quinta-feira, 28 de junho de 2012

As Antigas Padarias

Não tinha muita lógica. A água não era boa, mas o pão era excelente, elogiado por todos. Tão bom quanto os melhores do Brasil, diziam. No entanto, o pão fabricado em Fortaleza perdeu a qualidade. Está longe de ser o que foi, leve, saboroso e de bom aspecto. 

Padaria Ideal
Inaugurada em 1925, a Padaria Ideal funcionou inicialmente na Rua Barão do Rio Branco. Depois foi vendida e mudou-se para a esquina da Rua Guilherme Rocha com a Avenida do Imperador. 

Não seriam muitas as padarias de Fortaleza nas duas primeiras décadas deste século. Talvez não chegassem a uma dúzia, mas o pão era de boa qualidade. Havia a Padaria Aveirense, a Palmeira,  a Industrial, a Fábrica Aliança – movida a vapor e talvez por isso, a primeira a se designar fábrica – e a tradicional Santo Antônio, de Emilio Sá, na Rua do Livramento (atual Clarindo de Queirós) , a única de propriedade de cearenses, pois as demais pertenciam a portugueses e italianos.

Padaria Palmeira
A Padaria Palmeira funcionava na esquina das ruas Senador Pompeu com Guilherme Rocha, para onde mudou-se em 1923. Pertencia a firma Ferreira da Silva & filho. Além da panificação atuava também no ramo de torrefação com o Café Palmeira.
     
Em Parangaba havia a Padaria Natalense, de José Pedra, crioulo forte simpático, que além do pão fabricava à tarde umas rosquinhas de grande procura, principalmente nas festas de Bom Jesus, em dezembro.  Diziam que o segredo das rosquinhas vinha do uso da água da lagoa vizinha. O fato é que nenhum outro estabelecimento de Fortaleza chegou a imitar a deliciosa iguaria fabricada pelo Zé Pedra. 

Padaria Imperial
A Padaria Imperial de Antônio Escudeiro de Almeida e José Antônio da Silva, foi fundada em 1923, na Avenida Visconde do Rio Branco. Em 1934 passou a pertencer ao grupo de M.Dias Branco.  

Nos velórios daqueles tempos era costume dos presentes irem buscar na padaria mais próxima, de madrugada, os pães quentes para matar a fome dos que “faziam o quarto”. Os mais afamados eram os pães sovados da Padaria de Emilio Sá. Na Rua 24 de maio instalou-se na década de 1910 a padaria do português José da Silva Bottas,  que pôs o nome de Padaria Biju. A designação dava margem a comentários. Teria o proprietário aportuguesado a palavra francesa ou usado apenas uma variante de beiju? O certo é que os pães a Biju eram gostosos e as famílias freguesas recebiam de brinde no Natal um bonito e enfeitado pão doce, especialmente fabricado para a época. 

Padaria Lisbonense
Em 1875 surgiu a fábrica de produtos alimentícios que deu origem à Padaria e Confeitaria Lisbonense.  A Lisbonense foi fundada em março de 1916, por Pelágio Rodrigues de Oliveira, José Teixeira de Abreu e Abílio Rodrigues de Oliveira. Em 20 de abril de 1927, passou a funcionar na Rua Pedro Borges, 151/57. Encerrou suas atividades em 10 de outubro de 1983, sob a acusação de estar poluindo o centro da cidade.

Também houve um tempo em que começou a aparecer a tarde o chamado pão do chá. Eram pães especiais, vendidos em latas carregadas pelos padeiros que o apregoavam – olha o pão do chá! – bem apresentados, ainda quentes e nos baús de lata pintados de verde. As famílias ficavam à espera dos pães para o café da merenda, que nunca era chá, que ninguém estava doente...
Os pães da tarde, fabricados com esmero por duas ou três padarias eram de três tipos: o pão do chá, o pão suíço e o pão de leite. Também havia o pão-baliza que dava margem a trocadilhos pitorescos.
Certa vez um desses entregadores de pão da tarde propiciou uma cena tragicômica. Passou anunciando mais tarde do que no seu horário habitual:
- pão de leite, suíço e doce.
Devido a meia língua do vendedor novato e o pregão fora de hora, uma senhora entendeu que era o grito de um gazeteiro, anunciando que o “Padre Leite suicidou-se”, e tratou de espalhar a noticia.
Quanto ao pão da manhã era entregue em domicilio pelos padeiros que o conduziam ao ombro em grandes cestos de vime que arriavam e levantavam, numa rápida e habilidosa operação. 

Padaria Americana
A Padaria Americana foi instalada na Rua General Sampaio, quando o proprietário João Otávio Vieira Filho, transferiu o estabelecimento de Aracati para Fortaleza em 1880. Foi a primeira fábrica de biscoitos e bolachas do Ceará.  

Mas nem só de pão viviam os cearenses da capital. Havia as bolachinhas de manteiga, e de coco; havia ainda os pães-doces, pequenos ou artisticamente desenhados;  e havia o já mencionado pão sovado (Provença), de formato curioso a que Pedro Nava chamou de pão de Provença, em forma de bundinhas e que se dividia separando as duas nádegas.
Curiosas eram também as bolachas fogosas, grandes, redondas e grossas, um tanto maçudas, mas apreciadíssimas no café da manhã. Essas bolachas não eram fabricadas regularmente  embora tivessem muita procura. 
Todos esses produtos há muito deixaram de ser fabricados em Fortaleza.  O que temos nos dias atuais, é o manjado pãozinho com bromato:  grande, oco, seco, só casca, que se esfarela ao ser tocado.


Extraído do livro
Fortaleza de ontem e anteontem, de Edigar de Alencar
      

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Junto à Sombra do Forte


Junto à sombra dos muros do forte
A pequena semente nasceu.
Em redor, para a glória do Norte,
A cidade sorrindo cresceu.
No esplendor da manhã cristalina,
Tens as bênções dos céus que são teus
E das ondas que o sol ilumina
As jangadas te dizem adeus.

Hino do município de Fortaleza
Letra por Gustavo Barroso
Melodia por Antônio Gondim

No meio político cearense, Fortaleza é apontada como uma cidade rebelde, palco de revoltas populares e armadas, como a que depôs a Oligarquia Accioly, em 1912, e de movimentos políticos reivindicatórios diversos, como os que são realizados na Praça do Ferreira. Apesar de não ser objeto de teses acadêmicas, é curioso notar como as origens de Fortaleza estão ligadas às disputas políticas.

Em 1912 após depor o oligarca Accioly, populares se rebelam e cavam trincheiras em frente da Assembleia Legislativa, impedindo reunião de deputados aciolinos. (Arquivo Nirez) 

Começou com a escolha do local, por ocasião da criação da Vila do Ceará, em 1699, para a instalação do pelourinho. A carta-régia com o ato de criação da vila não especificava onde deveria ser construída a coluna de pedra ou madeira simbolizando  a autonomia municipal.
Assim a sede da Vila do Ceará ficou de um lado para o outro, ora em Aquiraz, como queriam os membros da então poderosa Câmara Municipal, ora às margens do Pajeú, junto ao forte de N.S. da Assunção, como defendiam os militares. No dia 27 de junho de 1713, depois de muitas idas e vindas, o pelourinho foi finalmente, instalado em Aquiraz. 


Poucos dias depois, no entanto, a vila foi alvo de um violento ataque indígena, no qual morreram cerca de 200 habitantes. Do ataque dos Paiacus e Anassés, só escapou quem fugiu para Fortaleza. 
A ofensiva levou os próprios integrantes da Câmara, os chamados camareiros, a mudarem de ideia, e passarem a defender que a sede da Vila fosse Fortaleza.
Contrariado com a situação, o rei de Portugal, D. Manuel, em vez de simplesmente transferir a sede da vila, mandou criar outra, em Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, em 13 de abril de 1726. A data marca oficialmente o marco zero da história de Fortaleza.

Aquiraz, a primeira vila e primeira capital da Província

Aquiraz, a primeira vila do Ceará, ficou sendo a sede da Ouvidoria, como autoridade máxima de justiça, enquanto Fortaleza ganhou status de capital. 
Já a hegemonia econômica coube à Aracati, mais desenvolvida e de onde partiam produtos da produção local e por onde entravam mercadorias adquiridas no mercado externo.

Aracati foi o maior centro comercial da província

É dessa época a chamada civilização do couro e do gado, que se desenvolvia no interior da província. Ao lado de Aracati, as cidades mais desenvolvidas do período eram Icó, Sobral e Crato. 

fontes:
Revista Fortaleza, fasciculo 4 - abril de 2006
História do Ceará, de Airton de Farias

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Fortaleza no Palco

Carlos Câmara

É só procurar e, aos montes, vestígios da história de Fortaleza vão surgindo nas peças teatrais de Carlos Câmara, autor, diretor  e encenador. Teve reconhecido o seu talento ainda em vida, quando entre 1919 e 1939, arrastava as elites e remediados para lotar o teatro improvisado do Grêmio Dramático Familiar, no Calçamento de Messejana, atual Avenida Visconde do Rio Branco, nas imediações das Doroteias.
Iam para lá, em dias de encenação, senhoras e senhores, rir do cotidiano de uma cidade que não se achava provinciana. Talvez porque usassem chapéus importados de Paris, cheios de penachos e rococós que chegava a atrapalhar a visão dos que estavam mais atrás. Segundo os jornais da época, sessões tão concorridas que os espectadores prejudicados pediam que acrescentassem na crítica, um pedido para que maneirassem no tamanho dos adereços.

As indumentárias da época: chapéus, luvas, gravatas e bengalas, tudo conforme o figurino da belle epoque. Passeio Público, 1908 (álbum de vistas do Estado do Ceará)

Riam de si mesmos, pois achavam que a piada era com o vizinho. Talvez a pena de Carlos Câmara, ex-deputado, funcionário público e intelectual da elite fortalezense, estivesse  falando da arraia-miúda iletrada, de matutos do interior, de comerciantes emergentes ou do bando de retirantes que invadiam Fortaleza a cada período de seca.  Doce e divertida ilusão. Carlos Câmara reproduzia no palco, o dia a dia de uma Fortaleza inquieta e metida a grã-fina. Portuguesa de nascença torta, mas deslumbrada com o charme dos franceses e a petulância inglesa.  Estava em cartaz, na verdade, um retrato caricato de quem aqui viveu entre o começo do século XIX e o fim dos anos 1930.

Rua Major Facundo vista do Passeio Público. à direita o Hotel de France, início do século XX (Ah, Fortaleza!)

Na peça a Bailarina, obra de estreia do autor, há registros sobre a chegada devastadora da Gripe Espanhola. Chegou a bordo do vapor Ceará, em 1919 e aportou em Fortaleza vitimando muita gente, a exemplo do que já ocorria na Europa e na Ásia. Mas a peça de Carlos Câmara – pequena farsa grotesca musicada – pinçou a piada. Ele próprio, acometido da moléstia, percebeu e levou ao palco, o que havia de moleque em torno da influenza. O falar do fortalezense, por exemplo.

A peça "A Bailarina" marcou a estréia de Carlos Câmara  como dramaturgo (foto O Povo)

Como não acertavam o nome da doença, originária das Ilhas Baleares, o povão batizou a gripe de Bailarina. Pesquisando, há em forma de dramaturgia, rastros do medo de uma Fortaleza apavorada por uma epidemia que atingia gente de todas as classes sociais. Uma cidade em condições precárias de higiene e saneamento a assistir o enterro de centenas de pessoas.


Na peça o Casamento da Peraldiana, a protagonista,  uma viúva alegre e desbocada, nunca foi interpretada por uma mulher, nem nos tempos atuais. Mas naquela época a história era outra. Ser atriz não era virtude para moças de família e encarnar o papel de uma depravada, nem pensar. Fortaleza ainda não comportava tamanha ousadia e os textos de Carlos Câmara indicam a ocorrência desse comportamento social.  Em dez burletas o autor faz Fortaleza desfilar seus costumes, personagens e suas transformações.  O Casamento da Peraldiana (1919) Calu (1919) e os Piratas (1923) são os textos de Carlos Câmara que mais indiciam a vontade que tinha a capital de sair do atraso. Depois de mais de 20 anos vivendo nos Inhamuns, Peraldiana se assusta ao voltar à cidade grande e dar de cara com o frisson de um arremedo de modernidade. A personagem é a personificação do que era considerado atrasado culturalmente pelos intelectuais da hora. 

Cenários e costumes da época: Praia de Iracema, primeiras décadas do século XX (arquivo Nirez)

A dramaturgia de Carlos Câmara carrega vestígios de parte da história de Fortaleza, pedações de memória, retratos do cearense provinciano, que se estrebuchava para ser moderno através das novidades e invencionices da capital.

Revista Fortaleza, fascículo 12, junho de 2006
Diário do Nordeste
 Povo      

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A Economia dos Armazéns


O Comércio de Fortaleza se estabeleceu no centro. Armazéns, Alfândega e os prédios da receita estadual e a administração municipal foram erguidos próximos ao primeiro porto.  Com o desenvolvimento da indústria algodoeira, surgiram casas comerciais como a Fábrica Philomeno, nas avenidas Francisco Sá e Sargento Hermínio. 


Industrial Pedro Philomeno Gomes, um dos pioneiros da região, e a Fábrica São José marcaram o desenvolvimento da indústria do algodão no Ceará (foto Diário do Nordeste)

As ruas do centro adquiriam funções especializadas; determinada via concentrava o comércio de fios e linhas, outra, o comércio de peças para veículos automotores. Um modelo bastante evidente ainda hoje, para quem percorre ruas como a Pedro I e a Clarindo de Queiroz.
Desenvolvia-se também o comércio na Alberto Nepomuceno e Conde D’Eu. O Mercado São José coletava produtos do Interior e os armazéns da Rua Governador Sampaio formavam o polo especializado na movimentação portuária. A cidade crescia na perspectiva do Riacho Pajeú: Catedral, Palácio da Luz, Assembleia Provincial, o porto e o Parque da Liberdade  na saída da cidade.

Assembleia Provincial - década de 1930 (foto: O Nordeste)

O centro possuía territorialidades diferenciadas: na Praça do Ferreira acontecia a feira da elite, mais selecionada. Naquela porção do centro tinha-se a clara distinção entre lazer e trabalho.  O ócio era desfrutado no Passeio Público e os negócios eram feitos na Praça do Ferreira. A cidade se expandia, mas o centro ficou restrito ao que foi projetado por Adolfo Herbster na Planta Exacta do Ceará, de 1875. A feira popular ocorrida na Praça Carolina, junto ao Mercado de Ferro, na região onde hoje se encontra o Palácio do Comércio.

Praça Carolina, local da realização da feira popular. (arquivo Nirez)

A Praça do Ferreira exercia ainda uma função hoteleira, mas sem à atual perspectiva de  Fortaleza como cidade turística. Era a rota comercial que justificava a rede hoteleira. Hotéis como o  Savanah (inaugurado em 1964) recebiam os caixeiros viajantes responsáveis pelo abastecimento da cidade. Eles traziam artigos do Rio de Janeiro  e de Recife, que tornaram Fortaleza uma praça interessante, mas com uma sociedade de consumo limitado.

Hotel Savanah, na esquina da Rua Major Facundo com Travessa Pará, na Praça do Ferreira, foi inaugurado em 12 de abril de 1964, propriedade de Pedro Lazar. No térreo do edifício, funcionavam as Lojas Brasileiras - Lobrás, onde foi inaugurada a primeira escada rolante de Fortaleza (arquivo Nirez)

Até a década de 1940, a cidade dava as costas para o mar, os deslocamentos tinham a ver com visitas às famílias, idas à escola. Fortaleza tinha um formato estelar, com saídas para os eixos da Bezerra de Menezes,  Parangaba – através do Benfica; Estrada do Gado, pelo Montese; eixo Atapu, para Messejana e eixo Mucuripe, na região onde hoje fica o corredor comercial da avenida Monsenhor Tabosa.
Os recursos arrecadados com o crescimento do comércio em Fortaleza, foram utilizados para fazer melhoramentos na cidade, como a construção de chafarizes,  colocação de um novo sistema de iluminação pública e o calçamento de ruas.

Fonte: 
Revista Fortaleza, fascículo 3 – abril/2006.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A Esquina da Broadway e a Ferrugem

Eram tempos em que as mulheres ainda usavam saias, assim, plural, porque além da principal havia outra por baixo, a combinação, peça do vestuário feminino que caiu em desuso há muito. Mas por conta da saia, as mulheres vez por outra passavam  vexames. Qualquer descuido e lá o vento atirava a vestimenta para o alto, deixando-as no maior sufoco, enquanto lutavam em desespero para recobrir a beleza exposta.

A Esquina da Broadway em diferentes épocas: ainda com o Sobrado do Comendador Machado (demolido em 1927) no lugar do Excelsior Hotel e sem o edifício Granito 

Os desocupados de sempre, frequentadores contumazes da Praça do Ferreira, logo perceberam que na confluência das Ruas Major Facundo com Guilherme Rocha, o vento canalizava com força, aumentando a frequência  do desnudamento das recatadas senhoritas e madames. Nasceu então a Esquina da Broadway, nome da loja do Bardawil que funcionava ali. 

A mesma esquina - cruzamento das Ruas Major Facundo com a Guilherme Rocha já com o Excelsior Hotel (inaugurado em 31 de dezembro de 1931)

Era o ponto estratégico dos desocupados. Diziam que algumas jovens faziam opção pelo trajeto de modo a expor, como numa vitrine, suas formas. Mas a maioria das mulheres evitava passar por ali e, se o faziam, tomavam as devidas precauções.  Mas da mesma maneira que a esquina da Broadway – ou Esquina do Pecado, como também era conhecida – e imediações, como a calçada do futuro Cine São Luiz, cujos tapumes ensejavam também o aumento da ventania, valiam como uma passarela para o desfile das beldades, por lá passava constantemente uma figura muito popular na Fortaleza daqueles dias: a Ferrugem.
Os que viveram naqueles tempos recordam da Ferrugem, uma pobre mulher com forte perturbação mental, que cortava o cabelo a quase zero, o que aliado a seus traços fisionômicos um tanto másculos, davam-lhe uma aparência masculina.

A Esquina da Broadway com o Edifício Granito - inaugurado em 1934 - e o Abrigo Central, inaugurado em 1949. 

Na década de 60, sem o Abrigo Central, na Praça do Ferreira reformada pelo prefeito José Walter, e uma profusão de prédios nos arredores

Logo a molecagem percebeu que a mulher perdia o pouco de razão de que dispunha quando via  sua feminilidade ser posta em dúvida. E quando ela passava, os gritos da canalha podiam ser ouvidos de longe: é homem! É homem! A Ferrugem então desatinava por completo: em plena esquina do pecado, ou na calçada do São Luiz, caprichava em provar seu verdadeiro sexo.  Se as outras mulheres naquele local, se esforçavam para impedir a ação do vento, Ferrugem, ao contrário, não tinha o menor problema em exibir a magreza de seu corpo maltratado. Estava aberta a função, o espetáculo característico daquele local de Fortaleza.


fotos do Arquivo Nirez
Extraído do livro
Sessão das Quatro, cenas e atores de um tempo mais feliz
De Blanchard Girão        

quarta-feira, 20 de junho de 2012

A Primeira Igreja Matriz de Fortaleza



Desde os tempos coloniais, as vilas brasileiras tinham em suas fundações elementos que caracterizariam a presença administrativa e o potencial de desenvolvimento da região. O pelourinho era um desses elementos, pois justamente simbolizava a presença de uma justiça pronta para punir as ações que fossem ao encontro de interesses metropolitanos e senhoriais.  Outra edificação que era destacada nas vilas, era a da igreja Matriz, pois simbolizava a presença da igreja católica, sempre ávida em aumentar o número de adeptos no Novo Mundo, e controlar corpos e almas dos fiéis.

Igreja de N.S. da Conceição em Jaguaribe-Mirim, em desenho de José dos Reis Carvalho, membro da Comissão Científica que visitou o Ceará entre 1859 e 1861. 

E Fortaleza, mesmo depois do período colonial e até a primeira metade do século XIX, travou uma batalha de décadas para ter uma construção que servisse de matriz, e marcasse seu papel religioso como capital.
Numa sociedade inspirada por profundo sentimento de religiosidade, o estado de suas igrejas  poderia muitas vezes revelar a precariedade das edificações em geral, notadamente numa vila pobre como Fortaleza. O bispo de Pernambuco D. João Marques Perdigão, em visita ao Ceará em 1839, no dia 15 de agosto, foi celebrar sua primeira missa em Fortaleza.
Essa missa foi revestida de especial aparato, dado que era oficiada pelo bispo e no preciso dia da padroeira  da capital: Nossa Senhora de Assunção. O lugar da celebração deveria ser na Matriz. O culto contava com um bom número de fiéis, entre eles,  nomes de destaque na administração pública e nos negócios da cidade. A maioria em pé e alguns poucos sentados, numa disposição que era mediada pelas diferenças sociais, diversos fiéis assistiam à missa proferida em latim.

Praça General Tibúrcio com a Igreja do Rosário ao fundo (arquivo Nirez)

Uma cerimônia religiosa desse porte só poderia transcorrer na Matriz; mas não foi o caso. O desconforto de realizar a missa numa igreja que não a Matriz transparecia evidente no discurso do bispo. E o motivo era óbvio: em 1839 a capital do Ceará ainda não possuía uma Igreja Matriz, que vinha sendo morosamente construída.  O local da celebração era a Igreja do Rosário, uma pequena capela que exercia provisoriamente o papel de Matriz.
Na tarde do dia 17 do mesmo mês, D. Perdigão foi visitar as obras da que seria a futura matriz de Fortaleza. Saiu decepcionado; as observações do prelado sobre o futuro templo não foram nada estimulantes:  “apesar de grande, contém alguns defeitos essenciais, como são arco cruzeiro excessivamente alto e apertado, a capela-mor muito estreita e o corpo da igreja muito apertado relativamente à altura”.
Mesmo na provisória matriz, a Igreja do Rosário, Perdigão abriu a visitação numa procissão debaixo do pálio, acompanhado do clero, das irmandades do Santíssimo Sacramento e de N. S. do Rosário, com uma plateia de aproximadamente 1000 pessoas, incluindo o presidente da Província.

A antiga Igreja da Sé em 1914 (arquivo Nirez)

Em 1840, mesmo após a visita de D. Perdigão, as dificuldades para a construção da matriz de Fortaleza não haviam sido superadas. Inquieto, depois de tantos anos de tentativa, o então presidente da província Francisco de Sousa Martins continuava buscando soluções. No ano seguinte, a obra recebia um novo impulso. O Imperador determinou a criação de loterias para serem  arrecadados 120:000$000 durante quatro anos. Nomeava ainda, três nomes para a comissão da construção da igreja: José Joaquim da Silva Braga, Joaquim Soares Silva e João Franklin de lima.
Enquanto a igreja matriz não era construída, a Igreja do Rosário – a única da capital – era caracterizada como estreita. E nesse estreito recinto, sepultavam-se vários cadáveres,  de modo que os fiéis que costumavam lotar a igreja, acabavam convivendo com um ambiente insalubre e altamente contaminado.

Igreja do Rosário atualmente (foto Fátima Garcia)

A incapacidade e a insalubridade da convivência entre mortos e vivos no Rosário justificavam os planos provinciais para erguer na capital do Ceará o cemitério do Croatá e a Igreja Matriz. Mas o tempo passava e a matriz não ficava pronta. Em 1843 o presidente da província reclamava que á igreja ainda nem havia sido concluída e suas paredes já sofriam a ação devastadora do tempo.  Em 1849, a obra foi mais uma vez interrompida, por motivo de falta de recursos, pois a receita havia se esgotado. No dia 21 de maio daquele ano, o Ministério do Império prometera a extração da última loteria destinada a financiar a obra. A Matriz só foi concluída e inaugurada no ano de 1854, com o nome de Igreja de São José.

dia da celebração da última missa na antiga Igreja da Sé. No dia seguinte, começou a demolição (foto do livro Geografia Estética de Fortaleza)


No dia 11 de setembro de 1938 a antiga Sé  foi demolida. As razões da demolição eram convincentes: uma forte rachadura nas bases da construção pelo lado do mar, levou os engenheiros da década de 30 a emitirem o alerta de perigo.  D. Manuel da Silva Gomes, então Arcebispo de Fortaleza, autorizou a demolição do templo.

Extraído do livro
Entre o Futuro e o Passado – aspectos urbanos de Fortaleza (1799-1850)
De Antônio Otaviano Vieira Jr. 

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Fortaleza e o Passado


Praça do Ferreira, com o prédio do Majestic Palace e a residência de Luiz Severiano Ribeiro (Arquivo Nirez)

Alguns poucos dizem sempre e poucos prestam atenção: o fortalezense, de modo geral, não dá a mínima importância a essa coisa que, noutras partes do Brasil, é quando não preocupação, pelo menos querência das maiorias, ou seja, apego às boas tradições.  Não fora o trabalho beneditino a que se entregaram no passado, homens como Guilherme Studart, João Nogueira,  Paulino Nogueira e João Brígido, entre outros mais, quanta coisa interessante, por muitos aspectos, inclusive o pitoresco, não estaria totalmente ignorada, mesmo para os raros que, hoje em dia integrantes das chamadas novas gerações, tivessem desejo de adentrar-se em nosso passado urbano.
O que aqui vai dito é consequência das preocupações de um homem que, ainda menino, apercebeu-se desolado, de que a nossa Fortaleza de Nova Bragança, quarenta anos atrás, começou a ser impiedosamente sacrificada no pouco, mas de qualquer maneira significativo, que resguardava, como lembrança de seus primeiros anos de vida, no complexo de evolução das cidades nordestinas.


Lagoa do Garrote (arquivo Nirez)
A Lagoa do Garrote fica dentro do Parque da Liberdade (Cidade da Criança), no centro de Fortaleza 

Estamos no ano de 1973, aquele que assinala o sesquicentenário da elevação do arruado de após Martim Soares Moreno aos foros de vila e cidade. E achamos que tudo quanto houver de assunto relativo aos fatos da Cidade Amada deverá vir à tona, para que as novas gerações não sejam levadas a pensar que o que hoje ai está seja obra miracular apenas da modernidade e, sim, conscientizarem-se de que tudo é resultado do trabalho, quase em penúria, dos primeiros que aqui se plantaram, no século XVIII, entre as vertentes que eram duas, em que se bifurcaram, naqueles idos, às águas rumorejantes do ribeiro de Marajaitiba, hoje o quase desaparecido Pajeú;  a vertente leste, aquém da margem esquerda do braço do riacho ainda visível nalguns trechos; a outra, mais para Oeste, que ia ter ao antigo areal da chamada Lagoinha, mais para as bandas de Jacarecanga.


Riacho Pajeú, canalizado, poluído e degradado

Achamos que, já a esta hora, um programa de destinação escolar deveria estar sendo organizado por quem de comprovada competência a saber no caso, por exemplo, Manuel Albano Amora e Mozart Soriano Aderaldo, do Instituto do Ceará, com o fim específico de levar à juventude das nossas escolas primárias e de ensino médio, um pouco daquilo que se constitui a história das nossas tradições e de nosso desenvolvimento.
É necessário levar ao futuro cidadão de Fortaleza nomes como os de Barba Alardo, Governador Sampaio, José Alves Feitosa, Silva Paulet e tantos outros, sem esquecer jamais o do Boticário Ferreira, por conta de cujo esforço e dedicação correram os primeiros impulsos de uma cidade que João Brígido, dela tão amante, já dizia em fins do século passado, teria uma destinação das mais altas e nobres na vida social, política e econômica do nosso país.


Praça dos Mártires (Passeio Público), antigos Largo da Fortaleza, Largo da Pólvora, Largo do Paiol, Largo do Hospital da Caridade e Praça da Misericórdia 

É preciso levar estudantes, em obediência a um programa bem coordenado, a verem o Quartel-general da 10ª Região, antigo aquartelamento das chamadas tropas de linhas lusas, que aqui vieram dar apoio aos desbravadores, a partir de Pero Coelho e Soares Moreno.  Levá-los ao hoje tão sacrificado Passeio Público, antigo Largo da Pólvora, testemunha de longo tempo da vida da cidade, desde quando esta não era mais que um modesto burgo de meia dúzia de casas, nas cercanias da Praça da Sé. 


Palácio Episcopal - na administração do prefeito Vicente Fialho, o palácio foi desapropriado e é hoje o Paço Municipal (foto Diário do Nordeste) 

Mostrar-lhes a Catedral em construção e chamar-lhes a atenção para o imperdoável crime que foi a demolição da igreja matriz, pobre mais cheia da história da Fortaleza amada. Leva-los em grupos, aos terrenos onde está o prédio do antigo Palácio Episcopal, hoje praticamente abandonado e objeto de transação comercial, e mostrar-lhes o pouco que ainda resta do verde de antigamente no centro da cidade, árvores algumas delas testemunhas da nossa história, vicejando ainda às margens do cada vez mais sacrificado Pajeú. 


Conjunto arquitetônico Igreja do Pequeno Grande e Colégio da imaculada Conceição (Arquivo Nirez)

Mostrar-lhes o centenário Colégio da Imaculada Conceição, a Praça da Escola Normal, e dizer-lhes que, há um século a bem dizer, ali terminava o perímetro urbano e o que existia mais para o leste e norte eram raras construções esparsas, no areal sem fim. 
Mostrar-lhes as águas sempre poluídas , do lago existente na Cidade da criança e dizer-lhes que aquilo, no tempo da cidade menina, era a lagoa do garrote e que aquela área centro-sul da cidade amada, segundo opinião de João Brígido e outros, foi terreno que o vulgo denominava “marinhas”, ou porque até ali faziam suas incursões, periodicamente, as águas do Atlântico. Essas mesmas águas, que com o passar dos anos, se foram afastando sempre e sempre, a ponto de deixarem hoje, como terra firme, a baixada que vai do platô que é a Avenida Monsenhor Tabosa até as ruas e avenidas mais próximas do mar dos nossos dias. Num tempo em que os palhabotes e as sumacas, vindos dos portos do sul e do norte, encontravam acostamento tranquilo em frente à Igreja da Prainha e as ondas do mar batiam na muralha do forte de Nossa Senhora da Assunção.


Cruzamento das Avenidas Historiador Raimundo Girão (antiga Avenida Aquidaban) e Monsenhor Tabosa, (antiga Rua do Seminário) no encontro das duas fica a Avenida da Abolição (Arquivo Nirez)  

E outras coisas assim precisam ser ditas, reavivadas, quando não com amostragem direta, ao menos através de memórias, já que muito foi destruído pela insânia dos que, dominados pela mística do progresso, mandaram sempre às favas, por desinteresse ou falta de sensibilidade, o pouco que possuímos merecedor de preservação carinhosa.
Quem viajou por esses velhos Brasis, quem morou ou apenas demorou em cidades como o velho Rio de Janeiro, Salvador, Belém, São Luis, Recife, há de ter notado, sem grande esforço, a existência de uma constante afetiva, na paisagem de cada uma delas: o doce perfume da antiguidade, não já apenas em prédios, logradouros e mesmo ruas, que são conservadas como retrato de épocas já vividas, mas também e, sobretudo nas denominações de certas ruas, praças e bairros. 


A Rua do Rosário manteve o mesmo nome desde a época da colônia, em fins do século XVIII. É a rua mais antiga de Fortaleza

É o tributo das novas gerações  àquelas que já se foram. A guarda e o zelo ao passado, levando os de hoje a derramarem o olhar sobre o que se foi, mas permanece de maneira inefável, por força de nomes que estabelecem pontes entre umas  e outras épocas.
O belenense dos nossos dias, inapelavelmente, fala em Igarapé das Almas quando se refere a uma determinada área urbanizada do centro da cidade. Na Bahia, então, a coisa é de enternecer: Água de Meninos, Rua do Pelourinho, Itaparica e tanta coisa gostosa, e tanta coisa regional e preciosa.


O bairro conhecido como Calçamento de Messejana, Estrada de Messejana ou Estação recebeu o nome de Joaquim Távora, por decisão do prefeito César Cals, em 1930 (Arquivo Nirez)

Aqui na Fortaleza, meu Deus, como tudo é artificioso e destituído de raízes! Onde estão os nomes e expressões antigos de bairros pobres, hoje ricos?  Quem se lembra da Tijubana, ali para as bandas do Cemitério de São João Batista? Quem ainda fala nos Guajirus, na zona das atuais ruas Gonçalves Ledo e João Cordeiro, parte que demanda o chamado sertão? E o Mata Galinha? E o Alto da Balança? E o Calçamento de Messejana? E a Itaoca e a Precabura? E o Alagadiço e o Seminário? E a Praça dos Coelhos?


Praça José Bonifácio (Praça do Quartel da Polícia) é a antiga Praça dos Coelhos (Arquivo Nirez)

Fortaleza é por excelência, a cidade dos nomes de ruas homenageando a Deus e ao mundo. Uma cidade que não dá bolas ao passado gostoso dos que vieram antes de nós.
Há ruas, em nossa cidade, com nomes de gente que não resiste à mais superficial indagação histórica, dados numa gratuidade que encontra razão de ser, quase sempre, na bajulação, no parentesco, na demagogia, no compadrismo. O que é uma pena, e às vezes, um crime. 


Praça da Sé, antiga Praça do Conselho, Largo da Matriz, Praça Pedro II, Praça Caio Prado, Praça Dr. Pedro Borges. 
A Praça da Sé parece ser a primeira praça de Fortaleza, em 1726 já aparece o espaço da praça no 1° mapa de Fortaleza, atribuído a Manuel Francês. 
A antiga Sé - Igreja de São José  -  foi demolida em 1938  (Arquivo Nirez)

Onde era a Praça do Conselho? É uma das primeiras testemunhas do nascimento da cidade, hoje Pedro II.  Onde era a Rua das Flores, que é também dos tempos da cidade criança? Perdeu seu nome poético há muito tempo: chama-se Castro e Silva, E como há na vida evolutiva da cidade, vários Castro e Silva, um inclusive dos tempos do Governador Sampaio, não se sabe, assim de improviso, a qual deles diz respeito a denominação. E Rua das Flores era denominação que vinha mesmo a calhar, sabido que dantes como ainda hoje, ligava a velha Sé ao cemitério.


Praça Carolina, no início do século XX, depois mudada para José de Alencar (Arquivo Nirez)
A antiga praça, foi subdividida, numa parte foi construído o prédio dos Correios e Telégrafos; noutra uma agência do Banco do Brasil;  e noutra o Palácio do Comércio. Sobraram alguns metros entre a primeira e a segunda construção, para uma espécie de respiradouro: é a Praça Waldemar Falcão. 

Tempo houve em que, no centro urbano, encontrava-se a Praça Carolina, depois mudada  em José de Alencar. Onde a Rua Direita dos Mercadores? Era a que é hoje por uns chamada Sena Madureira e por outros, Conde D’Eu. E o Beco dos Pocinhos, tão das lembranças dos cinquentões, ligando a Praça do Ferreira à da Escola Normal, sempre enfeitado pelo branco e vermelho e o branco e azul das meninas do imaculada e do velho estabelecimento estadual de ensino, ao tempo em que, tanto pobres como ricos, desde que estudantes, desconheciam os luxos  do transporte em automóvel.


Rua Formosa (atual Barão do Rio Branco) em foto de 1910 (Arquivo Nirez)

E a Rua Amélia? E a Rua da Palma? E a Rua do Fogo? E a da Boa Vista, a da Alegria, a Rua Formosa? E a da Trindade, a do Lago? E a Travessa das Trincheiras, a cuja denominação uns dão foros de belicosidade de tempos passados, enquanto outros aludem a morada, ali, de umas senhoras que se dedicavam a preparar jantares de leitões e aves, que já enviavam trinchados a quem os encomendava?


Este já foi o cruzamento da Rua da Palma com a Rua das Trincheiras

Está bem claro que ninguém iria desejar, de uma hora para outra, a volta, em termos absolutos, de todas as velhas denominações. Reconhecemos que algumas nem mesmo se coadunariam com a nossa época, nos costumes e preconceitos de modernidade. Mas o que a municipalidade poderia iniciar, com cuidado para lograr permanência através das administrações, era um plano de confecção e afixação de placas identificadoras, contendo a denominação atual, precedente ou simplesmente graciosa e, abaixo, com o mesmo destaque, a denominação da História e da Saudade.


fotos: Fátima Garcia

Extraído do livro
Crônicas da Fortaleza e do siará grande, de Otacílio Colares
livros consultados
Fortaleza Antiga praças, ruas e esquinas, de Marciano Lopes
Fortaleza Velha, de João Nogueira