José Maria Moreira Campos nasceu em Senador Pompeu no dia 06
de janeiro, no ano de 1914, filho de Francisco José Gonçalves e Adélia Moreira
Campos. Teve dois irmãos – um irmão e uma irmã – que morreram cedo.
O estudo inicial, básico foi feito no interior, em Lavras da
Mangabeira. Em 1930 a família veio morar em Fortaleza, por um motivo que foi
considerado pelo escritor como trágico: seu pai passou a se dedicar ao comércio
em 1924. Em Lavras da Mangabeira, mantinha um bem-sucedido comércio de algodão,
peles e cera de carnaúba. O desastre começou quando a fábrica se incendiou e não estava
no seguro. Devido às dificuldades financeiras, a família mudou-se para a
capital.
Em Fortaleza Moreira Campos ingressou no Educandário Moacir
Caminha; lá fez o vestibular e ingressou no secundário. Acostumado à vida
pacata do interior, onde passou a infância e parte da adolescência, encantou-se
e impressionou-se com os serviços que encontrou na capital. Um dos maiores encantos
foi andar de bonde, outro foi o cinema. Gostava tanto de cinema que chegava a
assistir ao mesmo filme quatro vezes.
A Praça do Ferreira que Moreira Campos conheceu quando chegou à Fortaleza em 1930. O coreto foi demolido em 1933, na gestão do prefeito Raimundo Girão.
Depois do Educandário Moacir Caminha estudou no Liceu, mas não
pode terminar o curso em razão do falecimento dos pais. O pai faleceu aos 44
anos em 1931; ano seguinte morreu a mãe, aos 38 anos. Pobre e sozinho foi
acolhido por um primo, e morou em casa de algumas tias. Mais tarde conseguiu um
emprego de ajudante de arquivista na Secretaria do Interior e da Justiça e foi
morar numa pensão.
Retomou os estudos fazendo um Curso Madureza, trabalhando de
dia e estudando à noite. Fez vestibular para Direito e concluiu o curso em
1946. Depois, ingressou na Faculdade Católica de Filosofia e Formou-se em
Letras.
A vida literária começou quando ainda era muito jovem. Ainda
no interior, gostava de ler romances, e aos 13 anos já fazia sonetos sem sequer
saber ao certo o que seria um soneto, posto que não conhecia métrica e rima.
Retomou a vida literária quando chegou a Fortaleza.
Junto com os colegas do Liceu criou a Escola Moça de Cultura.
Depois surgiram os moços do grupo Clã, grupo que consolidou o movimento
modernista no Ceará. A denominação Clã – Clube de Literatura e Arte – era
porque no início o grupo contava com literatos e artistas plásticos: Antônio
Bandeira, Aldemir Martins, Barbosa Leite e Márcio Barata. Depois os artistas
plásticos foram embora, ficaram apenas os intelectuais.
A Escola Moça de
Cultura, foi um grupo literário que surgiu espontaneamente, sem sede, sem estatutos,
sem regimentos. As reuniões ocorriam nos cafés da Praça do Ferreira.
O escritor casou-se em 14 de dezembro de 1937 com Maria José
Nogueira Alcides, que trabalhava com Moreira campos na mesma repartição –
Secretaria do Interior e da Justiça. O casal teve três filhos: Natércia, Marisa
e Cid.
Moreira Campos foi funcionário público e diretor de
repartição, mas sonhava com o magistério. Foi professor de Geografia na Fênix
Caixeiral e lecionou Português no Colégio Padre Champagnat. Em 1965, Ingressou no magistério, na UFC, e fez novo
vestibular para licenciatura em Letras na Faculdade Católica de Filosofia.
O seu livro de estreia foi Vidas Marginais em 1949. Em 1957 lançou o segundo livro Portas Fechadas, editado pela
Cruzeiro no tempo de Assis Chateaubriand. Em seguida veio o Terceiro livro: As Vozes do Morto, em 1963. Foi publicado pela Editora
Francisco Alves, mas o autor não gostou da edição e mandou tirar de circulação. Em 1969 lançou O Puxador de Terço, que retrata
uma figura que o autor conheceu no sertão.
Depois veio o quinto livro: Os Doze Parafusos, em 1978, que
relata um caso que foi contado ao autor: uma mulher
neurótica, com ciúme exacerbado, que para mostrar sacrifício ao marido, retirou
dezoito parafusos de uma janela para se atirar lá de cima. Ao escrever o conto
o autor reduziu os parafusos a doze por achar que dezoito era muito.
Contos Escolhidos de 1981, é uma seleção feita pelo autor de
histórias publicadas nos livros anteriores. Depois foi lançado em 1985, A
Grande Mosca no Copo de Leite, livro que o ator considera de cunho erótico.
O último livro a ser lançado por Moreira Campos foi Dizem que
os Cães Veem Coisas, de 1987. O título é
uma tradição do folclore. Dizem que os animais veem e pressentem acontecimentos
da natureza antes dos humanos. Há ainda um livro de poesias:
Momentos.
Moreira Campos participa de cerca de catorze antologias, entre
nacionais e estrangeiras. Suas obras já foram traduzidas para o francês,
italiano, inglês, alemão e hebraico. Foi membro da Academia Cearense Letras, da
Academia Cearense de Língua Portuguesa e Professor Emérito da Universidade
Federal do Ceará; foi agraciado com diversos prêmios e comendas ao longo de sua
existência. O escritor e poeta faleceu em Fortaleza, no dia 6 de maio de
1994, aos 80 anos de idade.
Dizem que os cães veem coisas
(conto)
Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe
descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. Ninguém lhe ouviu os
passos. Sentou-se à beira da grande piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiquíssima,
atual e eterna, com a sua cara de máscara. Moldada em gesso? Apenas uma
presença, porque pousou como uma sombra. Mas por um fragmento de tempo, um
quase nada, reinou entre todos um silêncio largo, que se estendeu pelo vasto
terreno murado da mansão ensombrada pelas árvores, dominou a enorme piscina e
emudeceu as próprias crianças pajeadas pelas babás de aventais bordados, e
vejam que as crianças são indóceis.
Um
presságio.
Fragmento
de tempo apenas, porque o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da
piscina com o copo de uísque na mão. Espadanou água por todos os lados, a
piscina transbordou. Muitos se molharam, outros saltaram da cadeira de lona.
- Bruto! –
disse alguém íntimo, sem que ele se aborrecesse, bêbado.
A onda de
água despejou-se sobre Ela, que não se moveu: era trespassável e transparente.
Floco de névoa pronto a esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum
ricto. Apenas parecia consultar no pulso um relógio invisível, para marcar o
tempo. O homem de ventre enorme já estava à beira da piscina, gotejante e
trôpego, para uma nova dose de uísque, os dedos graúdos catando no balde os
cubos de gelo. Mulheres seminuas, o cordão do biquíni, as nádegas reluzentes de
sol e gotas d’água. As rodas, as conversas, os garçons que circulavam, as
bandejas de salgadinhos.
Uns óculos
escuros sofisticados no sutiã mínimo:
- Por
favor.
O garçom
atendia, solicito, perdendo os olhos ávidos nos seios mal contidos, oferecidos
e inatingíveis.
-
Obrigada.
O garçom
mantinha a dignidade, ereto. A menina chegou e segurou a mãe pelo queixo:
- Mãe-ê,
quero uma Coca-Cola.
A mãe não
lhe dava atenção em flerte com o recente campeão de vôlei, uma estrutura de
tórax (a mãe da menina contrariava-se apenas com o tufo de pelos que ele tinha
no peito, quase imoral). A menina impacientava-se:
- Mãe-ê,
uma Coca-Cola.
- Deixa de
ser chata!
O campeão
levantou-se para apanhar o refrigerante. Em roda mais distante conversavam os
homens graves: a última medida do governo, a crise econômica.
- O país
vai à bancarrota.
- Vai o quê?
- A
bancarrota.
- Fazia
tempo que eu não ouvia essa palavra.
- Mas vai.
Aceitava-se a bancarrota sem muita convicção. Na grande varanda, as
senhoras grisalhas e indesnudáveis, pulseiras tilintantes na flacidez dos
braços, discutiam os novos valores morais e comentavam o recente desquite.
- A menina
dela não tem um ano de casada.
- É a
segunda que se separa.
- Como?
- A segunda.
Aniversário da dona da mansão, que se acompanhava ao violão com graça,
aplaudida pelos que estavam em volta. O garçom (ou maitre, porque era solene)
curvou-se ao seu ouvido. Ela se livrou do violão, levantou-se e bateu palmas
chamando todos para o almoço à americana, as mesas sob as árvores. Cada um
apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cedeu lugar a umas
nádegas rijas, cortadas sempre pelo cordão do biquíni:
- Faz
favor.
-
Obrigada.
Os cães de raça latiam e uivavam
desesperadamente nos canis (e dizem que os cães veem coisas). Foi preciso que o
tratador viesse acalmá-los, embora eles rodassem sobre si mesmos e rosnassem. A
distância, a piscina quase olímpica, agora deserta: toalhas esquecidas. O vidro
de bronzeador, o cinzeiro sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro marcadas
de batom.
As filas.
Alguém tangeu o gato que lutava com um pedaço de osso. Lenita fez o prato do
marido, preparou também o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se
lembrou do filho:
- Cadê o
Netinho?
Certa
angústia na voz. Chamou o marido, gritou pela babá, que se distraía com as
outras na varanda. Olhos espantados e repentino silêncio talvez maior de qualquer
outro. Refeições suspensas, uma senhora mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam
segurar Lenita. Ela se desvencilhava:
- Cadê o
Netinho? Cadê?
As águas
da grande piscina eram tranquilas, apenas levemente franjadas pelo vento.
Boiava sobre elas uma carteira de cigarros vazia. Mas a moça que se aproximava
parecia divisar um corpo no fundo, preso à escada. Voltaram a afastar Lenita, o
marido a envolveu nos braços possantes, talvez procurando refúgio também. O
campeão de vôlei atirou-se à piscina e veio à tona sacudindo com a cabeça os
cabelos longos: trazia sob o braço um corpo inerme, flácido, de apenas quatro
anos e de cabelos louros e gotejantes.
O médico
novo, de calção, tentou a respiração artificial, e boca-a-boca (os lábios de
Netinho estavam arroxeados), e levantou-se sem palavras e sem olhar para
ninguém. Lenita soltou-se e agarrou-se ao filho:
- Acorde,
acorde! Pelo amor de Deus, acorde?
Conseguiram afastá-la mais de uma vez, quase desmaiou. A amiga
limpava-lhe com os dedos a sobra de farofa que se grudava ao seu rosto. Os cães
de raça voltavam a latir desesperadamente, e dizem que os cães veem coisas.
Lenita
ficou para sempre com a sensação do corpo inerte e mole entre os braços. Uma
marca, uma presença, que procurava desfazer com as mãos. Cabelos louros e
gotejantes. Às vezes, ela despertava na noite:
- Acorde,
acorde!
A presença também daquele instante de
silencio que pesara sobre a piscina. Um pressentimento apenas? Precisamente o
momento em que Ela chegara, transparente e invisível, e se sentara à beira da
piscina, cruzando as pernas longas, antiquíssima, atual e eterna.
_____
Fontes:
CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem
coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.
Roteiro Sentimental de Fortaleza/ Depoimentos de História Oral de Moreira Campos, Antonio Girão Barroso e José Barros Maia/ Coordenadores: Simone de Souza e Sebastião RogérioPrefácio de José Carlos Sebe B. Meihy; transcriadores: Oswald Barroso, Caterina de Saboya Oliveira e Sebastião R. Ponte. Fortaleza: UFC-NUDOC/SECULT-CE, 1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário