Praia Formosa
A história de Fortaleza durante o domínio lusitano, só pelo
seu enunciado, já era um problema. Enquanto Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Belém eram cidades, Fortaleza era conhecida como a Vila de Fortaleza de Nossa
Senhora de Assunção. A falta do status de cidade, provavelmente estava ligada a
sua importância econômica, política ou estratégica: a vila de Fortaleza não
despertava nem atenção nem interesse da Coroa portuguesa.
A Vila era um lugar pobre. No século XVIII um viajante que
aqui desembarcasse encontraria sérios problemas para pisar na vila. Se viesse
por mar, que era o mais comum para os que vinham da Europa, iria se deparar com
as dificuldades cruciais do desembarque.
Primeiro, porque o porto de desembarque ainda era o da Prainha, situado
entre o Centro e a Praia de Iracema. A
embarcação ancorava a uma distância considerável, e o viajante descia para
um paquete menor que o conduzia para um ponto mais próximo da praia. Então vinham dois
escravos fortes e altos com uma cadeira sobre os ombros, chamada paviola. O viajante
sentava na cadeira e os negros transportavam o navegante, desviando das ondas
mais rebeldes até a beira da praia.
Mas não era o fim dos transtornos. Para alcançar a parte
alta da vila, onde ficava o Forte e as principais construções, o viajante tinha
que subir por um caminho arenoso – a vila não era pavimentada – com fortes
ventos e sol escaldante.
Chegando ao alto, no centro da vila, o viajante poderia
encontrar construções rústicas, na maioria de taipa, com algumas edificações em
pedra e cal. Os edifícios eram térreos, quase não existiam calçadas, as ruas
eram arenosas e entrecortadas de carros de boi que traziam couro, carne e
algodão para serem vendidos em Recife.
Caso entrasse numa das casas o viajante se depararia com uma
mobília escassa, com muitas redes amarradas e poucas cadeiras para sentar. À noite
enfrentaria a total escuridão das ruas, pois não havia qualquer tipo de iluminação
pública. As casas teriam seus poucos aposentos iluminados por no máximo algumas
velas de sebo ou candeeiros de óleo de peixe, o que não tornam o odor
agradável.
Acima de tudo, o viajante encontraria pessoas, das mais
diferentes origens e classes sociais, que vinham para a vila por motivos
diferentes. Tinha o Manoel Lopes, que no ano de 1749, veio preso de Granja para
Fortaleza, por ter sido flagrado em "atos ilícitos" com outro homem, e agora
aguardava o veredito dos inquisidores portugueses para sua transferência para
Portugal onde seria julgado.
Poderia se encontrar com a menina Angélica, que morava nos
arredores da vila, e que em 1794, fora alvo da violência da irmã, pois o marido
desta apaixonara-se pelo ar angelical da menina.
Encontraria por certo, o Luís Sarmento, homem letrado e
secretário do governador da Capitania do Ceará, que no ano de 1803 fora
denunciado para a Inquisição, por declarar abertamente que não existia inferno,
por confessar seus sentimentos anticlericais, por não ir à missa com frequência
e ler livros de filosofia proibidos pelo Tribunal do Santo Ofício.
Poderia ainda conhecer o escravo Thomé da Silva, que na
noite do dia 14 de outubro de 1821, por ocasião das comemorações de Nossa
senhora da Conceição, diante dos fogos de artificio queimados pelos devotos nas
proximidades do Mercado Público, matou a facadas um certo Mathias, por ciúmes
de sua mulher.
O viajante poderia ter conhecido muita gente na vila de
Fortaleza, gente que vivia a vila de maneira diferente. Com alegria e com medo,
com vergonha e com escárnio, com amor e com preconceito. E ao final de tantas andanças, depois de
conhecer lugares e pessoas de Fortaleza, poderia, no esforço final de sua viagem,
se olhar no espelho. E ver refletido o
rosto de cada um de nós cearenses, o rosto do leitor e do autor do artigo, que
pode encontrar ou reencontrar a sua cidade, a sua morada através da face
silenciosa da história.
A cidade antiga é próxima, pois é o lugar que reconhecemos
como casa; ou como deveria ser uma Fortaleza. Então temos o nosso encontro
marcado com o tempo, o tempo de fazer da cidade o que de melhor seria para
cada um de nós; com o tempo de construirmos a cidade que sonhamos e que perdemos.
fotos do Arquivo Nirez
Extraído do artigo O Encontro Marcado com o Tempo, do
professor
Antônio Otaviano Vieira Júnior.
Publicado na Revista Fortaleza –
fascículo 1, de 13 de abril de 2006.
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