sábado, 22 de dezembro de 2018

Os Caminhos de Ferro da Estrada de Baturité (1870 - 1909)


A Estrada de Ferro Baturité foi criada no dia 25 de junho de 1870, projeto de iniciativa de uma sociedade composta pelo senador Tomaz Pompeu de Sousa Brasil, o coronel Joaquim da Cunha Freire (Barão de Ibiapaba), o bacharel Gonçalo Batista Vieira (Barão de Aquiraz), o engenheiro José Pompeu de Albuquerque Cavalcante, e o comerciante inglês Henry Blockhurst, da firma inglesa R. Singlereust e Co. O projeto original previa a construção de uma ferrovia ligando a Capital do Estado até a Vila de Pacatuba, tendo um ramal até Maranguape.


Após o contrato de cooperação firmado entre a companhia e o Governo Provincial do Ceará, passou a denominar-se Estrada de Ferro de Baturité, e passou a ter como ponto final à cidade de Baturité, na região produtora de café. O objetivo principal do empreendimento, era o transporte da produção serrana para o Porto de Fortaleza. Antes da ferrovia, os produtos eram transportados no lombo de cavalos e jumentos.


No dia 1° de julho de 1873, foram iniciados os trabalhos de assentamentos dos trilhos. A EFB iniciou suas atividades quando a locomotiva Fortaleza fez o percurso da Estação até a parada do “Chico Manoel”, na então Rua do Trilho (atual Tristão Gonçalves) esquina com a Rua Liberato Barroso. Em seguida foi inaugurado o trecho até a estação da Parangaba, antiga Arronches,  em 30 de setembro de 1873. Depois, foram inauguradas as estações de Mondubim, Maracanaú, em 1875, e em 1876, foi inaugurada a estação de Pacatuba.

A Estação Central, em Fortaleza, mais tarde denominada Estação João Felipe teve o lançamento da pedra fundamental em 30 de novembro de 1873, mas as obras só foram iniciadas em 1879, sendo concluídas em 1880. O motivo da interrupção dos trabalhos foi a terrível seca que assolou o Estado no período de 1877 a 1879, que abalou a situação financeira da companhia. Tanto a estrada de ferro quanto a estação central foram construídas utilizando a mão-de-obra de retirantes dessa estiagem catastrófica.

O local escolhido para a construção da Estação Central foi o antigo Campo da Amélia, atual Praça Castro Carreira – conhecida por Praça da Estação – no terreno que corresponde ao extinto Cemitério de São Casimiro. A partir de 1865, o campo santo ficou em completo abandono até que, em 1877 se resolveu sua demolição. As autoridades mandaram exumar alguns restos e os recolher ao Cemitério de S. João Batista. Em 1878 já estava quase tudo em ruínas: túmulos desmoronados, grades quebradas, ossos dispersos pelo chão, onde animais pastavam tranquilamente.  A Estação Central foi construída sobre esses túmulos remanescentes. 

E a Estrada de Ferro seguiu rumo ao interior do Estado, em busca da serra, integrando cidades e comunidades, levando mercadorias e pessoas, trazendo progresso, riqueza e mobilidade.  Foi de grande importância para o desenvolvimento do Ceará e muito influenciou na criação das cidades por onde ela cruzava.  Não apenas fez surgir novos núcleos de povoamento, mas também fez surgir novas ruas, novos traçados, novos hábitos, novos horizontes. A inauguração de uma nova estação, movimentava o comércio local e todo tipo de mercadoria era vendida na chegada do trem, principalmente comidas, frutas e peças de artesanato local, aproveitando a nova freguesia que chegava a bordo dos trens de ferro. As vendas feitas nos trens passaram a ser a principal fonte de renda de muitas pessoas. Suas idas e vindas mexiam com tudo por onde passava, movimentava pessoas, cargas, lugares, vidas e sonhos.
Por meio do Decreto nº 6.918, de 1 de junho de 1878, o Governo Imperial, assumiu  a parte construída da ferrovia e os direitos da Companhia de prolongar os caminhos de ferro até o município de Baturité. Em dois anos de trabalho, enquanto durou a estiagem, a estrada de ferro empregou cerca de 50 mil retirantes cearenses na sua construção. Assim, seguindo a linha tronco ou Linha Sul, rumo a Baturité, foram implantadas as seguintes estações:
Guaiuba - 1879/1880 

A Estação de Guaiuba foi a primeira do prolongamento da estrada de ferro desde Pacatuba, rumo à Baturité. A cidade cresceu a partir da estação. O até hoje distrito de Guaiuba, Água Verde, teve sua estação ferroviária inaugurada em 1879. No ano seguinte, 1880, foi inaugurada a Estação de Baú, mais tarde João Nogueira.

Acarape – 1879
O local em que a estação foi construída chamava-se Calaboca e já existia antes da chegada da ferrovia. Depois, com divisões municipais e anexações de distritos, passou a Redenção e Acarape, que por sua vez, era o nome original do município no qual se situava o povoado de Calaboca. A estação foi desativada em 1988. 

Canafístula - 1880 
A Estação foi inaugurada em 1880, ao pé da Serra do Vento, entre Fortaleza e Baturité. Na década de 1940 o lugar passou a se chamar Antônio Diogo.  

Aracoiaba – 1880
A estação foi inaugurada com o nome de Canoa. Aracoiaba tem, na verdade, duas estações: em algum momento, a velha, a original, que ficava no bairro de Santa Teresa, foi substituída por uma mais nova, no bairro São José, que é que hoje está ao lado dos trilhos. Possivelmente esta estação original tenha sido a de Canoa, aberta em 1880.

Baturité – 1882


A estação de Baturité foi inaugurada em 1882, permanecendo oito anos como ponta da linha. Era ela o objetivo inicial da ferrovia.  Ao lado do prédio da estação, sobre um monumento, foi colocada uma antiga locomotiva - Maria Fumaça, em comemoração aos cem anos do empreendimento. Ainda podem ser observados os antigos armazéns e as antigas linhas que serviam para a manobra dos trens. Baturité foi elevado à categoria de cidade desde 1858. 

Capistrano – 1890
Os trabalhos de prolongamento da estrada ficaram paralisados por 8 anos depois que a ferrovia chegou à Baturité. Em 1890 as obras foram retomadas com a inauguração da estação de Capistrano, à época um simples povoado denominado Riachão, subordinado ao município de Baturité. A estação de Riachão foi a primeira feita para escoamento da madeira produzida na região. Com a estrada de ferro, Riachão logo prosperou, ativando seu comércio com outras localidades, conquistando o título de povoado, concedido pela Câmara Municipal de Baturité. O distrito foi criado em 1896. Em 1931, o seu nome foi alterado para Capistrano de Abreu, em homenagem ao historiador brasileiro.  Foi elevado à categoria de município com a denominação de Capistrano, pela lei estadual nº 1153, de 1951.

Caio Prado – 1890  

A estação de Cangaty foi inaugurada em 1890, quando a localidade ainda era distrito de Baturité. Em 1944 seu nome foi alterado para Caio Prado. Caio Prado é distrito de Itapiúna desde 1953.

Itapiúna – 1891
A estação de Itaúna foi inaugurada em 1891. Mais tarde seu nome foi alterado para Itapiúna. O prédio atual foi construído entre os anos 50 ou 60 substituindo o original.

Quixadá – 1891

No ano de 1891, Quixadá passou a contar com duas estações ferroviárias, nos distritos atualmente denominados Muxiopó e Juatama. A estação do Junco foi inaugurada em 1891, com o nome da fazenda dos Queiroz, que já existia à época. Nos anos 1940 teve o nome alterado para Muxiopó. Em 1961, o nome foi alterado para Daniel de Queiroz. A estação de Juatama foi inaugurada no mesmo ano, 1891. 

Quixeramobim – 1894.

Duas estações ferroviárias foram inauguradas em Quixeramobim no mesmo ano, 1894: uma na sede do município e a outra no distrito de Uruquê, esta denominada Estação Francisco Sá. Em 1899, em um povoado, foi inaugurada a terceira estação ferroviária de Quixeramobim, que recebeu o nome de Prudente de Morais. 

Redenção – 1896
A estação de Itapaí foi inaugurada em 1896, na subida da serra entre Fortaleza e Baturité. Em 1922 era apenas uma parada. Na década de 1940 seu nome foi mudado para Amaro Cavalcante. 

Vicente de Castro – 1899
A estação de Sebastião de Lacerda foi inaugurada em 1899. Mais tarde teve o nome alterado para Vicente de Castro. Não há uma definição exata sobre qual localidade foi instalada a estação, mas os mapas ferroviários a situam entre os municípios de Quixeramobim e Senador Pompeu.

Senador Pompeu – 1900

O trem chegou à vila de Humaitá em 1900, com a inauguração da estação homônima. Em 1901, Humaitá foi elevada à categoria de município com o nome de Senador Pompeu, um dos idealizadores da estrada de ferro, em 1870.

Piquet Carneiro - 1907
A estação de Girau foi inaugurada em 1907. Sua inauguração mereceu até uma nota do jornal O Estado de S. Paulo de 16/11/1907, talvez por ser, então, ponta de linha - condição que manteve até meados do ano seguinte. O nome foi mais tarde alterado para Piquet Carneiro, homenagem ao engenheiro Bernardo do Piquet Carneiro, que dirigiu a Rede de Viação Cearense, chefiou a comissão encarregada de concluir o Açude Cedro em Quixadá e construiu outros Açudes públicos no Ceará.  Uma segunda estação, a de Miguel Calmon foi inaugurada em 1908, no local correspondente ao atual distrito de Ibicuã. Mais tarde seu nome foi alterado para o nome do Distrito.
  
Acopiara – 1910
A estação Afonso Pena foi inaugurada em 1910, no povoado de Lajes, à época subordinado ao município de Iguatu.  Lajes começou a se desenvolver justamente em razão da chegada da estrada de ferro. O município foi criado em 1921, desmembrado de Iguatu, e elevado a categoria de Vila; em 1938, foi elevado à categoria de Cidade. Em 1943 passou a se chamar Acopiara. Apesar de só ter sido inaugurada em 1910, em janeiro de 1909, o jornal O Estado de São Paulo publicava a noticia dando conta da conclusão do prolongamento da estrada de ferro, no trecho correspondente a cerca de 27 quilômetros entre as estações de Miguel Calmon e Afonso Pena. E que a inauguração dependia de acerto entre governo e arrendatários.

Tendo a estrada de ferro sido arrendada em 1898, o arrendatário assumiu o compromisso de concluir os trabalhos de construção até Humaitá, que se achavam paralisados.  Em 9 de Maio de 1898, começaram os trabalhos, na extensão de 51,920 quilômetros e a 14 de Julho de 1899 inaugurava-se a estação de Sebastião de Lacerda, ficando toda a linha entregue ao tráfego em 2 de Julho de 1900, até a estação de Humaitá, hoje denominada Senador Pompeu.  O Governo decidiu continuar o prolongamento da estrada e com esse intuito inaugurou os trabalhos de construção a partir de Senador Pompeu, em 18 de Setembro de 1903. 


Estação de Camocim, inaugurada em 1881, construída pela Estrada de Ferro Sobral  

Em 1878, o governo imperial determinou com seus próprios recursos, a criação de uma outra ferrovia no Ceará – a Estrada de Ferro Sobral – ligando Camocim a Sobral, na qual também foi usada a mão-de-obra sertaneja. O trecho Camocim-Granja foi inaugurado em 1881 e em dezembro de 1882, foi inaugurada a estação de Sobral.
Em 1909, quando a ferrovia estava na cidade de Acopiara, a Estrada de Ferro Baturité foi juntada com a Estrada de Ferro Sobral e criada a Rede de Viação Cearense.



Fontes:
IBGE
http://www.estacoesferroviarias.com.br/
Revista Fortaleza, fascículo 3.
História do Ceará, de Airton de Farias
Fotos: Estações Ferroviárias, IBGE e Fortaleza em Fotos, Arquivo Nirez e Brasiliana Fotográfica

domingo, 4 de novembro de 2018

Tangerine-Girl (Um Conto de Rachel de Queiroz)


imagem do livro Caravelas, jangadas e Navios de Rodolfo Espínola
De princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim” nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples. 

Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U. S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.

O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento — sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.

Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!”— embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.

A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U. S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também — não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.

Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.

Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve ideia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.

Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.

Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de “Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava adeus.

Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.

A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela? Sim, decerto… e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer “a hora depois do meio-dia”.

Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho — e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.

Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada, aproximando-se.

Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão — até parecia manobra militar —, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.

E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo…

Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base — só viu escárnio, familiaridade insolente… Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja… decerto pensavam… Meu Deus do Céu!

Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:
— Desculpem… houve engano… um engano…

E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.

Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio.

Considerado um dos cem melhores contos brasileiros do século. Extraído do livro “O melhor da crônica brasileira”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1997.


Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, no dia 17 de novembro de 1910. Filha de intelectuais, do advogado Daniel de Queiroz Lima e de Clotilde Franklin de Queiroz, era descendente, pelo lado materno, da família Alencar (sua bisavó materna era prima José de Alencar).

Com apenas 7 anos sua família muda-se para o Rio de Janeiro e depois para Belém do Pará. Depois de dois anos retornam ao Ceará e Rachel torna-se aluna interna do Colégio da Imaculada Conceição, formando-se professora em 1925, aos 15 anos de idade.

Lecionou História aos 20 anos, em 1930, publica seu primeiro romance, “O Quinze”. Nessa obra, a escritora retrata a seca de 1915 no nordeste do país e a realidade dos retirantes nordestinos. A obra bem recebida pelo público, “O Quinze”, foi agraciada com o prêmio da Fundação Graça Aranha.

Em 1927, após uma publicação com o pseudônimo “Rita de Queiroz” no Jornal do Ceará, Rachel é convidada para colaborar nesse jornal. Nele, começa a publicar diversas crônicas e a trabalhar como repórter. Foi militante política e afiliada ao Partido Comunista Brasileiro desde 1930.

Em 1932, casa-se com o poeta José Auto da Cruz Oliveira, separando-se em 1939. No ano seguinte, casa-se novamente com o médico Oyama de Macedo, com quem permanece até seu falecimento, em 1982. Em 1992, escreveu o romance “Memorial de Maria Moura”, o qual lhe conferiu o "Prêmio Camões".
Faleceu aos 92 anos, no dia 4 de novembro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro, enquanto descansava em sua rede. 


quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A Praia do Futuro do Passado e do Presente


A única forma de chegar àquele local até meados dos anos 50, era de jipe. Todos os dias o engenheiro Waldir Diogo de Siqueira, fundador da FIEC (Federação das Indústrias do Estado do Ceará), subia no veículo com capota de lona e desbravava as dunas que davam acesso à faixa de litoral que, mais tarde ficaria conhecida por Praia do Futuro.

Lançamento do loteamento na Praia do Futuro: na foto, José Coelho Guimarães, Murilo Mota, governador Faustino Albuquerque (de roupa escura), Waldir Diogo Vital de Siqueira, Adahil Barreto e Paulo Cabral de Araújo - abril de 1950 (foto Arquivo Nirez). 


Em princípio, o interesse comercial naquelas terras do chamado Sitio Cocó, de propriedade do industrial Antônio Diogo – pai de Waldir Diogo – resumia-se a extração do sal marinho e à criação de gado para salga da carne, com vistas à exportação pelo Porto do Mucuripe.

Por isso, quando Waldir Diogo resolveu lançar um loteamento no local, em abril de 1950, foi difícil encontrar compradores. O acesso à ampla faixa de terra loteada que se estendia por 7 quilômetros de costa, do Farol do Mucuripe à foz do Rio Cocó, exigia dos eventuais interessados uma boa dose de espírito aventureiro.

terrenos demarcados na Praia do Futuro: os lotes mediam 20x40 metros. Postal dos anos 70


Para nivelar o terreno e dar uniformidade aos lotes, Waldir Diogo recorreu a maquinário pesado, aplainando uma série de dunas naturais. Em meados da década de 1960, surgiram ali, ainda timidamente, os primeiros estabelecimentos de lazer: o restaurante Chez Pierre e o Fortune Drive-in, precursores das atuais barracas.

Em 1973, quando a Praia do Futuro continuava sendo um local ermo e distante, o engenheiro civil Cornélio Diógenes resolveu fazer ali um novo loteamento. Negociou uma gleba de 12 hectares com a família Diogo. Apressou-se em dotar o terreno de água, calçamento e energia. Construiu dez casas, a fim de definir o padrão do loteamento, batizado com o nome de “Vereda Atlântica”.

Loteamento Vereda Atlântica, o primeiro residencial localizado na Praia do Futuro, construído na década de 1970 - foto O Povo - 1977


Em 1975 o engenheiro foi um dos primeiros a se mudar com a família para “aquele fim de mundo”, como definiam os amigos escandalizados com sua decisão. Cornélio, que em 1978 faria o loteamento Lago Jacarey, morou durante 7 anos no Vereda Atlântica, de onde saiu por questões pessoais; avalia que “A Praia do Futuro continua sendo a praia do futuro”. Hoje acredita que tomaria decisões diferentes: “ – é uma trabalheira fazer um loteamento. Se fosse agora não faria nenhum dos dois. No caso do Vereda procurei preservar, mas tive que mexer com as dunas. No Jacarey o problema foi o lago, cavamos para aprofundar ao mesmo tempo que aterramos uma parte do entorno. Na época nós não tínhamos tanta consciência ambiental, reconhece.”

Logo depois do Vereda, o ex deputado Jeová Costa Lima fez outro grande loteamento, por trás da Igreja Nossa Senhora de Lourdes, indo da Avenida Trajano de Medeiros à Dolor Barreira.


O loteamento do ex deputado, todo construído no alto de dunas remanescentes, vendeu bastante, e com o passar do tempo acabou se transformando num novo bairro: Lourdes (ou Dunas), apartado da Praia do Futuro. Foto de 2012 - Fortaleza em Fotos


Com a ampliação da Santos Dumont, em 1976, estabeleceram-se dois tipos de fluxos simultâneos para o local. A população de baixa renda residente nas adjacências do Farol, iniciou um processo de migração para a Praia do Futuro, fixando-se no Vicente Pinzon e em outras regiões circunvizinhas. As classes média e alta também se sentiram atraídas pela nova faixa de praia virgem aberta pela expansão imobiliária, a partir da conclusão da Avenida Zezé Diogo, em 1984, e pela urbanização do calçadão, em 1993.

Avenida Dioguinho, construída em 1969, reformada e melhorada nos anos 70. E uma Praia do Futuro quase vazia - Foto Anuário do Ceará
  

Contudo, o projeto de tornar a Praia do Futuro uma versão cearense da Barra da Tijuca – bairro de classe alta do Rio de Janeiro, caracterizado pela presença de mansões e condomínios de luxo – esbarrou na salinidade típica da área. A chamada “maresia”, que corrói estruturas metálicas, eletrodomésticos e automóveis, foi um empecilho à efetiva consolidação do uso residencial do local. Segundo especialistas, a ausência de arborização, só agravou o problema.

A despeito do notório revés, a zona das dunas remanescentes foi ocupada por residências de alto padrão. E o trecho de praia após o cruzamento da Zezé Diogo com a Avenida Santos Dumont, apesar da polêmica sobre a pertinência e a legalidade da instalação das tradicionais barracas de praia (na verdade, grandes complexos de lazer com playgrounds, restaurantes, piscinas, chuveiros, lojas, banheiros e gramados), firmou-se como área de recreação preferencial da cidade.

Interior de uma barraca na Praia do Futuro - Fortaleza em Fotos
panorâmica da Praia do Futuro - foto Diário do Nordeste


Há anos uma disputa judicial remexe as areias de tais complexos, que oferecem infraestrutura, mas limitam a circulação democrática, impondo uma ocupação elitista ao espaço que deveria ser de livre acesso. Em sua defesa, os donos dos empreendimentos apontam a atração de turistas, os empregos gerados e a oferta de opção segura de lazer – que já faz parte da cidade de Fortaleza.

Em 2005 o Ministério Público Federal moveu uma ação tratando de irregularidades graves cometidas pelos empresários – apropriação clandestina de trechos da praia, ocupação de áreas que excedem os limites determinados e instalação de obstáculos para banhistas que não são clientes. Na época, o MPF recomendou que 60 barracas abandonadas ou em precárias condições fossem demolidas, enquanto a Advocacia Geral da União (AGU) definiu todos os 154 equipamentos como irregulares, pedindo a limpeza da área.

ruínas à venda - foto Fortaleza em Fotos

De lá para cá, debates, campanhas e mobilizações se sucederam, até que, em 6 de agosto de 2013, o Tribunal Regional Federal da 5ª. Região decidiu que os obstáculos de acesso a praia devem ser retirados, mas as barracas podem permanecer onde estão, já que não foram construídas na área de praia, mas na chamada berma (pós praia).  Como parte da defesa, foi invocada a “Lei de Mercado”, sob alegação que, se o negócio imobiliário não pode desenvolver-se a contento, a vocação turística se impôs com vigor na Praia do Futuro.



Extraído do livro 
História Urbana e Imobiliária de Fortaleza
de Lira Neto
  

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A Origem da Água Potável em Fortaleza

Em 1904, 0 sanitarista Rodolfo Teófilo denunciava: a cidade era abastecida por fontes de procedência duvidosa, onde burricos e carregadores atentavam contra higiene pública.




É difícil encontrar-se uma cidade mais infestada de pedintes do que Fortaleza. A razão da estupenda mendicidade está nas secas. Cada flagelo que passa, deixa na Capital algumas centenas de inválidos, a aumentar a cifra já bastante crescida de inúteis. Recordo-me perfeitamente de Fortaleza antes de 1877. Havia pedintes a esmolar pelas ruas. Eram poucos, então.

Hoje, nos dias de sábado, vê-se uma procissão de esmoleres, rua abaixo e rua acima, e tão crescida que espanta. A falta de brio da arraia miúda em Fortaleza, chegou ao ponto de santificarem o sábado. Reservam este dia para as esmolas... As lavadeiras, por exemplo, não trabalham nos sábados, pedem esmolas. Posso afirmar isso de visu porquanto as lavadeiras são poços à flor da terra disseminados pelas areias de Fortaleza, e todas as vezes que por eles passei no mencionado dia, não vi uma lavadeira sequer.

É de buracos também nessa área suburbana que a população da Capital se abastece de água. Sabia que a água que se bebe em Fortaleza vinha das areias, mas nunca imaginei que fosse tirada de semelhantes fontes. Fiquei escandalizado quando vi um desses pequeninos pântanos, abertos naquela areia sáfara, exposta totalmente ao sol, cercado de aguadeiros e seus burricos.

E como é colhida a água? O animal, ordinariamente um jumento, é levado para a beira do poço, e enquanto ele se farta de água, se lhe enchem os canecos (barris de madeira). O focinho do animal lavado ali, causa menos nojo e é menos repugnante do que as cabeludas pernas dos aguadeiros que às vezes na fonte entram até meia canela. Porcos por índole e por educação, mui naturalmente pisam na água e nela lavam o rosto e depois levam-na a vender aos habitantes da capital, que imprevidentes como o aborígene, deixam de construir cisternas para recolher as águas das chuvas, esperando que o poder público melhore as aguadas.

Este, em sua habitual despreocupação, esquece por completo o lado utilitário dos negócios públicos e cuida de embelezar a cidade, ornando-a de avenidas e jardins. Quem nos visita sabe que temos bons logradouros, vê as nossas avenidas, mas não sabe de onde vem a água que bebemos. Quando será que os homens que nos governam tomarão mais a sério a saúde pública do que o embelezamento da cidade?

O abastecimento de água fora objeto de concessão dada pelo governo em 1862, por 50 anos, a José Paulino Hooholtz, a fim de fazer o encanamento de água potável do seu sítio no Benfica, para chafarizes espalhados pela cidade, tendo sido celebrado o contrato a 27 de maio de 1863. Além da exclusividade da venda de água, o contrato previa que a empresa deveria vender água em carroças por toda a cidade, pelo dobro do preço cobrado nos chafarizes.

O Chafariz da então Praça José de Alencar (atual Waldemar Falcão) foi instalado em 1836, no Largo do Palácio, pelo presidente da Província José Martiniano de Alencar

Em 1866 a concessão foi transferida para a empresa inglesa Ceará Water Works Co, que tentou organizar o serviço de abastecimento por meio de uma pequena rede distribuidora de água apanhada em cacimbas, de onde era captada por meio de bombas para dois reservatórios instalados no Benfica. Dali a água era canalizada para o centro da cidade, aproveitando-se o declive do terreno que facilitava o escoamento. Com a seca de 1877-79, as cacimbas e as demais fontes secaram e o abastecimento foi suspenso. 

Barragem do Açude Acarape 

Passado o período mais agudo da escassez de água com a volta das chuvas, e não contando a cidade com um concessionário oficial, a distribuição voltou aos padrões anteriores a 1862, onde a água potável era obtida em chafarizes, riachos ou aguadas. A localização desses mananciais não é precisa, alguns são localizados genericamente como “nas areias”. 

Sabe-se que não havia nenhum tipo de controle ou preocupação com a higiene. Água para tomar banho, lavar roupas, cozinhar, beber, e para outras atividades, provinha da mesma fonte, assim, não era de se estranhar a forte presença de lavadeiras e banhistas nos riachos, açudes e lagoas. Os documentos existentes descrevem essas aguadas como locais marcados pelas brigas e falta de asseio. Como figura central no abastecimento de água principalmente em residências, estava o aguadeiro, primeiro em burricos, mais tarde em carroças. E foi esse o cenário visitado e descrito por Rodolfo Teófilo. 

Os logradouros públicos dispunham de cacimbas e cataventos para manutenção dos jardins - Praça Marquês de Herval - atual Praça José de Alencar - 1912

Sorte de quem tinha uma cacimba no quintal. Mas construir um reservatório como este, custava caro, e poucos podiam pagar. Por conta do solo arenoso da cidade, era imprescindível o forro interno para evitar desmoronamento e assoreamento.

Somente em 1911, no governo Nogueira Accioly, o Dr. João Felipe elaborou um projeto que não foi concretizado de imediato em razão da deposição do governador. Mesmo assim haviam sido construídos dois reservatórios na então Praça Visconde de Pelotas, atual Praça Clóvis Beviláqua, com capacidade de 760.000 cada uma, além do estabelecimento de 42 km de canos pelas ruas. 

O prosseguimento dos trabalhos ocorreu em 1923, quando Ildefonso Albano contratou uma empresa americana, e o serviço foi inaugurado oficialmente no dia 3 de maio de 1926.
ao lado, a Praça Clóvis Beviláqua com os canos que seriam utilizados no sistema de abastecimento de água
Praça Clóvis Beviláqua já com os reservatórios em funcionamento - década de 1930

Até a data da inauguração do sistema de água do Açude Acarape, a distribuição de água ainda era feita em lombos de jumentos com depósitos de madeira. Algumas fontes dedicaram-se a esse comércio tornando-se conhecidas no mercado, por terem ampliado a oferta através de um grande número de vendedores avulsos que se lançaram no comércio ambulante.

O fornecimento voltou a ser alterado em 1975, com a inauguração em 30 de setembro, do primeiro reservatório do sistema Pacoti, o Açude Gavião.   


Fontes:
Fortaleza e a Crônica Histórica, de Raimundo Girão
História Urbana e Imobiliária de Fortaleza, de Lira Neto
O Abastecimento de Água em Fortaleza - CE (1813-1867), de Emy Falcão Maia Neto - Revista Espacialidades [online] 2014.v.7. n° 1
fotos do Arquivo Nirez