sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Relógio da Sé (Crônica de João Nogueira, escrita em 30 de dezembro de 1932)


Em verdade faz pena ver desregulado e incerto esse relógio antigo e talvez o melhor de Fortaleza. Primitivamente, era o regulador da cidade, espécie de coração da aldeia da pequenina e tranquila Fortaleza de então; mas hoje, que a cidade cresceu tanto, somente a reduzida parte que vive à sombra da Sé e que escuta e se rege por sua amiga que nos fala há setenta e muitos anos.

Esta voz não nos entra de portas adentro como a luz da madrugada que, no dizer do poeta, invadindo a cabana do aldeão, diz-lhe asperamente: levanta-te animal! Tens frio e não tens pão.

Ao contrário disto, aquele som mavioso se nos desperta, se nos manda ao trabalho ou nos convida ao sono ou à oração, lembra, embora vagamente, a voz de uma avozinha solícita, que nos guiasse os passos com um falar antigo e sempre doce.

Atualmente desregulado como anda, faz lembrar essas pessoas de passado glorioso que, tendo sobrevivido a si mesmas, entram a dizer e fazer tolices, enchendo de piedade e de tristeza a seus descendentes e amigos.

São frequentes as diferenças de 15 minutos, dentro de poucas horas, entre esse relógio e outros acertados por ele; e não raramente esses desacordos atingem, subitamente, meia hora, como sucedeu domingo passado, 25 de março.

Isto traz confusão a quem de há muito se rege pela Sé e não pode escutar o toque da Prefeitura. É então que, resignados, repetimos aquele – Deus te salve, relógio que anda atrasado. 

Devemos esta prenda ao Sr. João da Costa e Silva, agricultor na Pacatuba que, para aquisição da mesma, fez doação de um conto de réis à irmandade de São José, assim que ficaram prontas as obras da Matriz, em 1854. Ali falta a pancadinha do relojoeiro, de que fala a conhecida anedota.

A máquina de ferro, todo mundo sabe, é infinitamente grosseira em presença da máquina humana;  entretanto, apresenta sobre esta a grande superioridade de poder sempre se renovar e trabalhar indefinidamente, tudo dependendo da substituição oportuna dos órgãos essenciais ou acessórios.

É sabido que na Inglaterra, devido a bons cuidados, máquinas a vapor do tempo de Watt (1780) ainda estão em perfeito estado de conservação e funcionamento; e que o mesmo acontece com a Rocket, uma das primeiras locomotivas que data de 1829. 


O célebre relógio da Catedral de Estrasburgo, construído em 1352, depois de passar parado vários anos continuou a trabalhar, depois que Schwilgué o reparou e completou, em 1842.
De então até hoje vem marcando regularmente, além de horas, minutos e segundos, os dias da semana e do mês, as fases da lua e vários outros fenômenos astronômicos.  

Nem se diga que alemães e franceses conservam essas máquinas por terem valor histórico ou científico: também zelam com extremo cuidado velhos moinhos, que não se prendem a fato importante algum, bem como castelos em ruínas e outras construções que, por serem muito antigas, são queridas e respeitadas.

Entre nós, povo moderno, americano e adiantado, quase ninguém pensa em conservar velharias, como fazem aqueles atrasados europeus. A Igreja, em todos os tempos, tem sido o conservador por excelência; tem evitado esse espírito de renovamento impensado, que há sido fatal a indivíduos e a povos. 

Devido a isto é que ainda possuímos, funcionando o magnífico relógio, que é a máquina mais antiga do Ceará.  Que tal aconteça, não há que admirar; mas o que contado não se acredita e que ainda esteja em plena atividade a primeira máquina a vapor, que veio a esta terra!
Encomendada pelo Tem. Cel. João Franklin de  Lima para o seu engenho na Munguba, aqui chegou em 1864; e, depois de ter trabalhado ali até 1883, passou a outras mãos e hoje se acha no engenho do Sr. Francisco Anísio de Oliveira Paula, em Maranguape.  Dados os nossos costumes, um caso destes é bem digno de nota...

Nós, que há longos anos nos regulamos pela Sé,  verificaríamos, com prazer, restituído à sua perfeição antiga, o melhor dos nossos cronômetros. Bastaria que o nosso zeloso e estimado vigário da Sé confiasse os reparos carecidos ao Sr. Abílio Silva, esse relojoeiro patrício de reconhecido talento.

Esperamos e desejamos que assim seja, mesmo porque as horas contadas na torre da nosso velha igreja tem a solenidade e a significação que não se lobrigam nos gritos estridentes dos relógios públicos.

Extraído do livro
 Fortaleza Velha, de João Nogueira.  


Velharias Europeias citadas por João Nogueira




O famoso relógio de Estrasburgo foi montado pela primeira vez em 1352 e ficou conhecido como o Relógio dos Três Reis. Tinha lindas figuras e vários detalhes mecânicos tais como um calendário e um astrolábio. A principal imagem era a da Virgem com o Menino Jesus nos braços. Quando recebia a visita dos Reis Magos, a hora era anunciada por um dispositivo que fazia soar um sino. No início do século 14, parou de funcionar.  
Foi restaurado duas vezes, cada vez de forma mais elaborada que a outra. Mas foi inteiramente desmontado em 1547, refeito em outro local dentro da catedral e recebeu o mecanismo que o transformou num dos relógios astronômicos mais perfeitos da Europa

A Rocket é uma das primeiras e mais eficientes locomotivas dentre os diversos modelos criados no início do século XIX. Percorria o trajeto entre Liverpool e Manchester.  Hoje encontra-se no Museu de Londres.

fonte:
oglobo.globo.com/blog do Noblat

4 comentários:

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Que crônica maravilhosa,com quase 80 anos! Um relógio desregulado, foi motivo de uma crônica!

Chamou-me a atenção o nome do dono de engenho de Maranguape: Sr, Francisco Anísio de Oliveira Paula- pai, do humorista Chico Anísio.

Bela postagem, Fátima!

Fátima Garcia disse...

é verdade, nem me toquei do nome e do lugar. Será que a máquina ainda está por lá?

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Vamos lá, Fátima, nas nossas férias, constatar, fotografar, pesquisar...

TÚLIO MONTEIRO disse...

prezada Fátima Garcia, como faço para "linkar" meu blog literário em seu magnífico site? meu WhatSapp é 85-990003234! Aguardo sua resposta!!!