sábado, 14 de maio de 2011

Os Tipos Populares de Fortaleza

Na Fortaleza antiga, em que não havia a correria que caracteriza os tempos modernos,  os chamados tipos de rua alimentavam o humor e preenchiam a ociosidade dos frequentadores das praças do centro. Ainda garantiam a diversão de uma plateia desobrigada do preço das entradas, já que representavam seu papel  no palco livre das ruas: a praça era seu auditório e sua plateia. 

O coreto da Praça do Ferreira serviu de tribuna para muitos tipos estranhos externarem suas esquisitices. (arquivo Nirez)

Fortaleza sempre esteve cheia de tipos curiosos capazes de chamar a atenção até dos mais distraídos. Suas esquisitices,  suas vestimentas, suas ações e reações ficaram gravadas na crônica da cidade.  
Um desses  tipos estranhos era o Tostão:  moço, coberto de molambos, com inequívocos indícios de retardo mental,  pedia uma moeda de tostão aos passantes. A sua peculiaridade era recitar um certo alfabeto ilustrado, uma ilustração obscena, aprendida a custa de muita repetição devido à sua mente falha.  Só lhe davam a moeda se desfiasse o abc de sujeiras, o que fazia maquinalmente na expectativa de ganhar tostões.
Antes do Tostão havia a Micaela, negra retinta, varapau de quase dois metros de altura, com passo de soldado alemão, vestida de preto e saia arrastando no chão.  Andava nas ruas pelo calçamento e atravessava as praças em diagonal. 
Empunhava um grosso porrete, também preto, e a cada esquina parava, olhava para todos os lados e depois seguia seu caminho. Diziam que era homem disfarçado de mulher, que botava feitiço, mas a Micaela que causava pavor a tanta gente, era tão somente uma pobre criatura que morava sozinha em uma palhoça para os lados do Prado Velho e só saía a rua para revolver as latas de lixo em busca de comida.
Mulheres tipo popular foram também a Teodora, a Chica Pinote, a Iaiá-tem-ovos, a Siri, a Mucura, a Ferrugem, e a Mimosa, sempre alvo dos insultos da molecagem e sempre prontas  a revidá-los com as únicas armas de que dispunham: os gestos obscenos e as pornografias de arrepiar. 
Outra personagem bastante conhecida era a Noiva do Tempo, que estava convencida de haver recebido por herança uma grande fortuna e vivia nos bancos procurando recebe-la.   
Louco, até as reações mais violentas, era o Tertuliano, pequeno comerciante retalhista que, intimado um dia a comparecer à Delegacia de Polícia, resistiu ferozmente sendo ferido e ferindo os soldados que o quiseram prender. 
Era uma vítima do baixo espiritismo e os sintomas da anormalidade psíquica fixaram-se no fervor religioso a ponto de adotar o hábito de frade, deixar crescer a barba e assim vestido andar pelas ruas conduzindo um registro do Coração de Jesus e um exemplar da Bíblia.
 Os seus sermões  tinham como resposta a galhofa da canalha que o ouvia, provocando-lhe reações furiosas ou, outras vezes, piadas espirituosas. 

O cruzeiro da Sé era um dos palcos favoritos para o fanático Tertuliano (arquivo Raimundo Girão) 

Ia diariamente às igrejas  e gostava de postar-se no Cruzeiro da Sé, dizendo-se crucificado.  Exigia ser chamado de São Tertuliano, e aos sábados, metido em sua exótica indumentária de santo, percorria o comércio, indo de porta em porta, com ares de beato para uns, e com ameaças para outros,  na coleta semanal que ele chamava de imposto celestial. 
Ai,  porém daquele que não contribuísse. Ficava inscrito no livro negro do místico ambulante, que passava a citá-lo de público, em seus sermões diários como um dos candidatos às penas do inferno. 
Outros desses enjeitados da sorte era o Palheta, bêbado que vivia a enganar o próximo, vendendo cartões de rifas inexistentes, entradas de teatro sem valor, bilhetes corridos de loterias.
O Jararaca, o Capitão Pirarucu, o De Rancho fizeram sua temporada. O primeiro, tinha jeito e aparência de doutor em disponibilidade; 
o segundo, embarcadiço, conhecedor de outras terras e outras gentes e por isso era um poço de histórias de mil e uma noites. O Capitão Pirarucu se dizia ex-capitão da Marinha de Guerra, era um velho alto, forte, moreno, de bigodes e cavanhaque, conversador e violonista de mérito indiscutível.  
Era, no entanto, importunado pela garotada, que vendo-0 a perambular pelas ruas, corria no seu encalço gritando Capitão Pirarucu, cadê o Baú! Ao que o capitão aproveitando a rima dava uma resposta de arrepiar.
 O último, o De Rancho era um maníaco das ordens militares. Percorria as ruas acompanhado de uma procissão de moleques, de todas as classes sociais, numa galhofa sem fim. 
O De Rancho reproduzia os tiros e rajadas de metralhadora, numa algazarra atordoante. Velhote, negro, vendedor ambulante corria a cidade a gritar sempre: Preparar! Fogo! Descansar armas! Pra-pra-bum! Ao que juntava os pregões: milho verde! Abacate!  Chamava-se Jesuino Resende, estivera nas lutas de Canudos e veio para o Ceará trazido pelo General Eudoro Correia, antigo diretor do Colégio Militar.
Também marcaram presença nos cenários da Fortaleza antiga as figuras sumamente curiosas do Chagas dos Carneiros, do Manezinho do Bispo, do Pilombeta, do Zé-Levi e do Fabricio.


Chagas dos Carneiros

O Chagas dos Carneiros surgiu em Fortaleza por volta de 1911. Alto, magro, nariz grande e adunco, cego, usava um chapéu de palha e costumava trajar um espalhafatoso camisolão branco que lhe descia até os joelhos.
Carregava amarrados três carneiros pintados de anilina. O primeiro, pintado de azul-claro era chamado de Afonso Pena; o segundo, verde-claro era Rodrigues Alves e o terceiro, pintado de rosa era Campos Sales. Monarquista fanático, essa era a maneira de Chagas dos Carneiros satirizar o regime republicano. Carregava numa das mãos uma vara encerada, cuja ponta untada de breu e carvão quando em contato com a calçada, produzia um barulho onde se podia perceber certas variações musicais. Com esses arranjos, que só ele sabia fazer, construiu uma típica charanga que chamava a atenção de todos. E os numerosos ouvintes lhe enchiam de moedas e cédulas de razoável valor, à sua cuia de esmolas.

Extraído dos livros
Fortaleza Descalça, de Otacílio de Azevedo
Geografia Estética de Fortaleza, de Raimundo Girão. 

2 comentários:

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Fortaleza é mesmo prródiga, em Tipos Populares. Muitos que vc citou aí, nunca tinha ouvido falar.
De todos, o único que conheci foi a Ferrugem.
Que bom que tudo isso foi registrado por nossos historiadores. Tem que se perpetuar, essas histórias tão características de nossa gente...

Boa semana, Fátima

Fátima Garcia disse...

Oi Lúcia,
esses personagens são bastante antigos mesmo, o Otacilio de Azevedo fala em inicio do século, e o Raimundo Girão fala que viveram em épocas diferentes, mas fala das décadas de 30, 40. Essa Ferrugem é mais recente, tem outros cronistas que falam dela, como o Blanchard Girão, por exemplo.
bjs