Festas extraordinárias aconteceram em Fortaleza pela passagem do Século de 31 de dezembro de 1900 para 1° de janeiro de 1901.
Praça General Tibúrcio, apos a grande reforma promovida pelo prefeito Ildefonso Albano, na segunda década do novo século. Na foto identificamos a Alfaiataria Francesa, pertencente a a Gervásio Gurgel do Amaral. (arquivo MIS)
O recenseamento do ano 1900 apontava que Fortaleza contava com 48.369 moradores. E o minuto divisor dos dois séculos, nas comemorações do Ano Novo de 1901, encontrou a cidade de joelhos, rogando aos céus no discurso de Farias Brito.
É que o Centro Literário havia preparado o ambiente, para a festa da virada do século com uma sessão memorável. O presidente Pápi Junior era o mentor daquela ornamentação e daquela alegre comemoração. Também havia sido levantada na Praça da Estação, a tribuna de onde iria proferir sua oratória.
Rua Major Facundo, trecho Praça do Ferreira, final do século XIX (arquivo Nirez)
Fortaleza abria a vida ao século que chegava, na esperança de superar as tantas dores sofridas no ano recém findo, cujos derradeiros lamentos ainda se ouviam nos degradantes campos de concentração de flagelados. A seca dos dois zeros fora mais uma conta aumentada ao rosário de estiagens que atormentam desde sempre as terras cearenses, e a gente esquálida do sertão, expulsa de suas fazendas, ainda marcava tristemente o areal das ruas de Fortaleza com os rastros do seu infortúnio.
Mas a cidade já se acostumara a esse cenário, como um tributo a ser pago pela sua pobreza, sua simplicidade provinciana de praças sem jardins, monótonos quadros de pastagem do gado à solta, de ruas pavimentadas de capim-de-burro, quase bocejando numa existência morna, à espera da ação de governantes acomodados às bonanças de uma oligarquia, respaldado pela indiferença da população.
O Velho Babaquara, o Dr. Nogueira Accioly, havia firmado seu prestígio na chamada Política dos Governadores, adotada pelo presidente Campos Sales, com o intuito de garantir a restauração das finanças nacionais, trocando o apoio dos Estados no Congresso Nacional, pelos favores e benefícios do Governo Central.
O Intendente Guilherme Rocha (1892-1912)
Nesse clima de esterilidade, entretanto, havia atuação producente do administrador Municipal Guilherme Rocha, que exercia o cargo de intendente desde 1892. Utilizando bilhetes de crédito, popularmente chamados de borós, construiu em 1897, o Mercado de Ferro para a venda de carnes e peixes, importante melhoramento que veio sanear o sistema primitivista com que se efetuava aquele comércio. Considerado um dos melhores do Brasil, o Mercado de Ferro ficou sendo uma das vaidades da capital.
O Mercado de Ferro foi construído com a utilização de borós, vales emitidos como troco e aceitos como moeda oficial pelo comércio de Fortaleza. (foto: arquivo Nirez)
Em 1902 e 1903 o mesmo Intendente inaugurou os belos jardins 7 de Setembro na Praça do Ferreira, Nogueira Accioly na Praça Marquês do Herval e Pedro Borges, na Praça Caio Prado, o que melhorou sensivelmente, a aparência da parte mais central da cidade.
O Fornecimento de Água
A maioria dos serviços essenciais, não estavam implantados como o abastecimento de água . O precioso líquido continuava sendo retirado de cacimbas escavadas nos quintais das casas e elevada por moinhos de vento, a rodarem desesperadamente, dia e noite. A água potável, para quem não tinha cacimbas e cata-ventos, era distribuída nas residências em cargas de quatro ancoretas, transportadas por jumentos.
Na Praça Marquês de Herval, uma cacimba e um catavento, cenário que se multiplicava na Fortaleza do início do século (arquivo Nirez)
As fontes do Villar, na Rua da Assembleia (atual São Paulo), do Zuca Acióli na Cachorra Magra (Rua Marechal Deodoro) e o poço da Prefeitura na Praça Benjamin Constant, eram os maiores fornecedores do produto.
O Esgotamento Sanitário
Quanto ao esgotamento sanitário o que havia era um processo muito primitivo, grosseiro e inconveniente. A maioria das casas mantinham fossas no quintal, às vezes simples buraco aberto no chão, outras um barril ou um caixote enterrado, servindo de depósito aos dejetos domésticos. De tempos em tempos, mudava-se o local do depósito, aterrando-se o anterior.
Noutras casas, as mais ricas, adotavam-se cloacas móveis. Cubos de ferros ou barricas, com capacidade média de 50 quilos, eram conservados em locais discretos e neles depositados os dejetos por três, cinco, até mais dias. Quando ficavam repletos, eram levados à praia e o conteúdo era jogado no mar.
O sistema de remoção e o seu descarte, eram veementemente rejeitado pelos moradores das ruas por onde passava esse cortejo do saneamento aconselhado por nossa ciência oficial. Os condutores dos barris, recrutados na escória da sociedade, pela natureza repugnante do serviço, eram outros agentes de infecção da cidade. Imundos, asquerosos, mostravam nas vestes os traços do seu ofício.
Não raro, por embriaguez ou pelo mau uso dos vasos, despejavam os excrementos nas ruas, onde permaneciam dias e dias, apenas cobertos por tênue camada de areia, sem que a autoridade sanitária mandasse proceder à limpeza.
Desses pobres carregadores de cartolas ou camburões, como eram chamados aqueles vasos, alguns ficaram ligados à crônica da cidade, notadamente o Romão e o Sabão-Mole.
O Romão era um antigo escravo bestializado pela miséria. Imundo, andava meio curvado, apoiado a uma bengala, rosnando sempre nomes feios. Sustentava-se de cachaça e comia vísceras cruas, misturadas com farinha de mandioca, no fundo do seu fétido chapéu de palha.
Quando ferrava no sono em um vão de porta, a mulher e as filhas, que o seguiam à distância, vasculhavam lhe os bolsos em busca dos níqueis e cobres que porventura tivesse sobrado da aguardente.
O concorrente do Romão no sórdido oficio, era o Sabão-Mole, mestiço, alto e escavado. Andava em companhia de uma velha, que parecia a sua sombra. Um dia a velha o abandonou, e Romão passava os dias solitário, a indagar pelas portas das casas:
– tem limpeza hoje, freguesa?
Juntava-se então um bando de moleques atrás dele, gritando:
– Sabão Mole, cadê a velhinha?
Sabão Mole esgrimia furioso o cajado de jucá e passava tremendas descomposturas em seus perseguidores. Era um mestre no baixo calão. As famílias retiravam-se das janelas, batendo vidraças. Às vezes até a polícia era chamada.
Quando atravessava a Praça do Ferreira, então vasto areal emoldurado de árvores antigas, com um cacimbão de pedra de Lisboa ao meio, e um café, um quiosque de madeira a cada canto – O Java do Ovídio Leopoldino, o Iracema, do Ludugero Garcia, o do Comércio do Luís Moreira e o Elegante do Bonates – Padre Macaíba, sacerdote virtuoso, mas brincalhão, brada com voz esganiçada, emboscado na Farmácia Pasteur do Eduardo Bezerra:
– Sabão Mole, cadê a velhinha?
O mísero volta-se sapateando:
– Estou conhecendo esta voz... É do Padre Macaíba... Olhe seu padre, só não digo que está em tal lugar (e soltava o palavrão) porque o senhor é padre, senão eu dizia...
Padre Macaíba, oculto atrás da porta da farmácia, rí às bandeiras despregadas.
Os Transportes
charge do Jornal O Malho, criticando os transportes de Fortaleza
O serviço de transportes ainda se fazia com os mesmos bondes de tração animal, correndo nas mesmas linhas e apresentando as mesmas notas pitorescas e também a mesma utilidade. Os simplórios tilburis do francês Henrique Golignac, anunciados como carruagens de luxo, não resolviam nada, porque mais se prestavam para atos de casamentos, batizados e passeios domingueiros.
A Iluminação
Rua Floriano Peixoto, e um belo lampião de gás, com a parte superior esmaltada de branco para melhor refletir a chama, que ficou muito mais brilhante. (arquivo Nirez)
Era a mesma da época de sua inauguração – a gás carbônico. Apenas mais ampliada, pois agora atingia mais ruas. Luz boa distribuída em combustores de ferro com mangas de vidros inteiriças, com a chama a jorrar do bico em forma de leque. Depois foi mudada a cabeça dos combustores por outra de quatro faces. A iluminação residencial fornecida pela mesma companhia do Gás teve idêntica evolução. As casas mais ricas ostentavam lustres com pingentes de cristal, muitos, verdadeiras obras de arte.
O mais era aproveitar as diversões populares – as quermesses, os congos, os fandangos, as pastorinhas, os circos, o bumba-meu-boi, as festas religiosas e as lapinhas do Natal. Socialmente singelos, porém distintos, os hábitos e o lazer na velha Fortaleza.
fonte:
Raimundo Girão
5 comentários:
A primeira forto na verdade mostra a praça Capistrano de Abreu. Não é a Praça do Ferreira.
adquiri a foto no MIS e dava como indicação a Praça do Ferreira, 1913. Não tenho nenhum outro parâmetro de comparação, pois que não vi esta foto em nenhum outro lugar além do blog aqui. Agradeceria se me dissesse como chegou a essa conclusão.
Tirando a teima com o mestre Nirez e fazendo a correção. Na verdade trata-se da praça general tibúrcio, depois da reforma feita pelo prefeito Ildefonso Albano. Também não é de 1913, mas posterior a 1914. obrigada pela dica.
Fátima Garcia, qual a obra do Raimundo Girão que encontro essa história dos dois carregadores de camburões: Romão e Sabão Mole?
Oi Hilário, o livro é
Geografia Estética de Fortaleza, no capítulo "300 anos depois"
abs
Fátima
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