terça-feira, 29 de novembro de 2016

Moreira Campos: Dizem que os Cães veem Coisas

José Maria Moreira Campos nasceu em Senador Pompeu no dia 06 de janeiro, no ano de 1914, filho de Francisco José Gonçalves e Adélia Moreira Campos. Teve dois irmãos – um irmão e uma irmã – que morreram cedo.
O estudo inicial, básico foi feito no interior, em Lavras da Mangabeira. Em 1930 a família veio morar em Fortaleza, por um motivo que foi considerado pelo escritor como trágico: seu pai passou a se dedicar ao comércio em 1924. Em Lavras da Mangabeira, mantinha um bem-sucedido comércio de algodão, peles e cera de carnaúba. O desastre começou quando a fábrica se incendiou e não estava no seguro. Devido às dificuldades financeiras, a família mudou-se para a capital.

Moreira Campos aos 12 anos de idade

Em Fortaleza Moreira Campos ingressou no Educandário Moacir Caminha; lá fez o vestibular e ingressou no secundário. Acostumado à vida pacata do interior, onde passou a infância e parte da adolescência, encantou-se e impressionou-se com os serviços que encontrou na capital. Um dos maiores encantos foi andar de bonde, outro foi o cinema. Gostava tanto de cinema que chegava a assistir ao mesmo filme quatro vezes.

A Praça do Ferreira que Moreira Campos conheceu quando chegou à Fortaleza em 1930. O coreto foi demolido em 1933, na gestão do prefeito Raimundo Girão. 

Depois do Educandário Moacir Caminha estudou no Liceu, mas não pode terminar o curso em razão do falecimento dos pais. O pai faleceu aos 44 anos em 1931; ano seguinte morreu a mãe, aos 38 anos. Pobre e sozinho foi acolhido por um primo, e morou em casa de algumas tias. Mais tarde conseguiu um emprego de ajudante de arquivista na Secretaria do Interior e da Justiça e foi morar numa pensão.

Retomou os estudos fazendo um Curso Madureza, trabalhando de dia e estudando à noite. Fez vestibular para Direito e concluiu o curso em 1946. Depois, ingressou na Faculdade Católica de Filosofia e Formou-se em Letras.
A vida literária começou quando ainda era muito jovem. Ainda no interior, gostava de ler romances, e aos 13 anos já fazia sonetos sem sequer saber ao certo o que seria um soneto, posto que não conhecia métrica e rima. Retomou a vida literária quando chegou a Fortaleza.

Junto com os colegas do Liceu criou a Escola Moça de Cultura. Depois surgiram os moços do grupo Clã, grupo que consolidou o movimento modernista no Ceará. A denominação Clã – Clube de Literatura e Arte – era porque no início o grupo contava com literatos e artistas plásticos: Antônio Bandeira, Aldemir Martins, Barbosa Leite e Márcio Barata. Depois os artistas plásticos foram embora, ficaram apenas os intelectuais.

A Escola Moça de Cultura, foi um grupo literário que surgiu espontaneamente, sem sede, sem estatutos, sem regimentos. As reuniões ocorriam nos cafés da Praça do Ferreira.

com D. Maria José e os 3 filhos

O escritor casou-se em 14 de dezembro de 1937 com Maria José Nogueira Alcides, que trabalhava com Moreira campos na mesma repartição – Secretaria do Interior e da Justiça. O casal teve três filhos: Natércia, Marisa e Cid.
Moreira Campos foi funcionário público e diretor de repartição, mas sonhava com o magistério. Foi professor de Geografia na Fênix Caixeiral e lecionou Português no Colégio Padre Champagnat. Em 1965, Ingressou no magistério, na UFC, e fez novo vestibular para licenciatura em Letras na Faculdade Católica de Filosofia. 

com a escritora Rachel de Queirós

O seu livro de estreia foi Vidas Marginais em 1949. Em 1957 lançou o segundo livro Portas Fechadas, editado pela Cruzeiro no tempo de Assis Chateaubriand. Em seguida veio o Terceiro livro: As Vozes do Morto, em 1963. Foi publicado pela Editora Francisco Alves, mas o autor não gostou da edição e mandou tirar de circulação. Em 1969 lançou O Puxador de Terço, que retrata uma figura que o autor conheceu no sertão.
Depois veio o quinto livro: Os Doze Parafusos, em 1978, que relata um caso que foi contado ao autor: uma mulher neurótica, com ciúme exacerbado, que para mostrar sacrifício ao marido, retirou dezoito parafusos de uma janela para se atirar lá de cima. Ao escrever o conto o autor reduziu os parafusos a doze por achar que dezoito era muito.
Contos Escolhidos de 1981, é uma seleção feita pelo autor de histórias publicadas nos livros anteriores. Depois foi lançado em 1985, A Grande Mosca no Copo de Leite, livro que o ator considera de cunho erótico.
O último livro a ser lançado por Moreira Campos foi Dizem que os Cães Veem Coisas, de 1987. O título é uma tradição do folclore. Dizem que os animais veem e pressentem acontecimentos da natureza antes dos humanos. Há ainda um livro de poesias: Momentos.

Moreira Campos participa de cerca de catorze antologias, entre nacionais e estrangeiras. Suas obras já foram traduzidas para o francês, italiano, inglês, alemão e hebraico. Foi membro da Academia Cearense Letras, da Academia Cearense de Língua Portuguesa e Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará; foi agraciado com diversos prêmios e comendas ao longo de sua existência. O escritor e poeta faleceu em Fortaleza, no dia 6 de maio de 1994, aos 80 anos de idade.



Dizem que os cães veem coisas
(conto)

Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. Ninguém lhe ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiquíssima, atual e eterna, com a sua cara de máscara. Moldada em gesso? Apenas uma presença, porque pousou como uma sombra. Mas por um fragmento de tempo, um quase nada, reinou entre todos um silêncio largo, que se estendeu pelo vasto terreno murado da mansão ensombrada pelas árvores, dominou a enorme piscina e emudeceu as próprias crianças pajeadas pelas babás de aventais bordados, e vejam que as crianças são indóceis.
              Um presságio.
              Fragmento de tempo apenas, porque o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da piscina com o copo de uísque na mão. Espadanou água por todos os lados, a piscina transbordou. Muitos se molharam, outros saltaram da cadeira de lona.
              - Bruto! – disse alguém íntimo, sem que ele se aborrecesse, bêbado.
              A onda de água despejou-se sobre Ela, que não se moveu: era trespassável e transparente. Floco de névoa pronto a esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum ricto. Apenas parecia consultar no pulso um relógio invisível, para marcar o tempo. O homem de ventre enorme já estava à beira da piscina, gotejante e trôpego, para uma nova dose de uísque, os dedos graúdos catando no balde os cubos de gelo. Mulheres seminuas, o cordão do biquíni, as nádegas reluzentes de sol e gotas d’água. As rodas, as conversas, os garçons que circulavam, as bandejas de salgadinhos.
              Uns óculos escuros sofisticados no sutiã mínimo:
              - Por favor.
              O garçom atendia, solicito, perdendo os olhos ávidos nos seios mal contidos, oferecidos e inatingíveis.
              - Obrigada.
              O garçom mantinha a dignidade, ereto. A menina chegou e segurou a mãe pelo queixo:
              - Mãe-ê, quero uma Coca-Cola.
              A mãe não lhe dava atenção em flerte com o recente campeão de vôlei, uma estrutura de tórax (a mãe da menina contrariava-se apenas com o tufo de pelos que ele tinha no peito, quase imoral). A menina impacientava-se:
              - Mãe-ê, uma Coca-Cola.
              - Deixa de ser chata!
              O campeão levantou-se para apanhar o refrigerante. Em roda mais distante conversavam os homens graves: a última medida do governo, a crise econômica.
              - O país vai à bancarrota.
              - Vai o quê?
              - A bancarrota.
              - Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra.
              - Mas vai.
              Aceitava-se a bancarrota sem muita convicção. Na grande varanda, as senhoras grisalhas e indesnudáveis, pulseiras tilintantes na flacidez dos braços, discutiam os novos valores morais e comentavam o recente desquite.
              - A menina dela não tem um ano de casada.
              - É a segunda que se separa.
              - Como?
              - A segunda.
              Aniversário da dona da mansão, que se acompanhava ao violão com graça, aplaudida pelos que estavam em volta. O garçom (ou maitre, porque era solene) curvou-se ao seu ouvido. Ela se livrou do violão, levantou-se e bateu palmas chamando todos para o almoço à americana, as mesas sob as árvores. Cada um apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cedeu lugar a umas nádegas rijas, cortadas sempre pelo cordão do biquíni:
              - Faz favor.
              - Obrigada.
              Os cães de raça latiam e uivavam desesperadamente nos canis (e dizem que os cães veem coisas). Foi preciso que o tratador viesse acalmá-los, embora eles rodassem sobre si mesmos e rosnassem. A distância, a piscina quase olímpica, agora deserta: toalhas esquecidas. O vidro de bronzeador, o cinzeiro sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro marcadas de batom.
              As filas. Alguém tangeu o gato que lutava com um pedaço de osso. Lenita fez o prato do marido, preparou também o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se lembrou do filho:
              - Cadê o Netinho?
              Certa angústia na voz. Chamou o marido, gritou pela babá, que se distraía com as outras na varanda. Olhos espantados e repentino silêncio talvez maior de qualquer outro. Refeições suspensas, uma senhora mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam segurar Lenita. Ela se desvencilhava:
              - Cadê o Netinho? Cadê?
              As águas da grande piscina eram tranquilas, apenas levemente franjadas pelo vento. Boiava sobre elas uma carteira de cigarros vazia. Mas a moça que se aproximava parecia divisar um corpo no fundo, preso à escada. Voltaram a afastar Lenita, o marido a envolveu nos braços possantes, talvez procurando refúgio também. O campeão de vôlei atirou-se à piscina e veio à tona sacudindo com a cabeça os cabelos longos: trazia sob o braço um corpo inerme, flácido, de apenas quatro anos e de cabelos louros e gotejantes.
              O médico novo, de calção, tentou a respiração artificial, e boca-a-boca (os lábios de Netinho estavam arroxeados), e levantou-se sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita soltou-se e agarrou-se ao filho:
              - Acorde, acorde! Pelo amor de Deus, acorde?
              Conseguiram afastá-la mais de uma vez, quase desmaiou. A amiga limpava-lhe com os dedos a sobra de farofa que se grudava ao seu rosto. Os cães de raça voltavam a latir desesperadamente, e dizem que os cães veem coisas.
              Lenita ficou para sempre com a sensação do corpo inerte e mole entre os braços. Uma marca, uma presença, que procurava desfazer com as mãos. Cabelos louros e gotejantes. Às vezes, ela despertava na noite:
              - Acorde, acorde!
              A presença também daquele instante de silencio que pesara sobre a piscina. Um pressentimento apenas? Precisamente o momento em que Ela chegara, transparente e invisível, e se sentara  à beira da piscina, cruzando as pernas longas, antiquíssima, atual e eterna.

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Fontes: 
CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.
Roteiro Sentimental de Fortaleza/ Depoimentos de História Oral de Moreira Campos, Antonio Girão Barroso e José Barros Maia/ Coordenadores: Simone de Souza e Sebastião RogérioPrefácio de José Carlos Sebe B. Meihy; transcriadores: Oswald Barroso, Caterina de Saboya Oliveira e Sebastião R. Ponte. Fortaleza: UFC-NUDOC/SECULT-CE, 1996.


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