sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A Paixão de Cristo Cearense

Esse episódio foi publicado no Jornal O Globo Rio na coluna assinada por J.A.Gueiros. Segundo o autor, a história lhe foi passada por Nertan Macedo, jornalista e escritor, nascido em Umbuzeiro, sertão da Paraíba na fronteira com a cidade do Crato, no Ceará, que militou durante muitos anos na imprensa e nas letras  do Ceará.
O escritor Nertan Macedo, era amigo da família do então governador Virgilio Távora, e é bastante provável que tenha presenciado o episódio.
J. A. Gueiros é escritor e biografo, autor do livro O Último Tenente (editora Record) que conta a vida e as façanhas do famoso general cearense Juraci Magalhães, partícipe de quatro revoluções no Brasil, inclusive da última, de 1964, que culminou com a deposição do Presidente João Goulart.
Isto posto, e com a devida autorização do Gueiros, eis a história da:

A Paixão de Cristo no Ceará

As encenações da paixão de Cristo no Nordeste ganham muitas vezes aspectos de grande ópera. Atraem multidões de devotos e curiosos. A mais famosa é a de Nova Jerusalém, em Fazenda Nova, Pernambuco, hoje realizada com os requintes de uma produção da Broadway.
Mas a que entrou mesmo para a crônica dos espetáculos de opera bufa, foi na década de setenta, a Paixão de Cristo levada no Teatro José de Alencar de, numa realização da então primeira dama do Estado, dona Luiza Távora.
A cada semana santa o espetáculo vinha sendo encenado com o máximo de requinte merecendo a participação da melhor sociedade de Fortaleza. O guarda roupa altamente bem confeccionado, obra do figurinista e costureiro Mororó, causava o deleite dos apreciadores. De sua tesoura mágica brotavam os centuriões, os soldados romanos, os apóstolos de Cristo, o tetrarca da Galilea, Poncio Pilatos, enfim, todos os personagens históricos da grandiosa encenação pascoal.
Como (quase) todo bom costureiro, Mororó era gay, dono de um traquejo majestoso. Os ensaios da peça se faziam no próprio palácio do governo, durante meses de árduo trabalho, com todas as moças da ação católica da capital cearense ajudando na preparação do espetáculo. Os papéis dos figurantes eram cobiçadíssimos, a primeira dama os escolhia pessoalmente. Constituía uma honra participar.
Quem fazia o Cristo era Zé de Holanda, um rústico ferreiro, estrangeirado, grande porrista, escolhido por ser um tipo esbelto e de olhos azuis, raridade naquelas plagas nordestinas. Seus olhos azuis, destoando de qualquer realidade histórica da Palestina, conferiam prestígio à encenação, um toque de mistério, diziam as beatas.
Durante um mês antes do espetáculo, as zelosas filhas de Maria ficavam encarregadas de vigiar Zé de Holanda para que ele não bebesse uma só gota de sua cachaça preferida, a Bronswick, uma cana brabíssima, quase puro álcool. Por respeito ao papel ele se submetia a esse sacrifício, sabendo que Jesus não poderia subir à cruz estando de porre.
Mas o costureiro Mororó, que diligentemente, e sempre de boa vontade, confeccionava todos os costumes não era jamais convidado a participar da peça. Naqueles anos de tremendo preconceito contra os gays, a governadora temia incluí-lo numa paixão de Cristo freqüentada por todas as mais esnobes e conservadoras figuras da sociedade cearense.
Mororó sofria calado. Até que um dia, em ano de grandes agitações populares, nosso herói resolveu bater o pé contra a injustiça e exigir um papel na peça momentosa. – Se eu não puder fazer um personagem da paixão, deixo de costurar as roupas. Não tem mais nem fiapo! – protestou ele. Foi um desadoro. As beatas tiveram chiliques, as filhas de Maria choraram, o bispo quis intervir, todo o mundo entrou em polvorosa. Mas a governadora, dona Luiza Távora, grande alma política, que tinha um justificado apreço pelo dedicado trabalho de Mororó, usou sua extrema habilidade diplomática e encontrou a saída.
De que maneira a mulher de um austero governador nordestino naquela cidade onde imperavam os mais severos costumes e os mais ferrenhos preconceitos da época, poderia atribuir a um costureiro gay um papel na sagrada representação da paixão de Cristo que reunia a nata da elite cearense? Somente o savoir faire de dona Luiza Távora lograria resolver tal impasse.
Sem Mororó as históricas vestimentas deste famoso auto da Páscoa de Fortaleza não seriam produzidas e, por outro lado, admiti-lo, com todos os seus maneirismos, na convivência íntima das jovens beatas controladoras da peça talvez se considerasse uma afronta.
Mas a sagaz governadora teve uma idéia brilhante. Fez uma reunião em palácio, convocou todas as organizadoras do evento e lhes propôs simplesmente que dessem o papel de Pôncio Pilatos ao imprescindível Mororó. Era uma figuração muito breve, o Tetrarca da Galiléia apareceria apenas durante alguns minutos, molharia as mãos numa bacia de prata e diria aquela frase da Bíblia que todos conhecem: “Lavo minhas mãos no sangue deste justo”. E pronto. Sairia rapidamente de cena sem ofender a ninguém. Estaria salva a sacralidade da representação.
Afora alguns resmungos das mais renitentes todas concordaram e Mororó foi chamado para receber a boa notícia. Ele seria o Pilatos na paixão de Cristo de Fortaleza. Não é preciso dizer o que o extremoso costureiro fez para dar maior brilho ao seu curto papel. Exultante, confeccionou para si próprio uma vestimenta de Pilatos que causaria inveja ao próprio Tetrarca se ele por milagre aparecesse ali vindo do passado. Consultou livros da época, documentou-se nos museus e produziu um costume perfeito, nos mínimos detalhes. Mandou vir do Rio de Janeiro uma bacia de prata inglesa onde lavaria majestosamente suas mãos diante do público. Tudo no maior requinte.
Enquanto isso, as organizadoras devotas iam convocando e preparando os estudantes para figurar nas galerias do fundo do teatro declamando a parte responsiva da peça: Cristo ou Barrabás?
Afinal, chegou o grande dia. Toda a cidade fremia de entusiasmo cristão, os convidados da platéia envergavam suas melhores vestimentas. O contra-regra armou no palco uma cruz estilosa de peroba do campo, para receber o corpo trágico do crucificado, ou seja, Zé de Holanda cenograficamente banhado de sangue.
Ao lado da cruz, havia um pote rústico onde os soldados romanos simulariam molhar a estopa com fel para levá-la na ponta de uma vara à boca do crucificado, repetindo o tormento bíblico.
Na hora aprazada todos ouviram Zé de Holanda implorar, em cena, que lhe dessem “mais fel, mais fel” e não entenderam muito bem por que. É que os estudantes safados haviam aprontado uma surpresa para o personagem. No hipotético pote de fel tinham derramado uma garrafa inteira da cachaça Bronswick, a que enlouquecia Zé de Holanda.
Quando, durante a cena, enfiavam na sua boca um trapo de pano embebido na cachaça, o Zé que estivera abstêmio por dois meses, ao sentir o cheiro inebriante da sua aguardente preferida, dava chupões seguidos no pano, implorando, “mais fel, mais fel!” Os estudantes gargalhavam nas galerias, deixando a platéia intrigada.
No instante supremo, dá entrada em cena o glorioso e cintilante Pôncio Pilatos, vestido na figura atrevida de Mororó. Um oh de espanto percorreu a platéia. Ele se encaminha, majestoso até uma mesa da tribuna da frente do palco, molha as mãos, lentamente na bacia de prata e faz em alto e bom som a pergunta clássica que deveria ser respondida em coro pelos estudantes das galerias.
– Cristo ou Barrabás? O que quereis de mim, ó fariseus?
Do fundo das galerias do velho Teatro José de Alencar, de históricas tradições, brotou um urro poderoso. Os galhofeiros estudantes mancomunados gritaram a plenos pulmões sua resposta chula expressa num monossílabo agudo que as boas maneiras nos impedem de repetir aqui:
– Teu ... Mororó!
Desse dia em diante o espetáculo da paixão de Cristo no Ceará foi oficialmente abolido.
Mas entrou para a História.

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