Carlos Câmara
É só procurar e, aos montes, vestígios da história de
Fortaleza vão surgindo nas peças teatrais de Carlos Câmara, autor, diretor e encenador. Teve reconhecido o seu talento
ainda em vida, quando entre 1919 e 1939, arrastava as elites e remediados para
lotar o teatro improvisado do Grêmio Dramático Familiar, no Calçamento de Messejana,
atual Avenida Visconde do Rio Branco, nas imediações das Doroteias.
Iam para lá, em dias de encenação, senhoras e senhores, rir
do cotidiano de uma cidade que não se achava provinciana. Talvez porque usassem
chapéus importados de Paris, cheios de penachos e rococós que chegava a
atrapalhar a visão dos que estavam mais atrás. Segundo os jornais da época, sessões
tão concorridas que os espectadores prejudicados pediam que acrescentassem na
crítica, um pedido para que maneirassem no tamanho dos adereços.
As indumentárias da época: chapéus, luvas, gravatas e bengalas, tudo conforme o figurino da belle epoque. Passeio Público, 1908 (álbum de vistas do Estado do Ceará)
Riam de si mesmos, pois achavam que a piada era com o vizinho.
Talvez a pena de Carlos Câmara, ex-deputado, funcionário público e intelectual da
elite fortalezense, estivesse falando da
arraia-miúda iletrada, de matutos do interior, de comerciantes emergentes ou do
bando de retirantes que invadiam Fortaleza a cada período de seca. Doce e divertida ilusão. Carlos Câmara
reproduzia no palco, o dia a dia de uma Fortaleza inquieta e metida a grã-fina.
Portuguesa de nascença torta, mas deslumbrada com o charme dos franceses e a
petulância inglesa. Estava em cartaz, na
verdade, um retrato caricato de quem aqui viveu entre o começo do século XIX e
o fim dos anos 1930.
Rua Major Facundo vista do Passeio Público. à direita o Hotel de France, início do século XX (Ah, Fortaleza!)
Na peça a Bailarina, obra de estreia do autor, há registros
sobre a chegada devastadora da Gripe Espanhola. Chegou a bordo do vapor Ceará,
em 1919 e aportou em Fortaleza vitimando muita gente, a exemplo do que já ocorria
na Europa e na Ásia. Mas a peça de Carlos Câmara – pequena farsa grotesca
musicada – pinçou a piada. Ele próprio, acometido da moléstia, percebeu e levou
ao palco, o que havia de moleque em torno da influenza. O falar do
fortalezense, por exemplo.
A peça "A Bailarina" marcou a estréia de Carlos Câmara como dramaturgo (foto O Povo)
Como não acertavam o nome da doença, originária das Ilhas
Baleares, o povão batizou a gripe de Bailarina. Pesquisando, há em forma de
dramaturgia, rastros do medo de uma Fortaleza apavorada por uma epidemia que atingia
gente de todas as classes sociais. Uma cidade em condições precárias de higiene
e saneamento a assistir o enterro de centenas de pessoas.
Na peça o Casamento da Peraldiana, a protagonista, uma viúva
alegre e desbocada, nunca foi interpretada por uma mulher, nem nos tempos atuais.
Mas naquela época a história era outra. Ser atriz não era virtude para moças de
família e encarnar o papel de uma depravada, nem pensar. Fortaleza ainda não
comportava tamanha ousadia e os textos de Carlos Câmara indicam a ocorrência
desse comportamento social. Em dez
burletas o autor faz Fortaleza desfilar seus costumes, personagens e suas
transformações. O Casamento da
Peraldiana (1919) Calu (1919) e os Piratas (1923) são os textos de Carlos
Câmara que mais indiciam a vontade que tinha a capital de sair do atraso.
Depois de mais de 20 anos vivendo nos Inhamuns, Peraldiana se assusta ao voltar
à cidade grande e dar de cara com o frisson de um arremedo de modernidade. A
personagem é a personificação do que era considerado atrasado culturalmente
pelos intelectuais da hora.
Cenários e costumes da época: Praia de Iracema, primeiras décadas do século XX (arquivo Nirez)
A dramaturgia de Carlos Câmara carrega vestígios de
parte da história de Fortaleza, pedações de memória, retratos do cearense
provinciano, que se estrebuchava para ser moderno através das novidades e
invencionices da capital.
Revista Fortaleza, fascículo 12, junho de 2006
Diário do Nordeste
O Povo
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