segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Quando o Mar era o Açude do Boris

Porto do Mucuripe ainda em construção, década de 1940 (foto Ah, Fortaleza!) 

O que teria levado Alphonse Boris a buscar o Ceará e a se integrar ao cotidiano da capital com tanto ânimo e determinação?  Quando desembarcou em Fortaleza, no dia 6 de agosto de 1865, do vapor Paraná, a cidade não tinha jeito de capital.  O francês deve ter passado maus momentos ao desembarcar  do navio ancorado ao largo, e embarcar no bote que o traria até a praia. Acertara um ponto perdido do mapa, entre a opulência de Pernambuco e o Maranhão, que já fora França Equatorial.

A ligação do Ceará com a Europa começara desde a remessa, em 1809, de produtos da terra, e amostras de algodão para Londres. No ano seguinte, o irlandês William Wara fundaria a primeira casa de comércio exterior.

Com as ideias fora do lugar, em plena vigência da escravatura, a firma Albano & Irmão  declarava aos fregueses do interior da província que não se encarregaria da venda nem do embarque de escravos.  Sinal dos tempos: o Hotel de França precisava de um ajudante de cozinha e preferia que fosse livre a escravo.

Hotel de France (foto Ah, Fortaleza!)

Theodore Boris chegou dois anos depois, desembarcando no Recife e refazendo a travessia das boiadas até o Icó. Da ribeira do Salgado até Fortaleza, enfrentou uma enfadonha viagem em lombo de burro. O pretexto era conhecer melhor a terra onde se fixariam e atuariam , em 1869, com a firma Theodore, Boris & Frères.

Em 1867, Fortaleza inaugurava sua biblioteca pública e o arquivo da província; Dom Luiz Antônio dos Santos, primeiro bispo do Ceará, investido em 1861 viajava para Roma, e o Seminário da Prainha formava as elites desde 1864. A água encanada jorrava das torneiras de cobre e inaugurava-se a iluminação parcial da cidade e de alguns edifícios, como o Clube Cearense.  A Associação Comercial tinha sido fundada no final deste ano.

Palacete Ceará, que abrigou, em seus andares superiores, o Clube Iracema (arquivo Nirez) 
 
Nunca ninguém buscou tantas oportunidades e soube criar tantos negócios como os Boris, apontando em uma globalização avant la lettre (antes de o termo existir), visto que eles haviam estabelecido a matriz em Paris, a capital do século XIX.

Naquele instante o Ceará vivia seu maior período sem estiagens, os quarenta anos de bonança (1846/1876), que antecipariam a seca de 1877/79, quando um quarto da população da província sucumbiria à fome e às epidemias.  A primeira temporada cearense dos Boris foi curta. A guerra franco-prussiana entre 1870/1871 os levou de volta para a Europa. 

Theodore retornaria em 1872, em companhia de Achille e Adrien; Isaie só chegaria em 1878. Em pouco tempo faziam parte da vida da cidade, preocupados que estavam em impulsionar a nossa economia.
O Cemitério São João Batista, implantado em 1866, obrigaria a sepultar os judeus fora de seus muros, assim foram enterrados Aron Braun, Josephine Levy, Lazare Gradvhol, e Adrien Boris.  Anos mais tarde, a expansão do campo santo trouxe os excluídos para o lado de dentro dos seus muros.

A partir de 1875, o aformoseamento mudaria as feições da cidade, com a construção dos boulevards, dos jardins, de alguns prédios públicos. Fortaleza se preparava para ser capital. Isaie fez parte da comissão que negociou a participação cearense na Feira de Chicago em 1893, com direito a catálogo bilíngue, nossa primeira peça de propaganda institucional.

Os Boris foram importadores e exportadores, representaram o Banco do Brasil, operaram com seguros, trabalharam com algodão, e traçaram planos de construção de ferrovias, das serras para o sertão , como meio de escoar a produção de frutas que pretendiam vender para a Europa.

Casa Boris (foto de Mauricio Cals)
Poderosos   na navegação e nos afretamentos, se fixaram no imaginário popular , como os donos do mar, esse açude sem fim. Nunca desanimaram e mesmo nos instantes mais difíceis continuavam com sua Casa, os mais velhos passando o comando para os mais novos.

Beato José Lourenço

Chegaram a tal grau de integração cultural que conheceram Padre Cícero,  acolheram o beato José Lourenço na fazenda Serra Verde em Caririaçu (depois do massacre de 1936), e receberam na mesma fazenda , a visita de Patativa do Assaré, em 1956, que os presenteou com versos improvisados , por ocasião do aniversário de Dona Janine:

Eu vivo a pensar de cá
no senhor Bloc-Boris,
Sebastião e Assis, 
e demais amigos de lá, 
tudo em minha vida está,
do velho, o moço, a criança, 
da terra cor de esperança, 
doce passado relembro,
dezenove de setembro, 
vive em minha lembrança.

O mar não é mais o açude do Boris, mas ficaram as memórias e os feitos dos empreendedores franceses nas terras de Iracema, que mudaram o sotaque, escreveram e protagonizaram uma parte da história do Estado e principalmente, de Fortaleza.

Extraído do artigo
Quando o Mar era o Açude do Boris, do professor Gilmar de Carvalho. 

sábado, 29 de outubro de 2011

A Cacimba da Praça do Ferreira



Até meados do século XIX, a Praça do Ferreira, que já foi Rua do Cotovelo, Feira Nova, Largo das Trincheiras, Praça Pedro II, Praça Municipal até ganhar o nome atual,  era só um areal,  com um cacimbão no centro, rodeado de mangueiras, oitizeiros, algumas mongubeiras, pés de castanhola. Nos cantos do terreno, marcos de pedra para amarrar jumentos dos cargueiros ambulantes que vinham do interior.

Jardim 7 de Setembro na Praça do Ferreira. (acervo Marciano Lopes)

Quando ainda não havia iluminação de lampiões, quando não havia lua e a escuridão era total, os componentes do  Grupo Taliense de Teatro Amador, e outros rapazes que moravam nos arredores, saíam em grupo, para tomar banho nus no cacimbão da praça.

Em 1902, com a reforma promovida pelo Intendente Guilherme Rocha, a cacimba foi gradeada e colocado um catavento e uma grande caixa d’água pintada de roxo.

A Praça do Ferreira no início do século XX, com os frades de pedra e a caixa d'água (acervo Marciano Lopes)

A caixa d'água da Praça do Ferreira - construída pela empresa Hopkins, Causer & Hopkins - encontra-se atualmente na Cidade da Criança.

Durante a reforma de 1920, na gestão do prefeito Godofredo Maciel, que modificou quase todo o logradouro com a retirada dos quiosques dos cafés (Java, do Comércio, Iracema e Elegante) e a instalação do coreto, a caixa d’água foi retirada e a cacimba acabou soterrada.  

Por ocasião da última reforma, em 1991, quando era demolida a galeria de arte subterrânea foram encontradas as antigas fundações da primeira coluna da hora e o esquecido cacimbão do século XIX.



A descoberta influenciou numa adaptação ao desenho da reforma e a base da coluna que seria circundada pela fonte sofreu um corte onde hoje podem ver-se as grandes pedras que formam o corpo daquele poço antigo. 


Ao lado da velha cacimba, a cidade moderna prestou homenagem ao boticário Ferreira colocando ali uma placa com a efígie do político e uma frase de agradecimento ao idealizador da praça.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A Vida Difícil das Meninas das Pensões Alegres

Prédio que abrigava a Pensão da D. Amélia Campos, na Praça do Ferreira

Nas chamadas pensões alegres viviam as ditas mulheres de vida-fácil. Mas nada era fácil para, pois a vida daquelas mulheres era até bastante dura, a começar pela expulsão da casa, no interior, pelo pai moralista, que em nenhuma hipótese haveria de permitir que a moça continuasse morando com a família, depois de ter sido “desonrada”.

Matutas, ingênuas, a única saída era vir para a capital, meta de todos os desesperados, muito embora não contassem aqui, com parentes ou aderentes  que as acolhessem. As mais desprotegidas da beleza, arranjavam trabalho em casas de famílias como domésticas, naquela época (décadas de 40/50), uma profissão estável, onde as domésticas ficavam com a mesma família por anos a fio. 

As mais graciosas, de rostos e corpos bonitos, acabavam, invariavelmente, nos cabarés da cidade, quase sempre escravizadas pelas exigentes madames, que se vingavam do próprio passado, submetendo às suas pupilas, o mesmo tratamento que elas próprias receberam no início da carreira. As novatas, encantadas pelas luzes da nova vida, aceitavam sem reclamar.
O Sobrado do Barão da Ibiapaba, na esquina das ruas Major Facundo e Senador Alencar, onde, nos altos, funcionou durante  muitos anos, a famosa Pensão Ubirajara (Foto: Marciano Lopes)

As madames começavam dando um banho-de-loja nas iniciantes, comprando-lhes vestidos de seda, de organdi e até de veludo, muitas pedras e muitas contas de brilho. Nas Lojas de Variedades, adquiriam os batons, ruges, pós-de-arroz, lápis de sobrancelhas, esmaltes e outros artigos de higiene e maquiagem.

Na Cruzeiro, eram adquiridas roupas intimas (calcinhas, sutiãs, anáguas e combinações Valisere) Luizinho Mourão assessorava na escolha das peças, opinava sobre as peças, recomendava cores, fazia questão de passar o Jersey nos braços da futura usuária, para que sentisse a maciez do tecido.

No Bazar das Novidades, a madame escolhia as bijuterias; joias verdadeiras, só eram adquiridas mais adiante, quando a menina já estivesse com o faturamento garantido, ou quando algum cliente mais abonado resolvesse presenteá-la.  Enquanto isso, a madame financiava todos os gastos, claro que com os preços aumentados várias vezes.

Outra providência indispensável era levar a candidata para se apresentar na Chefatura de Polícia, onde era fichada no Departamento de Diversões e Costumes da Secretaria de Polícia, para autorizar sua permanência no local, ao mesmo tempo em que servia para investigação da vida pregressa, anotações de antecedentes, proteção e segurança pessoal.
Em caso de descumprimento das obrigações assumidas, a Licença de Funcionamento do lupanar era cassada por descumprimento às normas legais. 


Vista da Rua Formosa (atual Barão do Rio Branco). Em toda sua extensão um grande número de sobrados, palacetes e solares. Boa parte deles, abrigaria as pensões e lupanares, depois que os moradores abandonaram o centro. 

A novata só ia para o salão depois de alguns dias, pois tinha de ser amaciada, enquanto as contas se acumulavam.  Além dos apetrechos comprados nas lojas e magazines, a diária cobrada a preço exorbitante engrossava a dívida. A essa altura a novata já estava refém da madame, e caso demonstrasse arrependimento de ter entrado na vida, não poderia mais sair, pois a madame a ameaçava com prisão e com a presença constante de rufiões e gigolôs, sempre à disposição das marafonas, que jamais lhes negavam ajuda.

As pensões funcionavam nas principais ruas do centro, onde aliás funcionava tudo naqueles tempos. Ocupavam os pisos superiores dos velhos casarões do início do século, e em alguns casos, também o térreo, como acontecia com a Pensão Monte Carlo, vizinha ao Palácio Guarany (Clube dos Diários) e o Bar da Alegria, próximo à Tipografia Minerva. 

Ao lado do Palacete Guarany, ficava o solar do Barão de Studart, com uma pequena mansarda. A partir da década de 1940, ali funcionou a Pensão Monte Carlo. Demolido o casarão, hoje existe um estacionamento no local. (arquivo Marciano Lopes) 

Os nomes dos cabarés eram bem sofisticados: Império, Hollywood, Marajá, City, Tabariz, Cristalina. Algumas ficaram famosas ostentando apenas o nome de seus proprietários, como era o caso de Zé Tatá, que possuía duas casas, uma na esquina da Rua Barão do Rio Branco com Senador Alencar e outra, atrás dos Correios e Telégrafos, na Rua Coronel Bezerril. 

As outras pensões que ficaram conhecidas apenas pelos nomes de suas donas eram a Fanny, na Rua Dragão do Mar, a Graça, na Rua Conde d’Eu, Amélia Campos, na Rua Pedro Borges defronte a Padaria Lisbonense, Julinha Brasil, na Rua Barão do Rio Branco, Júlia Paraibana na Rua Conde d’Eu, Zeca, nos altos do café Paraense, na Rua Coronel Bezerril, Naninha, na Rua Castro e Silva, num velho sobrado onde hoje está o San Pedro Hotel.

A Rua Barão do Rio Branco, no trecho entre as Travessas São Paulo e Castro Silva, era a mais pródiga em pensões, situando pelo menos, sete delas; na Rua Major Facundo ficava a Ubirajara, que ocupava o imenso sobrado do Barão da Ibiapaba, a Marajá, no palacete que servira de residência ao médico José Lourenço e a Estrela, entre a Casa Villar e a Casa Conrado Cabral. 

Sobrado do Dr. José Lourenço, cujos salões conheceram as vibrantes festas promovidas pela Pensão Marajá.   

Na mesma rua, já na década de 1950, surge a Boite Fascinação, bem instalada, sofisticada e com mulheres de luxo. A nova casa mexeu com a cidade, incomodou a concorrência e trouxe  muita preocupação às madames.

Uma das pensões mais famosas era a de Amélia Campos, a mais próxima da Praça do Ferreira, defronte a Padaria Lisbonense. As mulheres selecionadíssimas frequentavam junto com a madame, as manhãs festivas da Rotisserie, no começo dos anos 1940. Todas bem vestidas, com chapéus e luvas, chamavam a atenção pela classe e elegância.

Um fato insólito chamava a atenção. Era Nena, a dona do Bar da Alegria. Espanhola, bem idosa, vestia-se de preto, como uma viúva recatada e pudica, com seus vestidos de panos pesados, austeras echarpes e sapatos sem saltos. Usava os cabelos presos em modesto coque. Podia ser vista, todas as manhãs, na Igreja do Rosário, desfiando as contas do terço, contrita e cheia de devoção.

Era nas pensões alegres que acontecia o vestibular dos adolescentes que tinham de provar para o pai, às vezes contra a própria vontade que também eram garanhões.

extraído do livro de Marciano Lopes.
e do Jornal Diário do Nordeste

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Governo Virgílio Távora (1963 – 1966)


 Praça José de Alencar, década de 1960 (acervo particular Darth Vader)
Virgílio Távora foi eleito governador do Ceará nas eleições de 1962, pela coligação União pelo Ceará, formada pelo PSD, UDN e PTN, representante política das elites locais. Virgílio era herdeiro do grupo político denominado Tavorista, em função do nome da família da qual fazia parte.  

Ao assumir o governo do Ceará, VT procurou implementar em nível estadual o que Juscelino fizera a nível nacional: um plano de governo. Assim nasceu o 1° Plano de Metas Governamentais (Plameg), que tinha entre outros objetivos, o de desenvolver a atividade industrial do Estado, por meio de financiamentos concedidos pelo Estado.

Nesse período, (início da década de 1960), SUDENE, Banco do Nordeste e UFC preparam uma variedade de técnicos, pesquisadores e administradores que seriam aproveitados na gestão de Virgílio Távora e de governos posteriores. Esse seria um dos marcos do governo Távora: a utilização de técnicos na máquina do Estado, para coordenar secretarias consideradas estratégicas dentro do planejamento estabelecido.  

Obviamente, os técnicos dividiam espaço e funções com políticos e seus apadrinhados, afinal VT era um político tradicional, e a política do apadrinhamento no Ceará, é histórica e jamais caiu em desuso.

Até o governo VT os administradores do Ceará não adotavam nenhum planejamento de governo. O 1° PLAMEG foi inspirado no Plano de Metas de Juscelino Kubistchek e no Plano Trienal de João Goulart, ambos de caráter desenvolvimentista.  

Foi elaborado pelo economista Hélio Beltrão,  por técnicos do Banco do Nordeste e da Universidade Federal do Ceará (UFC). No inicio da década, os técnicos dessas instituições já haviam preparado um conjunto de estudos sobre os Estado nordestinos que serviram de referência para o plano adotado por Virgílio. 

Agência do BEC, Banco criado ano década de 1960, extinto nos anos 2000, na sanha privatizadora do governo. 

Para execução do PLAMEG, Távora contaria com verbas e apoio técnico de instituições internacionais como o BID e a Aliança para o Progresso – programa de ajuda  do governo norte-americano visando barrar as esquerdas latinas – além de órgãos federais, especialmente da SUDENE e do BNB.  Tais entidades foram responsáveis pela liberação de capitais, por incentivos fiscais em benefício do Ceará, pela formulação de diagnósticos, pela elaboração de projetos e condução de planos para as obras de infraestrutura.

Em termos locais, VT criou a Superintendência de Desenvolvimento do Ceará (SUDEC), a Companhia de Desenvolvimento do Ceará (CODEC) o Bando do Estado do Ceará (BEC), e a Secretaria de Planejamento (SEPLAN).  No setor de transportes, foram criadas a Companhia Docas do Ceará, e a Fábrica de Asfaltos do Mucuripe. 

Vista parcial da Cia. Docas do Ceará, administradora do Porto de Fortaleza

Para atrair investimentos de capitais de outras regiões, o governador procurou criar uma infraestrutura, sem a qual a industrialização seria inviável. Desse modo Virgílio conseguiu recursos do governo federal para a instalação de linhas para transmissão da energia elétrica gerada pela Usina de Paulo Afonso, no Rio São Francisco. Além disso, empenhou-se em ampliar o Porto do Mucuripe, de modo que pudesse receber navios de grande porte, e pavimentar rodovias, para facilitar o escoamento da produção agrícola e industrial.  Criou ainda o I Distrito Industrial em Maracanaú, que começou a funcionar no final da década de 1960.

O Governador Virgílio Távora com outras autoridades, na inauguração do sistema de transmissão de energia elétrica de Paulo Afonso.

Estavam lançadas, dessa forma, as bases da efetiva industrialização do Ceará, que de modo geral, continuou a se fundamentar em fábricas do setor tradicional: têxteis, calçados, óleos vegetais, vestuário e artefatos de tecidos. O PLAMEG elevou a renda do Estado, embora não tenha contribuído para melhorar sua distribuição . Depois do PLAMEG, todos os governos cearenses passaram a adotar planos de governo. 


Virgílio de Moraes Fernandes Távora nasceu em Fortaleza, no dia 29 de setembro de 1919, filho do senador Manuel do Nascimento Fernandes Távora  e Carlota Augusta de Moraes Fernandes Távora. Militar de carreira, herdou o comando de um tradicional grupo oligárquico da UDN.  Administrou o Ceará em dos mandatos: 1963-1966 e 1979-1982. 

Com pouco mais de um ano do primeiro mandato de Virgílio Távora como governador, eclodiu o golpe militar 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart. No Ceará, inúmeros políticos, jornalistas, professores, médicos, sindicalistas e estudantes foram presos no quartel do  23° BC, e deputados e vereadores tiveram seus mandatos cassados pelo regime autoritário.  Após um primeiro momento de indefinição, Virgílio, como coronel do Exército que era, apoiou o movimento golpista. 

Fonte:
História do Ceará, de Airton de Farias 
História do Ceará, de Nelson Campos

domingo, 23 de outubro de 2011

Dias de Cão (na Itaoca)


Corria o ano de 1941. O Continente Europeu se via às voltas com um conflito armado, que alguns meses mais tarde haveria de se espalhar pelo mundo.  Os jornais de Fortaleza só falavam da guerra: dos ataques, das tragédias, dos mortos, dos bombardeios. O assunto era uma fonte inesgotável de interesse por parte da população, e as noticias eram fartas.

De repente, surge uma dessas histórias bombásticas, capaz de despertar interesse da população, de ofuscar as noticias da guerra, e de matar de curiosidade os viventes da pacata cidadezinha de pouco mais de 180 mil habitantes:  a de que satanás em pessoa, estava dando o ar da graça numa casa localizada no Beco da Itaoca,  então subúrbio de Fortaleza.

Na época do suposto aparecimento do Diabo, a Itaoca não tinha ruas, somente becos.  Não havia pavimentação, o piso era de areia, as casas simples, cercadas  de vegetação, nas imediações, uma lagoa, aterrada mais tarde.  O bairro era chamado de Pirocaia (nome do poço de água potável localizado próximo ao Beco da Itaoca). No fim dos anos 1940, o Beco da Itaoca passa a se chamar Rua Romeu Martins.

A Rua Romeu Martins atualmente fica no bairro Montese

Segundo testemunhas, na casa de um certo tenente da polícia, chamado João Lima,  fenômenos  estranhos e  acontecimentos inexplicáveis, sugeria a ação de entes invisíveis.  O proprietário do imóvel, homem honrado e trabalhador, andava assustado com os fatos de origem nada natural e sua família andava tomada de explicável nervosismo.

Segundo testemunhas, na casa de um certo tenente da polícia, chamado João Lima,  fenômenos  estranhos e  acontecimentos inexplicáveis, sugeria a ação de entes invisíveis.  O proprietário do imóvel, homem honrado e trabalhador, andava assustado com os fatos de origem nada natural e sua família andava tomada de explicável nervosismo.

Em outra manifestação na casa, presenciadas por vizinhos e moradores do bairro, o móvel atingido foi o fogão, que deu umas piruetas pela casa e depois caiu sozinho, de pernas para o ar. Todos os utensílios da cozinha da casa voaram pelos ares; a chaleira parecia um zepelim, evoluindo pela casa toda;  os garfos e facas dançavam;  os pratos tiniam;  areia e pedras eram jogadas de todos os cantos, enquanto distintas senhoras jogavam água benta pela casa. Tudo em vão. Um jarro que estava no chão, ergueu-se num voo rasante e quase atingiu uma delas.


Como os fenômenos se repetissem, a policia foi chamada. Em presença das autoridades policias (2 delegados, 1 comissário e vários agentes), nada se registrou de anormal, ainda segundo o repórter. 

No entanto, um verdadeiro terror se apoderou de todos, chamando a atenção da população. A história das aparições na Itaoca se espalhou por toda a cidade, sendo manchete de três jornais e objeto de reportagem da PRE-9, a única emissora de rádio da cidade. Até mesmo o sóbrio Jornal O Nordeste, de propriedade da Diocese de Fortaleza, se pronunciou sobre o caso, reclamando providências. 

Uma multidão de curiosos se aglomerava todos os dias na casa do tenente João Lima, na tentativa de observar as manifestações. As opiniões se dividiam: uns acreditavam em manifestações sobrenaturais, outros em farsa  de espíritos zombeteiros,  enquanto havia quem oferecesse explicações  naturais para os fatos. Os curiosos, procedentes de todos os bairros, de todas as classes sociais, de todas as raças, e credos, se movimentavam fascinadas  pelas plumas imponderáveis da superstição e da curiosidade.

Quintino Cunha, grande humorista cearense, era vizinho da casa onde o cão fazia as estripulias, e arriscou um palpite: para Quintino aquilo era obra de almas bêbadas, talvez dos que foram ébrios em vida. No meio da polêmica até a Federação Espirita do Ceará se propôs a examinar a questão, intervindo, se necessário no caso da Itaoca.

De repente, tão inesperadamente como chegou, o Demo  sumiu, os fenômenos cessaram e os objetos da casa voltaram ao seu estado de inércia. O mesmo repórter que deu início às reportagens do jornal que divulgou o fenômeno, deu sua explicação para o fim do caso: Lúcifer deixou a Itaoca com medo dos catimbozeiros de lá, e resolveu retornar à Europa, onde a demência assume formas mais trágicas. 


Dizem que a história do Cão da Itaoca não passou de uma grande piada, uma história inventada por um jornalista  entediado com a escassez de noticias locais. Provavelmente não contava com a repercussão nem com as proporções que o caso assumiria.  Com a disseminação do caso do Cão em toda cidade, o nome "Itaoca" se firmou em nível local. Atualmente a Itaoca é oficialmente um bairro, situado entre o Montese e a Parangaba.

Do episódio, restaram os versos de um poeta popular, que registrou para a posteridade, o fenômeno que fez Fortaleza esquecer, ainda que momentaneamente, a Guerra na Europa. 

No passo do canguru
O diabo passou o mar
Foi direto a Itaoca
Pra tudo arrebentar

Numa casa bonitinha
Vivem todos incomodados
É que mãos que ninguém vê
Deixa tudo revirado

Chaleira voa pelos ares
Fogão reclama o calor
Vaso pula horrorizado
Tijolo diz que está com dor

Até os santo de casa
Dão mergulho no soalho
Diz o povo que o diabo
Joga em qualquer baralho

As telhas entoam cantiga
Os lençol sobem no vento
Quando voltam para o chão
Viram placa de cimento

Na frente de todo mundo
E em pleno meio dia
Rebolam pedra em cristão
Isso é coisa que arrepia

Eu fiquei muito assombrado
Com a tal exibição
Havia gente chorando
Com medo da danação

Um porco lá no quintal
Sorri com espalhafato
Metia o focinho no chão
E queria calçar sapato

A mesa caía de costa
Levantava bem as perna
Até lembrava coisa feia
De alma na pena eterna

Um peru fazia discurso
Parecia um senador
O bicho tava atuado
Com a alma dum doutor

Itaoca que coisa horrível
Paraíso da macumba
Catimbó dá na canela
E a polícia não faz “bumba”

Na Itaoca galo chora
E pé de pau assovia
Os espirito se assanha
Quer de noite, quer de dia

Gelo se vira em brasa
Os bebê fica velhinho
Velho vira garotinho
E minhoca cria asa.
J. Silva

fotos: ruas da Itaoca
Fontes:
Jornal Gazeta de Notícias, edições de 20, 21, 22 de março de 1941
Jornal o Nordeste, de 22 de março de 1941.
Jornal O Povo, de 28 de novembro de 2006.


O Proletariado Cearense e a Passeata da Fome


A suntuosidade nas fachadas dos prédios, marcou as construções do inicio do século. Este pertenceu à Fênix Caixeiral (arquivo Nirez)
    
Com entrada do século XX, Fortaleza vivenciou várias modificações na sua estrutura urbana.  Viu surgirem novas lojas, novos bancos, hotéis, clubes, mansões, como a nova sede da Fênix Caixeiral, inaugurada em 1905, num evidente sinal da prosperidade dos caixeiros (comerciários) ante à expansão do comércio local; da luxuosa sede da Associação Comercial – o Palácio Guarani , inaugurado em 1908, e do Palacete Carvalho Mota, de 1907, construído para a família do coronel Antônio Frederico de Carvalho Mota, e que mais tarde passou para o controle do DNOCS.

Palácio Guarani, inaugurado em 1908 (arquivo Nirez)

Para os setores dominantes, compostos por comerciantes, profissionais liberais, políticos e artistas, morar nas ruas principais do Centro da cidade e frequentar os locais da moda eram símbolo de status social, demonstrando seu poder econômico e o nível cultural superior. Havia uma prática entre as elites, de se deslocar para casas mais luxuosas, às vezes na mesma rua ou nas proximidades, como uma forma de demonstrar ascensão social dentro do grupo.
Fábrica Siqueira, Gurgel, Gomes & Cia Ltda foi constituída em outubro de 1924. Indústria de óleos vegetais e sabão, funcionava no antigo bairro do Matadouro, atual Otávio Bonfim.  

Outro sinal de progresso da cidade foi o aparecimento das fábricas – pequenas e médias, de peso quase insignificante no contexto da economia cearense. No final do século XIX, havia duas fábricas de fiação e tecidos. A primeira começou a funcionar em 1883, com 215 empregados, de propriedade de Antônio Pompeu de Sousa Brasil, Thomas Pompeu de Sousa Brasil (filhos do Senador Pompeu) e do cunhado destes, o depois governador Nogueira Accioly. A outra foi fundada por Holanda Gurjão & Cia.

Ao longo das primeiras décadas do século XX foram aparecendo fábricas de sabão, bebidas, calçados, fogos de artificio, fundição de ferro, refino de açúcar, produtos farmacêuticos, tipografias e ateliês de artistas (marceneiros, alfaiates, sapateiros).

Muitas das fábricas se instalariam ao longo da via férrea, que cortava a zona oeste da cidade e no entorno da Estrada do Urubu (atual Avenida Francisco Sá), fazendo surgir ali um polo industrial que se estenderia até a Barra do Ceará e duraria até os anos 1970/80. Em 1928, a Rede de Viação Cearense instalaria naquela estrada suas oficinas, conhecida como Oficina do Urubu.
Fábrica Santo Antonio, de fiação e tecelagem de algodão, fundada em março de 1924.

Com isso, foi aos poucos se formando uma pequena classe operária, vista como potencialmente perigosa pelas autoridades e segmentos dominantes, começando daí o controle e a repressão dos trabalhadores e a fundação de sindicatos e associações assistencialistas. No inicio do século, as ideias socialistas, especialmente anarquistas, já circulavam entre os operários cearenses.  

Em 1927, era fundado o Bloco Operário Camponês, a seção local do Partido Comunista Brasileiro, evidenciando a organização e movimentação dos trabalhadores em busca de melhores condições de vida e mesmo de superação do capitalismo. Várias greves aconteceram em Fortaleza no período da República Velha e as lideranças socialistas participavam de todos os movimentos populares que aconteciam.

O período que precedeu a Revolução de 1930 foi uma  época de intensa mobilização de trabalhadores em todo o país. A liderança do movimento operário estava praticamente com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em seus discursos, era comum o tema da revolução como condição de reformas sociais e políticas, para modificar as relações de trabalho, tanto na cidade quanto no campo. 

Depois da Revolução de 30, assume como primeiro interventor do Ceará, Fernandes Távora, bastante criticado por manter práticas políticas identificadas com as oligarquias tradicionais. Também continuam as práticas da Velha República contra a organização de trabalhadores. As ações caminhavam no sentido de desmobilizar o movimento operário e sindical, utilizando os instrumentos de repressão.

Fernandes Távora, primeiro interventor do Ceará

Em Fortaleza o PCB se preparava para uma grande manifestação, chamada Passeata da Fome, para o dia 19 de janeiro de 1931. O objetivo era reunir os desempregados e denunciar os problemas sociais que afligiam a população. A miséria era o foco da manifestação. O ato vinha sendo preparado nacionalmente desde o final do ano anterior e estava previsto para acontecer em outras cidades brasileiras sob a coordenação do Partido.

A interventoria cearense toma conhecimento da organização da passeata, e se prepara para reprimir o movimento. O Interventor Fernandes Távora nomeia Faustino Nascimento como delegado especial para fazer diligências na capital e no Interior. A distribuição de panfletos de convocação é proibida e estes passam a circular preferencialmente nos bairros, onde o policiamento era menos ostensivo. São presos 56 operários, sendo 16 deportados para o Rio de janeiro.

Para a opinião pública, o governo apresentou sua versão como forma de justificar a repressão. Em 28 de fevereiro de 1931, o  Jornal O Povo publicou o relatório do delegado Faustino Nascimento entregue ao interventor Fernandes Távora com o título O Comunismo no Ceará. Um dos tópicos era sobre a Passeata da Fome. 

Os membros do Partido que deveriam tomar parte na Passeata, apresentar-se-iam armados até de dinamite, não só para resistirem eficazmente contra qualquer obstáculo policial, como também porque desejavam os comunistas aproveitar-se do ensejo para tentar um assalto ao poder, caso conseguisse realizar o seu plano, diz o texto publicado.

Em outro trecho, o delegado afirma que a Passeata da Fome seria o primeiro movimento de agitação comunista entre nós, após a revolução de Outubro (Revolução de 30). Depois, viriam outros levantes. 

Ele justifica que para alguns, a passeata não se realizou porque a palavra de ordem foi presa no Ceará.  Para outros, porque o Partido não estava forte o suficiente, e os desempregados convidados tiveram receio de participar do movimento. 

Fontes:

Fortaleza, uma Breve História, de Artur Bruno e Airton de Farias
Revista Fortaleza, fascículo 4, de 30 de abril de 2006
Verso e Reverso do perfil urbano de Fortaleza, de Gisafran Nazareno Mota Jucá