domingo, 8 de janeiro de 2012

A Vila de Fortaleza no Encontro com o Tempo

Praia Formosa

A história de Fortaleza durante o domínio lusitano, só pelo seu enunciado, já era um problema. Enquanto Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Belém eram cidades, Fortaleza era conhecida como a Vila de Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção. A falta do status de cidade, provavelmente estava ligada a sua importância econômica, política ou estratégica: a vila de Fortaleza não despertava nem atenção nem interesse da Coroa portuguesa.
antigo Trapiche de Fortaleza

A Vila era um lugar pobre. No século XVIII um viajante que aqui desembarcasse encontraria sérios problemas para pisar na vila. Se viesse por mar, que era o mais comum para os que vinham da Europa, iria se deparar com as dificuldades cruciais do desembarque.  Primeiro, porque o porto de desembarque ainda era o da Prainha, situado entre o Centro e a Praia de Iracema.  A embarcação ancorava a uma distância considerável, e o viajante descia para um paquete menor que o conduzia para um ponto mais próximo da praia. Então vinham dois escravos fortes e altos com uma cadeira sobre os ombros, chamada paviola. O viajante sentava na cadeira e os negros transportavam o navegante, desviando das ondas mais rebeldes até a beira da praia.

Rua da Palma
Mas não era o fim dos transtornos. Para alcançar a parte alta da vila, onde ficava o Forte e as principais construções, o viajante tinha que subir por um caminho arenoso – a vila não era pavimentada – com fortes ventos e sol escaldante.

Chegando ao alto, no centro da vila, o viajante poderia encontrar construções rústicas, na maioria de taipa, com algumas edificações em pedra e cal. Os edifícios eram térreos, quase não existiam calçadas, as ruas eram arenosas e entrecortadas de carros de boi que traziam couro, carne e algodão para serem vendidos em Recife.
  
Caso entrasse numa das casas o viajante se depararia com uma mobília escassa, com muitas redes amarradas e poucas cadeiras para sentar. À noite enfrentaria a total escuridão das ruas, pois não havia qualquer tipo de iluminação pública. As casas teriam seus poucos aposentos iluminados por no máximo algumas velas de sebo ou candeeiros de óleo de peixe, o que não tornam o odor agradável.

Travessa da Cacimba (atual Visconde de Sabóia)

Acima de tudo, o viajante encontraria pessoas, das mais diferentes origens e classes sociais, que vinham para a vila por motivos diferentes. Tinha o Manoel Lopes, que no ano de 1749, veio preso de Granja para Fortaleza, por ter sido flagrado em "atos ilícitos" com outro homem, e agora aguardava o veredito dos inquisidores portugueses para sua transferência para Portugal onde seria julgado.

Poderia se encontrar com a menina Angélica, que morava nos arredores da vila, e que em 1794, fora alvo da violência da irmã, pois o marido desta apaixonara-se pelo ar angelical da menina.
Rua da Palma

Encontraria por certo, o Luís Sarmento, homem letrado e secretário do governador da Capitania do Ceará, que no ano de 1803 fora denunciado para a Inquisição, por declarar abertamente que não existia inferno, por confessar seus sentimentos anticlericais, por não ir à missa com frequência e ler livros de filosofia proibidos pelo Tribunal do Santo Ofício.

Poderia ainda conhecer o escravo Thomé da Silva, que na noite do dia 14 de outubro de 1821, por ocasião das comemorações de Nossa senhora da Conceição, diante dos fogos de artificio queimados pelos devotos nas proximidades do Mercado Público, matou a facadas um certo Mathias, por ciúmes de sua mulher.

Praça do Ferreira

O viajante poderia ter conhecido muita gente na vila de Fortaleza, gente que vivia a vila de maneira diferente. Com alegria e com medo, com vergonha e com escárnio, com amor e com preconceito.  E ao final de tantas andanças, depois de conhecer lugares e pessoas de Fortaleza, poderia, no esforço final de sua viagem, se olhar no espelho. E  ver refletido o rosto de cada um de nós cearenses, o rosto do leitor e do autor do artigo, que pode encontrar ou reencontrar a sua cidade, a sua morada através da face silenciosa da história.

Rua Formosa

A cidade antiga é próxima, pois é o lugar que reconhecemos como casa; ou como deveria ser uma Fortaleza. Então temos o nosso encontro marcado com o tempo, o tempo de fazer da cidade o que de melhor seria para cada um de nós; com o tempo de construirmos a cidade que sonhamos e que perdemos. 


fotos do Arquivo Nirez
Extraído do artigo O Encontro Marcado com o Tempo, do professor 
Antônio Otaviano Vieira Júnior
Publicado na Revista Fortaleza – fascículo 1, de 13 de abril de 2006. 

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