segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Terço do Cruzeiro

O Cruzeiro da Sé era considerado um dos mais belos do País

Uma velha e tradicional devoção do povo de Fortaleza era observada nas noites de segunda-feira, quando populares acendiam velas votivas e rezavam em silêncio, em frente ao Cruzeiro da Sé. O costume provavelmente começou em 1847, quando Frei Serafim ergueu o Cruzeiro e o rodeou de cancelas de ferro. Inicialmente era muito frequentado, notando-se inclusive a presença de muitas pessoas importantes da cidade, que se juntavam aos populares na oração.
Ainda depois de 1867 os arredores da Sé não eram iluminados ou frequentados: o lugar durante a noite, tinha qualquer coisa de soturno. Os instrumentos da paixão, as frases latinas inscritas no pedestal - Et cancelleis ferreis circumscripsit - a lembrança de Frei Serafim, as almas do longínquo purgatório, a melopéia lúgubre das rezas e a majestade do Cruzeiro, enchiam o espírito simples e devoto dos que ali se reuniam desse pavor secreto e indefinível, que sempre despertam as coisas que as prendem ao mistério e à morte.

Grandiosa e imponente com suas duas torres, altares de talha dourada, imagens trazidas de Portugal, a Sé de Fortaleza foi demolida para que no local fosse erguida a atual catedral (arquivo Marciano Lopes)

Aquele monumento não era somente uma espécie de altar onde se pedia descanso para os mortos e favores para os vivos: também se faziam promessas que não eram dirigidas a nenhum santo, que tinham relação direta com o Cruzeiro.
Certa dama da sociedade, em momento de aflição, fez a promessa de partir de sua casa  de joelhos, rodear o cruzeiro e voltar do mesmo modo, até sua casa, que aliás, não ficava distante.
Atendidas suas preces, a mulher cumpriu religiosamente o prometido.
Apesar do caráter de religiosidade com que se ia ao Terço do Cruzeiro, mais de uma vez serviu para jovens apaixonados, iludirem a vigilância dos pais. Foi assim que certa moça de boa família fugiu dali com o namorado, enquanto os outros rezavam.
Em 1922 era o preto velho André quem tirava o terço das almas, o ofício e a ladainha, cantando com voz forte, de modo a ser ouvido por toda a Praça da Sé, pela Rua das Flores, até além da Rua da Boa Vista. 

Praça da Sé - em primeiro plano os sobrados que contemplavam a matriz. As casinhas vistas na foto eram de taipa, e até serem demolidas há poucas décadas, eram as casas mais antigas de Fortaleza (arquivo Marciano Lopes)

Mas já nesse tempo o Terço havia pedido muito da gravidade e do respeito primitivo. Ali raramente se viam pessoas de melhor condição social, e ainda que várias pessoas do povo  fossem até lá por devoção, muitos o faziam por vadiagem.
Estragavam e perturbavam aquela reunião com chistes e piadas, provocando risadas, para espanto e indignação dos devotos.
Foi em vista do desrespeito que ali reinava que a autoridade competente, resolveu, naquele ano de 1922, acabar com a devoção do Terço do Cruzeiro, restando apenas as velas acesas e a reza silenciosa. Ao tempo em que o velho André ainda cantava, havia contornando o adro da Sé, pequenos muros com assentos de alvenaria, voltados para a igreja.
Pelo mesmo motivo de desrespeito ao lugar, também foram demolidos os muros e um assento que havia por detrás da Matriz.
Pela supressão do terço do Cruzeiro, os tradicionalistas não se queixem do automóvel nem de certas novidades de que está cheia a Fortaleza, mas do “Ceará moleque”, que tudo acanalha e desrespeita.

Extraído da Crônica O Terço do Cruzeiro, de 26 de outubro de 1935, de João Nogueira

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