imagem do livro Caravelas, jangadas e Navios de Rodolfo Espínola
De princípio a interessou o nome da aeronave: não
“zepelim” nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de
metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo,
independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base
aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez
em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que
abandonassem o poleiro num ensaio de vôo. Assim, de começo, aos olhos da
menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria;
fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava
lindo, todo feito de prata, igual a uma jóia, librando-se majestosamente pouco
abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo
de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse
alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas
de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode
águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das
virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua
contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem
nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá
dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de
realidade — faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como
as grandes letras negras U. S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez
lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos
automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível
começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina
tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as
migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando
entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se.
Vivia naquela base como um frade no seu convento — sozinho entre soldados e
exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado
vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha
de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já
sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão
distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si,
cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as,
espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que
ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.
Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento,
agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava
fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no
fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido;
debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!”— embora
soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se
nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo
mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia
haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma
pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça
branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o
café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a
uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num
gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto
não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.
A menina que sacudia a toalha erguera realmente os
olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima.
Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto,
pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria rude de soldado
estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma
confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as
mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U. S. Navy. Enquanto isso, o
blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o
pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez,
acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas
e lentamente se afastou — e a menina teve a impressão de que ele levava
saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também — não em saudades, que ele
não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de
não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.
Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal.
Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a
toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar
imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de
gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa,
lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes,
trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada;
caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o
tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência
sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de
papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à
pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o
rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era
ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em
cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições,
mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e
canetas. Um dia teve ideia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso
de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa menina,
pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.
Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de
conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos
diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava
ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e
sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louro
feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita
não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton.
Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um
recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do
sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro.
E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e
iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora
de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela
tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de
“Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy
Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem
ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque
ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da
pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina
madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o
namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente,
voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da
janelinha, olhava e dava adeus.
Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia
de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais
de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora
escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista:
laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que
haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please
você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo
da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos
americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”.
Seria ela? Sim, decerto… e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou
que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou
Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu:
consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e
verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer “a hora
depois do meio-dia”.
Não pudera acenar uma resposta porque só vira o
bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim
o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira
aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou
moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar
– e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua
mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe
faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de
sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o
convite. Tudo se ia passando como num sonho — e como num sonho se resolveria,
sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida.
Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em
brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não
dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e
preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas
ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão
passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e
meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as
oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o
portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de
passos na estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas
o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se,
trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão — até parecia manobra militar —,
tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo
os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes,
fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela
compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais
do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o
mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo…
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente;
traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes
diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas
palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl,
que já era uma instituição da base — só viu escárnio, familiaridade insolente…
Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os
marinheiros de passagem, quem quer que seja… decerto pensavam… Meu Deus do Céu!
Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não
cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e
susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles,
curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando
timidamente:
— Desculpem… houve engano… um engano…
E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram
fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que
ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas
mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.
Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em
atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram
apanhados pelos moleques do sítio.
Considerado um dos cem melhores contos brasileiros do
século. Extraído do livro “O melhor da crônica brasileira”, José Olympio
Editora – Rio de Janeiro, 1997.
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, no dia 17 de
novembro de 1910. Filha de intelectuais, do advogado Daniel de Queiroz Lima e
de Clotilde Franklin de Queiroz, era descendente, pelo lado materno, da família
Alencar (sua bisavó materna era prima José de Alencar).
Com apenas 7 anos sua família muda-se para o Rio de
Janeiro e depois para Belém do Pará. Depois de dois anos retornam ao Ceará e
Rachel torna-se aluna interna do Colégio da Imaculada Conceição, formando-se
professora em 1925, aos 15 anos de idade.
Lecionou História aos 20 anos, em 1930, publica seu
primeiro romance, “O Quinze”. Nessa obra, a escritora retrata a seca
de 1915 no nordeste do país e a realidade dos retirantes nordestinos. A obra
bem recebida pelo público, “O Quinze”, foi agraciada com o prêmio da
Fundação Graça Aranha.
Em 1927, após uma publicação com o pseudônimo “Rita de
Queiroz” no Jornal do Ceará, Rachel é convidada para colaborar nesse jornal.
Nele, começa a publicar diversas crônicas e a trabalhar como repórter. Foi
militante política e afiliada ao Partido Comunista Brasileiro desde 1930.
Em 1932, casa-se com o poeta José Auto da Cruz
Oliveira, separando-se em 1939. No ano seguinte, casa-se novamente com o médico
Oyama de Macedo, com quem permanece até seu falecimento, em 1982. Em 1992,
escreveu o romance “Memorial de Maria Moura”, o qual lhe conferiu o
"Prêmio Camões".
Faleceu aos 92 anos, no dia 4 de novembro de 2003, na
cidade do Rio de Janeiro, enquanto descansava em sua rede.
2 comentários:
Achei lindo o conto! Dá pra contextualixar muitooo! Raquel eh admiravel!
"Rita de Queluz", era o pseudônimo.
Postar um comentário