Nos anos 40, aportou em Fortaleza um poeta e
declamador de nome Eurícledes, vindo de Brejo das Freiras, na Paraíba, trazido
pelo também poeta Rogaciano Leite. Tinha uns 23 anos de idade, estatura baixa,
branco, magro, voz um tanto rouca. Boêmio e aventureiro, chegou sem um vintém,
confiado apenas no seu talento.
Em Fortaleza passou a viver do jornalismo e das
demonstrações que executava nos recitais, mas o que arrecadava era tão pouco
que mal dava para sustentar suas bebedeiras e as três carteiras de cigarro que
fumava diariamente. Dormia nas dependências do jornal Gazeta de Notícias, em
cima das mesas ou das bobinas de papel.
Aos domingos, frequentava o Violão Clube, uma
associação de boêmios seresteiros que se reunia nos altos do café do Zé
Cavalcante, na Rua Senador Pompeu. Poeta espontâneo, era o espetáculo numa mesa
de bar ou numa reunião, fazendo versos de improviso ou recitando qualquer autor
nacional, desde que fossem versos de apelo direto. Poesia para ele tinha que
ter rima ou, pelo menos, ritmo e cadência. Bebia cachaça, tirando gosto com
cajá ou pitomba.
Era impressionante como conseguia ser escutado
atentamente num boteco, recitando poemas, até por pessoas sem nenhum
embasamento literário; já os boêmios artistas, que também faziam versos,
ficavam extasiados diante do seu show, não se atrevendo a interrompê-lo. Certa
vez desafiou Rogaciano Leite a repartir com ele um recital de improviso no Teatro
José de Alencar, e este recusou, declarando-se incapaz de competir com o amigo.
Eurícledes conseguia compor um soneto de métrica perfeita, sobre qualquer tema
proposto, de improviso.
Mas o momento maior de Eurícledes Formiga eram os
recitais em que demonstrava sua prodigiosa capacidade de memorização. As
testemunhas declaravam que o que viram o poeta fazer era inacreditável. Coisa
do diabo. Ou um milagre de Deus.
Formiga abria o espetáculo com um poema de sua
autoria. Já ganhava a plateia. Pedia em seguida, que citassem um poeta de
língua portuguesa, qualquer um, e pedissem um poema. Obtido o título,
declamava-o na hora, com todos os pontos e vírgulas. Entrava pela poesia
popular, as pelejas do Cego Aderaldo, os motes mais interessantes dos desafios
famosos. Depois, pedia que lhe dessem temas para improvisar, contava histórias
de Lampião. Sabia todas as façanhas do célebre cangaceiro.
A assistência ficava boquiaberta, mas o talentoso
Formiga não tinha chegado ao ponto culminante de sua apresentação. Era a última
parte. Ele solicitava dos presentes, que escrevessem uma produção da autoria
própria, podia ser um soneto, a letra de uma música, de preferência inéditos, e
numerassem todas as palavras da composição (enquanto escreviam, um músico
desenvolvia um número ao piano ou ao violino).
Quando o primeiro aprontava seu material, Formiga
pedia que lesse, de viva voz, uma única vez, o texto produzido. Concentrado, de
olhos fechados, ele ouvia atentamente. Terminada a leitura, repetia o que
ouvira, palavra por palavra, imitando inclusive, a entonação do autor. Mas ele
não terminara. Para espanto geral, anunciava que iria repetir o texto de trás
para frente, como numa leitura hebraica.
Uma vez a façanha foi executada na Casa de Juvenal
Galeno, com um soneto de Moreira Campos. Os versos tinham sido feitos para sua
esposa Zezé, nos tempos de namoro e nunca tinham sido publicados. Formiga os
recitou pra diante e pra trás, saltando uma linha, saltando palavras, enquanto
Moreira Campos esfregava os olhos, sem acreditar no que estava vendo. Parecia
uma mágica.
De Fortaleza, Formiga mudou-se para a Bahia. Depois para o Rio
de Janeiro. Com a construção de Brasília, mudou-se para lá; depois obteve um
cargo importante na Justiça Federal (era formado em Direito) e mudou-se para
São Paulo.
Às vésperas da inauguração de Brasília, o Presidente
Juscelino reuniu um grupo de amigos numa ilha do Rio de Janeiro para dividir
suas emoções e expectativas. Aproveitou para apresentar em primeira mão, o
discurso que faria na ocasião e pedir opiniões. A bela peça oratória fora
redigida pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, que era o redator-fantasma de
JK.
Um amigo comum levara o Formiga e o apresentara ao
presidente como um “poeta do Nordeste”. JK dramatizou a leitura, como se já
estivesse no momento solene da inauguração da nova capital. E quando terminou,
quis saber a opinião dos amigos.
Formiga, já instruído pelo amigo, pediu a palavra.
Considerava aquele um belo discurso. Só que o texto já era do conhecimento
público, pois circulava há mais de uma semana entre intelectuais do Rio de
Janeiro e São Paulo. E tanto era verdade, que ele, Formiga, iria ler naquele
instante a cópia que trazia. E tomando uma folha de papel em branco, que fingia
ler, passou a recitar: “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se
transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma
vez sobre o amanhã do meu país, e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável
e uma confiança sem limites no seu grande destino...”
O presidente JK estava mudo de espanto e decepção.
Então o patife do Schmidt o traíra vergonhosamente? Agora não poderia mais
pronunciar aquele discurso! Quando a situação começava a se tornar
constrangedora, o amigo do Formiga contou tudo. O poeta era um gênio da memorização.
Não vira o discurso antes, decorara-o enquanto era lido pelo presidente.
Juscelino suspirou aliviado, embora ainda um tanto
incrédulo do que acabara de ouvir. Eurícledes Formiga passou então a demonstrar
sua capacidade e deu um espetáculo, sendo testado de todas as formas. Leram
vários textos, poemas e até memorandos, e ele, tranquilo, repetia na íntegra.
Ganhou, na hora, o presidente. Tornou-se seu amigo e
companheiro de viagens, pois JK costumava pregar peças em seus amigos de Minas.
Passou a andar com o Formiga a tiracolo para armar situações semelhantes a que
tinha passado. Depois deu-lhe um cargo na Justiça Federal.
Um dos amigos das antigas foi um dia a São Paulo para
um tratamento de saúde e, casualmente, foi avistado pelo Formiga na rua. Reconhecendo
o velho amigo dos tempos de Fortaleza, gritou do seu carro chamando-o pelo
nome: “Murici, seu velhaco, o que fazes em São Paulo?”
Depois dos abraços, foi levado no Cadilac do velho
parceiro de farras no Curral das Éguas, para sua residência, um bairro de
elite. Era uma mansão, os filhos distintos, a bela esposa, a piscina, a criadagem.
O homem era rico. “E os versos, Formiga, como vão os versos? – estão fracos e
raros, meu amigo. Poeta só produz com talento quando passa fome.
Eurícledes Formiga morreu aos sessenta e poucos anos
em 1983. Um câncer na laringe, por excesso de poesia, cigarro e bebida; ou devido a um problema cardíaco, segundo outra versão.
Extraído do livro
Sábado – estação de viver
De Juarez Leitão
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