O padre Vicente Pires da Mota, um dos notáveis
estadistas do Império, nasceu em São Paulo a 1° de setembro de 1799 e ali
faleceu, aos 83 anos de idade, no dia 30 de outubro de 1882. Presbítero
secular, quando se fundaram as academias de Direito no Brasil, foi um dos
primeiros matriculados, na de São Paulo, onde recebeu o grau de doutor. Foi
professor e diretor desta Faculdade. Administrou sua província natal, assim
como as do Paraná, de Minas Gerais, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e
do Ceará (1854-1855).
Deixou no Ceará, que governou com independência, alheio
às maledicências e intrigas duma politicagem mesquinha, fama de justiceiro e
enérgico. E as histórias que se contavam do governante, refletiam seu caráter.
Reformou o velho casarão da Praça General Tibúrcio, ao
lado da Igreja do Rosário, que servia de sede do governo do Estado, desde que
fora trocada com a câmara municipal pela residência colonial murada dos governadores
da Capitania do Siará Grande, na antiga Rua de Baixo. Mais tarde o casarão foi
batizado de Palácio da Luz. Seu pátio interno, com uma galeria coberta de tipo
colonial, foi obra do padre Vicente Pires da Mota.
Estava ele uma tarde fiscalizando o trabalho dos
pedreiros nesse pátio, quando um contínuo da secretaria do governo passou se
esgueirando rente à parede, de chapéu enterrado na cabeça, tentando não ser
visto. De gênio irritado, o padre avançou para o empregado e com um safanão e
estas palavras, atirou longe o chapéu:
– então, seu cachorro, já não se tira
mais o chapéu ao presidente da Província?!
Ao bater o chapéu no chão de tijolo, da sua copa se
derramaram um bocado de feijão, um embrulho rasgado de farinha de mandioca e
uns pedaços de carne seca. O dono dos víveres permanecia lívido e imóvel. Pires
da Mora dominado o ímpeto, perguntou-lhe: – que é isso?
– Senhor presidente, explicou humildemente o contínuo,
eu sou muito pobre e moro longe da cidade; por isso todas as tardes vou ali ao
mercado e compro o jantar para minha mulher, minha mãe e meus quatro filhos. É pouca
coisa, porque ganho uma miséria. Como sou funcionário do Palácio, não me fica
bem sair de lá levando embrulhos de comida, para que não pensem que vivo dos
restos do sr. Presidente, escondo as minhas compras dentro do chapéu... Por essa
razão não me descobri e nem cumprimentei V. Ex.ª como era do meu dever.
O homem fez menção de abaixar-se para apanhar o chapéu
e o que dele caíra. Pires da Mota deteve-o segurando-lhe o braço:
– não senhor!
Absolutamente! Quem derramou fui eu, eu é que devo apanhar e desculpar-me, pois
não podia adivinhar, não é verdade?
O presidente juntou as compras do contínuo
na copa do chapéu e entregou-lhe com um sorriso no rosto:
– vá com Deus para sua
casa e não volte amanhã nem depois. Dou-lhe dois dias de folga e vou tratar de
aumentar-lhe o salário. E empurrando o homem que chorava e queria beijar-lhe a
mão, ordenou ríspido: – suma daqui seu diabo!
Certa manhã, o padre-presidente recebeu a visita de uma velha magra e mal vestida, no Palácio do Governo. A mulher disse ao ajudante de ordens que precisava falar com o presidente com urgência. Pires da Mota recebeu-a e ouviu esta queixa misturada com lágrimas: era viúva, pobre, vivendo de costuras e rendas de almofada numa casinha da lagoa de Jacarecanga. Criava uma neta, filha única de seu único filho falecido, sendo a menina orfã de pai e mãe, a qual acabara de completar 16 anos.
Um barbeiro, que trabalhava na Travessa das Hortas e
morava no seu bairro, arrastara a asa à menina e a desencaminhara. Agora se
negava a reparar o mal. Depois de tentar todos os recursos, desesperada, ela
vinha apelar para o sr. Presidente, a fim de ver se era possível fazer-lhe
justiça.
Se o que me conta for verdade, respondeu Pires da Mota,
farei a justiça que a senhora deseja e rápida. Volte amanhã, nessa mesma hora e
traga sua neta. Mal a mulher se retirou, mandou chamar a autoridade policial,
para que fosse investigada a veracidade do fato. À noite, já estava informado
de ser tudo verdade.
No dia seguinte, a avó compareceu com a neta, uma jovem
alourada e débil, gravidez bastante avançada. Mandou-as sentar e mandou chamar
na sala o tal barbeiro, autor da façanha. Era um mulato com jeito de malandro, bem vestido, que de início teve um sobressalto diante das duas
mulheres, mas logo se dominou e assumiu uma postura petulante.
O presidente perguntou-lhe se era o pai da criança. O homem
aquiesceu com a cabeça. – então, porque não casa com a moça?
-- Porque ganho pouco
e não posso sustentar família.
– bem, falou o padre, eu lhe arranjo um emprego.
– é o senhor pode arranjar, mas eu não quero me casar.
– por que, meu filho?
–
porque não fui o primeiro, embora não negue que o filho é meu.
– isso dizem
todos os que fazem o que você fez, tornou Pires da Mota.
– pode ser, porém não vou me casar, declarou o barbeiro.
– está bem! E dirigindo-se ao ajudante de ordens, o
presidente ordenou:
– capitão, sente-se aqui na minha mesa e vá escrevendo o
ofício que vou ditar. E recitou, articulando bem as palavras “Ilm.º sr major
comandante do Corpo Fixo da Província do Ceará, no Quartel da Fortaleza de
Nossa Senhora da Assunção... tenho a honra de apresentar-lhe o cidadão...”
–
como é seu nome meu filho?
– Felisberto Martins.
Muito bem, prossiga “...
o cidadão Felisberto Martins, que vai
recrutado por minha ordem e deverá ser embarcado para o sul pelo primeiro
paquete...”
– é o mais que v.ex.ª me pode fazer, interrompeu o mulato,
assentar-me praça? Não quero outra coisa”
– é o mais? Já vai ver se é o mais...
e ditou:
– logo após ter verificado praça no dito Felisberto Martins, ordeno,
como comandante das Forças da Província, que sejam aplicadas no mesmo, 250
chibatadas, com a tropa formada em quadrado, por ter faltado ao respeito devido
ao presidente da mesma província, dentro do Palácio do Governo...”
O barbeiro ficou lívido. Atirou-se aos pés de Pires da
Mota
– sr presidente me perdoe, eu caso... e começou a chorar. O padre
levantou-o com brandura
– pois é, não precisa chorar rapaz, você casa e faz
muito bem. Eu serei padrinho do casamento e lhe arranjarei um emprego. Se você tratar
bem essa menina, ficaremos amigos para sempre... mas não diga nunca que isso é
o mais que eu posso fazer, porque ainda posso fazer muito mais, seu tolo!.
Era assim a justiça patriarcal dos velhos estadistas
do Império.
Extraído do livro
À Margem da História do Ceará, de Gustavo Barroso
fotos: Álbum de Vistas do Ceará - arquivo Nirez
fotos: Álbum de Vistas do Ceará - arquivo Nirez