quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Os Consulados de Fortaleza no Início do Século XX

O Consulado da China, era uma república de estudantes, inaugurada na primeira década do século XX,   situada na Rua Major Facundo entre a Rua Pedro I (antiga rua de D. Pedro) e o Boulevard Duque de Caxias. 
A casa que abrigava a república tinha duas janelas voltadas para a rua e o acesso era por um portãozinho lateral de ferro batido. O imóvel novo e muito limpo era de propriedade do negociante Alberto de Sá Ferreira. 


Rua Major Facundo em 1900


As acomodações eram regulares: sala de visitas, dois quartos internos, sala de jantar, um quarto com saída independente, cozinha, banheiro e, no pequeno quintal, com a metade de uma cacimba que fornecia água para o imóvel.
O Consulado da China foi fundado pelo escritor (então estudante de Direito) Gustavo Barroso junto com um grupo de amigos, uns estudantes, outros comerciários e um professor de francês. Entre as duas janelas, foi colocada uma placa oval, de fundo amarelo, com um dragão imperial e umas letras esgalhadas imitando uma escrita chinesa. Embaixo, a tradução: Consulado Imperial da China. 


Rua Major Facundo em 1928

Dominando tudo, um mastro, onde aos domingos tremulava a bandeira chinesa.  Na organização interna do Consulado, reinava a harmonia. O mobiliário era composto de redes, baús, mesinhas de estudo e cadeiras de todos os tipos. A sala de visitas tinha cortinados de cetim vermelho, uma mesa grande e uma estante de  livros vindas do sírio do Benfica. 
Sobre a estante um busto de Napoleão, habilmente surrupiado da Biblioteca Pública. Em frente um troféu de bandeiras e duas velhas espadas de cavalaria do Império com um letreiro: Salão Bonaparte

Ali eram realizadas todos os meses,  pelo menos uma conferência cultural. As atas e editais eram publicados pelo Jornal do Ceará. Nos dias em que não havia assuntos sérios a serem tratados, o Consulado era foco de divertidas brincadeiras. 
Se chovia durante a noite os moradores do consulado da China tapavam com uma esteira o bueiro do quintal por onde se escoavam as águas pluviais do quarteirão, deixando a Rua Major Facundo totalmente inundada. As águas ali eram abundantes, por ter sido leito do riacho que, vindo da Praça Visconde de Pelotas (atual Clóvis Beviláqua), se dirigiam para a Lagoa do Garrote, no Parque da Liberdade (atual Cidade da Criança), para daí desembocar no Riacho Pajeú, não muito distante.

Cidade da Criança

Não dava para atravessar a rua alagada. Os moradores do Consulado da China, de calções de banho, transportavam às costas, os transeuntes, dum lado para o outro, a duzentos reis por viagem.  O apurado pagava uma ceia de mortadela com sardinha e vinho Colares. 
Quando era noite de luar não se acendia a iluminação pública. Às vezes nuvens espessas cobriam a face da lua e a cidade mergulhava na escuridão, do que se aproveitavam os hóspedes do Consulado para saírem nus, a duelarem com as velhas espadas do império em plena rua. 
Ao ouvirem o tinido das espadas, a ronda de cavalaria vinha a todo galope. Os rapazes se escondiam rapidamente em casa. Os soldados examinavam os arredores silenciosos, mas não viam nenhum movimento nem na rua, nem nas casas, tudo parecia adormecido. Iam embora meio desconfiados e mal se afastavam, recomeçava a luta furiosa. 
Os soldados voltavam às carreiras, as ferraduras dos cavalos chispando nas pedras do calçamento. Novamente não encontravam ninguém. Assim aquele trecho da Rua Major Facundo ficou com fama de mal assombrado. 


Gustavo Barroso, fundador do Consulado da China 

Logo adiante, no centro da arenosa Praça do Livramento (atual Praça do Carmo), erguia-se uma igreja inacabada, envolta em andaimes. Os rapazes do Consulado saíam carregando uma trouxa de roupas subiam os andaimes abandonados, um vestido com uma velha fantasia carnavalesca de almirante e outro enrolado em um lençol. Os demais se escondiam com as mãos cheias de pedaços de tijolos e telhas. Na noite tranquila, o almirante espectral surgia lá em cima, perto da torre, tendo ao lado o vulto branco. 
Se algum passante era avistado nas proximidades, prolongados assobios atraíam sua atenção para o alto da igreja. Levantava os olhos e dava com aquela cena inesperada, ao mesmo tempo em que choviam pedradas. 
Um dia “A República” publicou uma nota enérgica, chamando a atenção da polícia para o fato, já presenciado por diversas pessoas.  Os andaimes foram ocupados pela polícia. O almirante, o fantasma e as pedradas recolheram-se ao mistério de onde haviam saído. 
Pela cidade apareceram outros Consulados: o primeiro, numa casa da Rua Formosa (Atual Barão do Rio Branco), o Consulado do Japão; depois perto da Praça do Ferreira, o Consulado do Turquestão;  na  Rua Senador Pompeu, junto à Igreja de São Bernardo, o Consulado de Hotentócia


Rua Barão do Rio Branco, a antiga Rua Formosa

Todas essas repúblicas se ligavam entre si, por uma espécie de acordo tácito e serviam para esconder e dar fuga aos perseguidos da polícia, que costumava procura-los e  espanca-los à noite, nas ruas mal iluminadas de Fortaleza.  Do consulado do Japão, graças a cacimba existente no quintal, passava-se facilmente por cima do muro para o da China e vice-versa. Assim, entrava-se pela Rua Formosa e saía-se pela Rua Major Facundo, o que era desconcertante para os truculentos policiais.


fotos: Arquivo Nirez
Extraído do livro  de Gustavo Barroso.

Um comentário:

Cláudio Santos de Almeida disse...

Que texto saboroso. Obrigado senhora Fátima.