quarta-feira, 20 de julho de 2011

Fortaleza do Século XIX – Evocação da cidade antiga

Na Rua da Palma, que posteriormente recebeu o nome de Major Facundo, existia a Farmácia Teodorico, o estabelecimento comercial mais antigo da cidade, fundado no reinado de Dom João VI. A Farmácia pertenceu a quatro gerações sucessivas da família Costa: Elói, Antônio Teodorico, José Elói e  por último, Alberto Elói. Depois passou às mãos da família Benevides. 

Rua Major Facundo, na esquina onde funcionava a Farmácia Teodorico - 1970 (arquivo Nirez)

Durante muito tempo lá ainda se achavam as primitivas prateleiras, onde se avistavam os antigos frascos de água colorida de amarelo, de vermelho e de azul e um banco singelo em que a freguesia esperava o aviamento das receitas.

  Rua Major Facundo, trecho Praça do Ferreira (arquivo Nirez)

Naqueles tempos remotos era Fortaleza  uma cidade ingênua, mas viril. Povo ímpar, descendentes daqueles Capitães-do-Mato, bons, burros e bravos, na classificação de João Brígido. Sobretudo, uma gente honesta, como o velho Macaíba, de quem fala Gustavo Barroso em suas Memórias

Tendo recebido de um amigo do interior a incumbência de comprar e guardar um bilhete de loteria, comprou-o e guardou-o juntamente com outro, de sua propriedade, em envelopes separados. 
Mas não os mostrou a ninguém.  Corrida a loteria e premiado com 500 contos o bilhete que destinara ao amigo, o velho Macaíba não se sentiu tentado pela avultada quantia, pois mais do que o dinheiro, valia sua probidade. 

Abrir mão de 500 contos, quem era pobre e não tinha, além da própria consciência, nenhuma testemunha a embaraçar-lhes os passos, é exemplo que não se encontra facilmente nos dias de hoje. 
Bom e bravo povo de outrora, que enfrentava os potentados e defendia os fracos, como ocorreu com o velho cajueiro então existente no cruzamento das Ruas Pedro Borges, Major Facundo e Liberato Barroso, chamada do Cajueiro, em razão do episódio que, nos tempos do Brasil-Colônia, sob o reinado de D. Maria I, foi palco o Ceará, governado à época pelo oficial da marinha portuguesa Luiz da Mota Féo e Torres, conforme relato de Gustavo Barroso, que o ouviu do professor Lino da Encarnação.

Nesse tempo Fortaleza era uma pequena aldeia, muito embora ostentasse os foros de capital do Ceará. Onde hoje se acha a Praça do Ferreira, existia uma série de casas conhecida por Beco do Cotovelo, de cuja extremidade partiam três incipientes ruelas. 
A que saía para os lados do Garrote possuía, em certo ponto, um grande cajueiro, à sombra do qual ficava o açougue do Fagundes.  Um dia, ao passar o governador por ali, cavalgando o seu ginete, um galho baixo da árvore arrancou-lhe o chapéu, lançando-o ao chão. 
Como o açougueiro descansava ali perto, o governador ordenou-lhe:

- Apanhe esse chapéu! 

O Fagundes fez que nem ouviu.  Não gostava de ser mandado, acostumado que era nessa vida livre que sempre levaram os primitivos colonizadores. O governador insistiu, sendo ainda desobedecido. Então gritou, irritado:

- Não me apanhas o chapéu, vilão duma figa, pois eu, que ia somente mandar cortar o galho baixo do cajueiro, agora vou derrubar tudo, e adeus açougue!

Do Palácio, outrora aquela casa antiga e baixa guardada por uma muralha com pesados portões, na Rua Conde D’Eu, onde funcionou o Mercado Central, partiu a ordem de deitar abaixo o cajueiro. 
O açougueiro, auxiliado por outros moradores, não deixaram que os soldados executassem a ordem do governador. 
É que o Fagundes lançara pela provinciana cidade o seu grito de revolta. Em seu auxilio vieram outros açougueiros, flandeiros, merceeiros, ferreiros, quem quer que tivesse uma profissão definida, até mesmo os pescadores da Prainha, armados todos, de cacetes, pedaços de pau, pedras  e fações. 
A tropa carregou. 
 A prepotente  autoridade acabou desistindo de mandar derrubar o cajueiro.

A Residência dos Governadores, na Rua Conde D'Eu. Em 1929 o então prefeito Álvaro Weyne mandou demolir o imóvel, depois de mandar fotografá-lo (Arquivo Nirez) 

No mesmo local da residência dos Governadores foi construído o antigo Mercado Central - foto de 1932 (Arquivo Nirez) 

A velha residência dos Governadores, de onde partiu a ordem não cumprida, prédio  tradicional e histórico de nossa capital, foi demolido alguns anos depois, por ordem de quem, por obrigação deveria conservá-lo: o poder público.  

Naqueles tempos antigos, um pouco mais para o oeste, ficavam os terrenos baldios da Praça da Estação, onde se armavam os circos que eram a delícia da meninada. 

Praça José de Alencar, final do século XIX (arquivo Marciano Lopes)

Para o sul, a atual Praça José de Alencar, na qual existia um pequeno nicho que deu lugar à futura matriz do Patrocínio e em cujo centro haveriam de erguerem-se as paredes de inacabado teatro, finalmente destruído pela chuva e pelo descaso do s poderes públicos. 

 Prédio do batalhão de Segurança, depois Escola Aprendizes Artífices, na esquina da General Sampaio com a Liberato Barroso. (arquivo Nirez)

O Centro de Saúde, que ocupou o espaço onde antes esteve o Batalhão de Segurança, foi demolido em 1974, para dar lugar aos jardins do teatro José de Alencar (arquivo Nirez)

Ainda não existia, em 1887, a Escola Normal, depois Grupo Escolar José de Alencar e mais tarde Faculdade de Medicina, Odontologia e Farmácia, atual IPHAN, nem o Quartel de Segurança, destruído após a revolução de 1930 para, no mesmo terreno, ser edificado o prédio do Centro de Saúde, que também desapareceu para dar lugar ao jardim do Teatro José de Alencar.

Mais para o sul, a Praça São Sebastião, em cujo centro erguia-se a capelinha da mesma invocação, custodiada pelo padre Pedro. A morte do sacerdote ocasionou o desaparecimento do singelo templo, do qual não restam quaisquer  sinais, nem mesmo o cruzeiro do patamar.

aspecto atual da Praça Paula Pessoa,  antiga Praça São Sebastião

Resgatando em parte a história do logradouro, foi construído um pequeno santuário em louvor a São Sebastião, inaugurado em 20 de janeiro de 2003, na administração de Juraci Magalhães (1997-2005). Fica nas dependências do Mercado São Sebastião

O vasto areal que era a praça tinha no seu entorno o açude do Padre Pedro, construído logo após a nascente do riacho Jacarecanga. O açude também foi urbanizado entre quatro ruas e mais tarde, totalmente aterrado.

Outra tradição da Fortaleza do século XIX eram os apelidos, espirituosos, mal recebidos a princípio, para acabarem incorporados aos nomes de batismo. 
As Pedrocas, filhas de um tal Pedroca, Pedro de Tal; as Itapipocas, por terem vindo daquela localidade; as Mundórias, em razão do pai, professor de latim, ter sido alcunhado de Mundório, por viver declamando mundus, mundorum; as Garapas, tias de Gustavo Barroso, por causa do pseudônimo com que o avô do ilustre escritor assinava seus artigos políticos: Zé Garapa; as Mississipis, em razão do pai ter possuído uma bodega denominada Ao Mississipi, aproveitando o intercâmbio forçado do sul dos estados Unidos com o Nordeste brasileiro durante a Guerra de Secessão; as Palhabotes, em vista do chefe de família ter montado estabelecimento comercial com o nome de O Palhabote.

Na Fortaleza de 1887, vagar de madrugada pelas ruas desertas não era proibido, e podia-se largar a voz no mundo, fazer o barulho que quisesse, tendo por testemunha a lua mais bonita que Deus fez, econômica lua, com quem uma vez os administradores fizeram um incrível contrato, tão simples e peremptório, que só deu certo porque os filhos da cidade eram também meio lunáticos.

Extraído do livro
de Mozart Soriano Aderaldo.

5 comentários:

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Tanta coisa boa, tinha essa mossa terrinha. Boas e pitorescas, bonitas e ngraçadas. Muitas coisas, do meu tempo outras não.
Aprendo um bocadão, aqui.
Evocar essa cidade é um grande prazer. Mas só assim, com matéria bem elaborada, profundamente pesquisada...
Viva, a Fortaleza antiga e bela!
Melhore, a Fortaleza d'agora e cheia de "cravos e espinhas", que nem meninos na puberdade.

Pt da vida, com a Dmama de Vermelho!
Beijos

Fátima Garcia disse...

Obg pelas referencias elogiosas, quanto a estar pt da vida com a dama de vermelho, é só voce mais a torcida do Ceará e do Fortaleza juntas.
bjs

Anônimo disse...

Adorei as fotos da Fortaleza antiga, pude ver como era belo seu conjunto arquitetônico. Que maravilha. Mesmo hoje, em meio a tantos arranhacéus, a capital alencarina é um encanto de cidade.

15 de junho de2012

Fátima Garcia disse...

é assim, anônimo, Fortaleza é uma bela cidade, só está maltratada, devido a atuação equivocada e incompetente de sucessivas administrações municipais.

Daniel disse...

Achei muito interessante, mas eu gostaria de ver fotos realmente do século XIX.