maravilhas do plástico – através de copos que não quebravam mesmo quando eram arremessados ao chão – e do pirex, o novo vidro miraculoso que podia ir ao forno sem quebrar, para uma plateia que assistia tudo de boca aberta, queixo caído, maravilhada diante de tantas novidades.


Lojas de variedades, no centro de Fortaleza 

Mas sucesso mesmo fizeram as meias de nylon: primeiro correu a notícia de que os americanos tinham inventado uma “meia de vidro”. Seria tão fina e transparente que podia ser lavada e usada em seguida, pois secava instantaneamente. Logo depois as meias de nylon chegaram às vitrines e causaram furor; as tradicionais meias de seda foram deixadas de lado, as mulheres tinham prazer em ostentar a novidade que mostrava até os poros das pernas. Uma sensação! As vitrines mostravam as raridades como se fossem joias preciosas.

O plástico aumentou a família na forma de bacias, baldes, tigelas, pratos e até penicos. Então lançaram a grande novidade: o plástico em forma de tecidos, em peças estampadas. As mulheres não perderam tempo. Fizeram vestidos e desfilavam na esquina da Broadway. Mas logo abandonaram o modismo porque o vento não levantava suas saias e por causa do calor que fazia. Jogaram os vestidos no lixo, para só depois descobrirem que a novidade servia era para fazer cortinas de banheiro. 

Assim se deu a transição da elegante Fortaleza à francesa para a cidade americanizada: uma cidade seduzida por plásticos, pirex, e meias de ”vidro”.


extraído do livro: 
Royal Briar - A Fortaleza dos anos 40, de Marciano Lopes 
fotos IBGE e arquivo Nirez

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Fortaleza Belle Époque - Cuidados Médicos e Controle Social

A preocupação com o saneamento de Fortaleza surgiu na segunda metade do século XIX, integrado ao processo de remodelação e aformoseamento da Capital. Um conjunto diversificado de intervenções, e reformas sanitárias, disseminou-se pela cidade e entre a população, por todo o período que compreende parte do Império e a primeira República (1889-1930).

milhares de retirantes fugidos da seca do sertão, se concentram na Praça da Estação em Fortaleza, em busca de alimentos, trabalho e assistência médica.

A proporção que Fortaleza se adensava de gente e construções, verificou-se por parte das autoridades e da elite intelectual, toda uma produção de discursos acerca do que as autoridades e os habitantes precisavam ter e fazer para se atingir um desenvolvimento organizado, sistematizado, saudável e civilizado. E daí surgiu uma grande preocupação com a questão social dos menos favorecidos e que, segundo as autoridades, comprometiam o desenvolvimento e o grau de civilidade que se planejava alcançar.

Disciplinar o meio urbano remetia à necessidade de regular o social. Nessa perspectiva, produziu-se uma imagem negativa da população pobre, qualificada como indolente, propensa ao vício e à vadiagem. Assim, não tardou a aparecer a lista de acontecimentos apontados como obstáculos à ordenação de Fortaleza e que deveriam ser combatidos com rigor: epidemias, morbidade e mortalidade consideradas altas, proliferação de lixo, água insalubre, aumento do contingente de loucos, vadios, mendigos, menores abandonados, delinquentes, alagamentos, falta de higiene pública e doméstica, etc.

Santa Casa da Misericórdia - um hospital para os pobres



Os estabelecimentos e instituições foram surgindo à medida que os problemas se agravavam. As secas e epidemias foram as maiores responsáveis pela construção da Santa Casa da Misericórdia e do Lazareto da Lagoa Funda. A decisão de erguer um hospital que a cidade ainda não dispunha, foi motivada pelas doenças e sequelas deixadas pela seca de 1845. Apesar de parcialmente concluída em 1857, a Santa Casa só foi concluída em 1861, no mesmo local em que se encontra até hoje, entre o Passeio Público e a antiga cadeia. Até o início dos anos 30, quando aparecerem as Casas de Saúde, a Santa Casa foi o principal espaço de tratamento da população pobre, desde que não se tratasse de moléstias contagiosas.

Lazareto da Lagoa Funda - um hospital para doenças contagiosas

Para os portadores de moléstias contagiosas foi criado o Lazareto da Lagoa Funda, localizado a 7 km do centro da Cidade, edificado entre 1856 e 1857. O Lazareto foi o primeiro exemplo concreto da medicina urbana e preventiva em Fortaleza, já que foi criado com a finalidade de abrigar os prováveis atingidos pela epidemia de cólera que se espalhava pelos Estados do Nordeste. A epidemia efetivamente chegou e atingiu toda a província entre 1862 e 1864, ceifando a vida de 11 mil cearenses, com 362 óbitos na Capital.

Cemitério de São João Batista - para evitar a contaminação da água e do ar

Ainda na década de 1860, Fortaleza passaria por duas importantes resoluções visando a preservação da salubridade do ar e da água. Uma foi a decisão de transferir o Cemitério de São Casimiro, localizado em área central, para o arrabalde de Jacarecanga, com o nome de São João Batista. No lugar do São Casimiro foi construída, em 1873, a Estação Ferroviária.
A escolha de Jacarecanga para acolher o novo cemitério, deveu-se ao fato de um ser espaço praticamente vazio à época, além de estar a oeste da cidade, isto é, a sotavento. O cemitério não poderia ficar a leste (a barlavento), porque como os ventos correm na direção Leste-Oeste, eles espalhariam os germes do cemitério pela cidade. Pelo mesmo motivo, o Lazareto da Lagoa Funda também foi edificado no mesmo subúrbio de Jacarecanga.

Asilo São Vicente de Paulo - um hospital para os loucos

O Asilo de Alienados São Vicente de Paulo, concluído em 1886 na vizinha localidade de Arronches, hoje Parangaba, foi a décima instituição para loucos edificada no Brasil. Dentre as justificativas para a sua criação, estavam a retirada dos loucos do espaço urbano e afastamento das respectivas famílias que não podiam tratar nem controlar, além de afastá-los do crime. O maior impulso financeiro à construção do Asilo veio da lei provincial de 1876, concedendo à Santa Casa o privilégio de administrar o novo cemitério de São João Batista. Todo o saldo líquido auferido dessa atividade foi empregado na obra de construção do Asilo São Vicente de Paulo.

Dispensário dos Pobres e Asilo de Mendicidade - para os pobres e mendigos


Prédio antigo do Dispensário dos Pobres, no Benfica

O Dispensário dos Pobres foi criado em 1885, situado na atual Avenida da Universidade, no Benfica, entregue aos cuidados das Irmãs da Ordem Filhas de São Vicente de Paulo; também no Benfica foi instalado o novo Asilo de Mendicidade, patrocinado pela maçonaria através da congregação de três lojas maçônicas, a "Igualdade", "Fraternidade Cearense" e "Amor e Caridade". O asilo de Mendicidade foi criado em 1905, na Chácara Amaral, localizada na Avenida Visconde de Cauípe, hoje Avenida da Universidade, sendo depois transferido para a Chácara Virginia Salgado, no bairro Jacarecanga. Hoje é o Lar Torres de Melo.

Para menores abandonados foram criados o Patrocínio dos Menores Pobres, em 1903, a Escola para Menores Pobres (1908), e o Dispensário Infantil (1914).

Patronato Maria Auxiliadora e Internato Bom Pastor - para moças pobres, órfãs e mães solteiras

Para moças pobres e órfãs surgiu o Patronato Maria Auxiliadora (1922), criado pela Liga das Senhoras Católicas e instalado na atual Avenida do Imperador; e o Internato Bom Pastor (1928) situado no bairro do Jacarecanga,  onde eram confinadas as moças que tinham desviado suas condutas e, para não causarem vergonha à família, eram mandadas para lá e ali permaneciam até cair no esquecimento da sociedade.

 Internato Bom Pastor

As internas do Bom Pastor eram, muitas vezes, moças solteiras “de família” que engravidavam, e eram afastadas do convívio familiar, antes que a vizinhança percebesse o acontecido e começassem os comentários maldosos, e as especulações sobre paternidade. Se a mãe solteira fosse descoberta, ficaria “falada” e desonrada, e dificilmente arranjaria um noivo ou teria novamente um relacionamento sério. Assim, o expurgo familiar, evitava que tanto a moça quanto a família viessem a sofrer as consequências da desonra, ou que o bom nome da família fosse maculado.

Depois, com o passar do tempo, e purgado a culpa, as internas retornavam aos lares, depois de terem recebido cursos e aprendido trabalhos manuais sob orientação das irmãs religiosas, como costurar, bordar, cozinhar e outras atividades domésticas. As moças recolhidas ao Bom Pastor tinham uma maneira peculiar de se vestir: se cobriam de preto, lenço na cabeça, e nas ocasiões em que frequentavam missas, usavam um véu no rosto, evitando assim o reconhecimento de pessoas que estavam na igreja e pudessem, porventura identifica-las.

Saíam do Bom Pastor como quem deixa o cárcere depois de ter cumprido pena pelo mal cometido.  A criança fruto desse amor clandestino, era dada em adoção, com a condição de jamais poder ser revelado quem eram os verdadeiros pais. Além das mães solteiras, o Bom Pastor também acolhia órfãs e meninas abandonadas ou em situação de extrema miséria.

Campo Penal Agrícola de Canafístula - prisão agrícola para homens

Colônia Cristina em data anterior à instalação da Prisão Agrícola de Canafístula. À época da foto, o local abrigava retirantes da seca. (foto Brasiliana Fotográfica)   

Em 1925 foi construída e posta em funcionamento a primeira prisão agrícola, situada na Colônia Cristina, em Canafístula, denominada “Campo Penal Agrícola de Canafístula (atual Antônio Diogo). Naquele ano a Colônia registrava a presença de 34 sentenciados, recebendo diárias de mil e oitocentos réis e com direito a plantação de roçados às suas custas. Além do cultivo de algodão, milho, mandioca e feijão, a instituição comercializava lenha com a Estrada de Ferro Baturité. Antes, as terras da Colônia Cristina abrigaram retirantes da grande seca de 1877/1879. Depois que a prisão agrícola foi desativada, passou a funcionar no local o Leprosário de Antônio Diogo.  

Santo Antônio do Buraco - para menores abandonados

Em razão dos sucessivos períodos de secas e da consequente migração de sertanejos para a capital, havia um grande contingente de crianças órfãs, vítimas da estiagem ou de epidemias, que perderam os pais e seus responsáveis, e se viram sozinhas no mundo, sobrevivendo de esmolas, perambulando pelas ruas da cidade. As meninas eram encaminhadas ao Bom Pastor ou ao Patronato Maria Auxiliadora; os meninos, para o Santo Antônio do Buraco.

prédio principal da Estação Experimental de Santo Antônio de Pitaguary

Para esses meninos abandonados, recomendou-se prática regenerativa semelhante ao da Colônia Cristina, através de uma instituição disciplinar específica. Em 1928 surgiu um internato com características prisionais através da Estação Experimental de Santo Antônio do Pitaguary (atual Maracanaú).


Estrada de acesso à Fazenda Santo Antônio alguns anos antes da instalação do Internato 

A escola foi instalada na Fazenda Santo Antônio, de propriedade do Estado e se destinava a regeneração de menores com idade entre 8 e 18 anos. O prédio da escola foi construído com a ajuda de presos sentenciados. A operação de internamento é relatada com minúcia pelo governador:
  • primeiro veio uma lei que conferiu ao juiz municipal da 2ª. Vara a atribuição para recolher menores vagabundos ou mendigos;
  • Em seguida, foram colocados à disposição do juiz, pelo Secretário de Segurança Pública, os policiais requisitados, investidos da função de comissário de menores.
  • Os policiais sem demora, saíram as ruas e delas recolheram 48 menores para a Estação Experimental que funciona no Sitio Santo Antônio, de propriedade do Estado.

Estava assim criado, o reformatório “Santo Antônio do Buraco” como ficou conhecido popularmente. O lendário rigor aplicado aos internos permaneceu por muitas décadas no imaginário infantil cearense como verdadeiro signo de terror.

Fontes:
Fortaleza Belle Époque – reformas urbanas e controle social – 1860-1930, 
de Sebastião Rogério Ponte
Relatório Carneiro de Mendonça - 1936
Benfica de Ontem e de Hoje, de Francisco de Andrade Barroso
fotos Brasiliana Fotográfica, arquivo Nirez, relatório Carneiro de Mendonça


sábado, 5 de novembro de 2016

José Gentil, Banqueiro e Coronel

Nascido em Sobral em 11 de setembro de 1866, José Gentil Alves de Carvalho era filho de Antônio Alves de Carvalho e Francisca Cândida Vitorino de Menezes. Aos 17 anos, tendo perdido os pais, viu-se responsável pela família que eles deixaram e à frente de uma modesta organização comercial.  Para melhor gerenciar o negócio, transferiu-se para Fortaleza em 1893, onde junto com outros parentes, fundou a firma Frota e Gentil.  Dedicando-se principalmente ao ramo de tecidos, a firma foi aos poucos se ampliando com muitas representações.

Casal José Gentil - D. Melinha com seus 15 filhos em frente a casa antiga da chácara, que foi demolida e substituída pelo palacete que atualmente abriga a Reitoria da UFC. 1909.

Inaugurou em 1917 uma seção bancária, cuja expansão conduziu ao conceituado estabelecimento de crédito, Banco Frota e Gentil.  Casou-se no dia 19 de setembro de 1886, com Maria Amélia Tomé da Silva Frota – D. Melinha, também de Sobral, com quem teve 15 filhos, dos quais um ordenou-se padre, seis moças foram ser freiras, uma permaneceu solteira e sete casaram e lhe deram 69 netos. 


A história de José Gentil se confunde com a do bairro do Benfica. O coronel José Gentil adquiriu em 1909, um grande terreno de uma chácara no Benfica, em que havia uma casa modesta, antiga, que já fora propriedade de dois estrangeiros. Contratou junto a um arquiteto cearense, o projeto de uma nova residência, mais ampla, mais moderna. O imóvel foi concluído em 1918. 

O rico morador construiu uma pequena cidade dentro do bairro em formação. A maior parte da chácara de José Gentil foi desmembrada durante a vida do proprietário, para compor os quarteirões, as ruas e praças do bairro Gentilândia, implantado na década de 1930.

Bodas de ouro do casal José gentil/D. Melinha - com os filhos em 1936
Edificando numerosos prédios e reformando outros, tornou-se o grande urbanista de Fortaleza, principalmente após a criação do bairro da Gentilândia. Com esse vultoso patrimônio fundou em 1934, a Imobiliária José Gentil S/A, organização pioneira que se tornou a maior proprietária de prédios da capital cearense. Exerceu a presidência da Associação Comercial do Ceará durante 30 anos, e quando se afastou do cargo, tornou-se seu presidente de honra.  Embora alheio a cargos políticos, cedeu às circunstâncias e elegeu-se vice-presidente do Estado nas eleições de 1919.

Filhos, netos e bisnetos de José Gentil em frente à residência da família em 1953

José Gentil faleceu em 11 de março de 1941, na cidade de Poços de Caldas, onde se encontrava em temporada de estação de águas. Seu corpo foi trasladado para Fortaleza acompanhado pelo padre José da Frota Gentil, em avião Loocked tendo chegado no dia 13 de março.

O palacete no Benfica foi vendido pelos herdeiros e adquirido pela UFC na metade dos anos 50, quando a Universidade se encontrava em fase de instalação. Hoje abriga a Reitoria.
O enterro foi ocasião de grande consagração popular, com o caixão sendo transportado praticamente nos braços de seus admiradores e acompanhado por tão grande número de automóveis, que o cortejo já chegara ao São João Batista antes do último carro sair do Benfica. O Jornal Correio do Ceará do dia seguinte informou que foram 213 automóveis e mais 4 ônibus que constituíram o cortejo fúnebre. 

pesquisa: 
O Benfica de ontem e de hoje, de Francisco de Andrade Barroso
Ideal Clube - história de uma sociedade, de Vanius Meton Gadelha Vieira
Revista do Instituto do Ceará
fotos do livro Ideal Clube e Arquivo Nirez