terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A iluminação e a escuridão das ruas

 

Numa cidade que contava com a intensa iluminação e constante presença do sol, quando este desaparecia, a população sofria com a escassez de iluminação, e a escuridão imperava nas ruas de Fortaleza. Seguindo uma tradição que então impregnava o imaginário da Europa moderna, a noite era considerada "amiga da maldade, companheira de Satã e de seus malefícios".



Praça do Ferreira, fins do século XIX. Ao fundo, o Café Java. (Foto Arquivo Nirez)

Aliados a esta tradição havia o temor que faziam da iluminação um tema tratado não apenas como modernidade para a cidade e sim como matéria de segurança. Mas a preocupação com a segurança noturna da cidade veio de maneira tardia. Somente no ano de 1838 é que foram instalados cinquenta lampiões para a iluminação pública. O encarregado da aquisição foi o comerciante Martinho Borges, que enviaria os lampiões diretamente do Rio de Janeiro, do mesmo feitio e construção que os usados naquela cidade.

O montante de recursos destinados à iluminação da cidade, 2:000$000, foi supostamente quase todo gasto na aquisição dos lampiões e suas ferragens. Com o desejo de completar a iluminação, Manoel de Sousa Mello solicitava a liberação de verba para compra de azeite – combustível fundamental para efetivação das luminárias.

A opção pelo azeite de peixe como combustível, acompanhava, àquela época, uma tendência nacional. Cidade como o Rio de janeiro já industrializava a extração do óleo de baleia, comercializado para uso nos lampiões de óleo. Na costa do Ceará, teria ocorrido a dizimação das baleias e do peixe-boi a partir do século XVIII, abatidos para o consumo da carne e usados na produção de óleo, consequência da atividade predatória dos corsários e dos Tremembés, índios célebres pela ferocidade e que eram hábeis pescadores, o que se leva a deduzir que o azeite usado na iluminação de Fortaleza era importado de outros Estados. O óleo de baleia, aqui chamado de azeite de peixe,  gerava uma luz estável e brilhante, embora produzisse muita fumaça. O Azeite de peixe foi utilizado também como argamassa na construção civil. 



O prédio da antiga alfândega de Fortaleza,  teve projeto de José Gonçalves da Justa, execução e obras de Tubias Laureano Figueira de Melo e Ricardo Lange, que utilizaram pedras e argamassa feita de óleo de peixe e areia. (Foto Arquivo Nirez)

Em 1839, a iluminação ainda era uma expectativa: os lampiões adquiridos no Rio de Janeiro chegaram e foram fixados nas ruas, porém não funcionavam. O motivo era a falta de quem se encarregasse da iluminação, pois a quantia destinada ao prestador do serviço era ínfima e não atraía nenhum interessado. A sugestão do presidente da província João Antônio de Miranda, era mandar iluminar sem arrematação, pois esse empreendimento não atrairia nenhum investimento, por não permitir maior especulação.

Em 1841, ou seja, três anos depois da aquisição dos lampiões a situação da iluminação da cidade continuava delicada. O orçamento da província havia destinado 4:000$000 para o fornecimento de  azeite de peixe – o dobro do utilizado para aquisição dos candeeiros. Como não pareceram licitantes, o fornecimento poderia ser por empreitada. O único que se apresentou foi José Teixeira Pinto, que ofereceu 1700$000 por semestre. O governo indeferiu a proposta, por achar que o candidato não tinha condições de cumprir o acerto.



representação da troca de óleo dos lampiões. (Tela de Debret) 

No mesmo ano, diante das restrições orçamentárias, o governo decidiu eliminar as verbas que seriam destinadas à iluminação. Mais tarde, o assunto voltava a ser matéria de discussão na Assembleia, mas não para sugerir novos investimentos ou a necessidade de expansão do serviço, mas para examinar proposta do presidente da província, de suspensão das despesas com os lampiões, considerando a situação delicada do erário público. De acordo com aquele administrador, fazia-se necessário economizar os gastos com a iluminação não só, porque não era considerada prioridade, como era muito onerosa aos cofres provinciais.

Assim, mesmo depois da década de 1840, Fortaleza não conhecia um sistema competente e continuado de iluminação pública baseado em lampiões de azeite. As noites eram longas e assustadoras, o que imprimia uma rotina de recolhimento cedo, na qual os moradores precisavam se recolher às suas casas e improvisar a iluminação de suas moradas, na maioria das vezes, feitas por lamparinas e velas de cera de carnaúba.



primeira concessionária para exploração da iluminação pública da cidade, a companhia inglesa Ceará Gas Company (foto do livro A História da Energia no Ceará)  

A tão esperada iluminação das ruas só veio a se concretizar alguns anos depois e foi iniciada em 01 de março de 1848. O trabalho foi contratado com Vitorino Augusto Borges, que se obrigava, entre outras coisas, a instalar 44 lampiões, que deveriam ser mantidos sempre limpos e brilhantes, e a conservá-los acesos entre as 6 horas da tarde até o raiar do dia seguinte, ou até que saísse a lua.

O privilégio da concessão foi transferido, com autorização do governo para a companhia inglesa Ceara Gaz Company Limited. No mesmo ano de 1848, foram colocados nas ruas de Fortaleza 25 lampiões pendentes com iluminação de azeite de peixe. Desse período de experiências inovadoras na cidade, fica também a lembrança de um homem simples, o primeiro acendedor de lampiões a percorrer as ruas da cidade, na tarefa diária de acender e apagar os pontos de iluminação, conhecido na memória da cidade pela alcunha de Chico Lampião.

 



Nas noites de lua os lampiões não eram acesos, o que levou alguns cronistas da época a denominarem o acordo de "contrato com a lua". Mas a prática não era só dos cearenses. Em alguns dos outros Estados, havia cláusula contratual prevendo o não acendimento dos lampiões em noites de luar. 

Fontes:

Entre o Futuro e o Passado – aspectos urbanos de Fortaleza (1799-180), de Antônio Otaviano Vieira Jr. 

História da Energia no Ceará, de Ary Bezerra Leite

Fortaleza Velha, de João Nogueira

 

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