quarta-feira, 2 de maio de 2012

De Médicos e Vacinas

O farmacêutico Rodolfo Teófilo que vacinou a domicilio a população de Fortaleza contra a varíola entre 1901 e 1904 (retrato no Museu do Ceará)

O grande desafio enfrentado pelos governantes cearenses no final do século XIX, início do século XX, foi combater o surto de varíola, que se tornara endêmica desde 1877 e continuava causando infecções e mortes quase todos os anos. A partir da virada do século, no Ceará foi decretada a obrigatoriedade da vacinação pública contra a varíola, formalizada em 1892, reaparecendo em 1897 e 1900. 
O serviço coube à Inspetoria de Higiene, que recebia regularmente do governo federal, estoques da vacina. Os diversos relatórios da Inspetoria não revelam se houve tentativa organizada de se vacinar a população a domicilio. A julgar pelas reiteradas queixas de inspetores quanto ao reduzido número de funcionários de que dispunham, o mais provável é que a vacina só era aplicada quando os moradores procuravam os postos de vacinação.
No entanto, nem os populares se permitiam ser vacinados, recusa que os médicos atribuíam a indiferença e a ignorância, nem a vacina enviada da capital Federal era totalmente eficaz porque muitas se deterioravam pelo tempo e pelo calor que sofriam ao longo do transporte.
Diante desse cenário, o farmacêutico Rodolfo Teófilo, destacada figura dos círculos científicos e literários da Capital, tomou uma decisão inédita na história médica do Ceará: resolveu fabricar a vacina, às próprias expensas, e aplicá-las sozinho, na população, gratuitamente e a domicilio, entre 1901 e 1904.


Casa do farmacêutico Rodolfo Teófilo, no Benfica (arquivo Nirez) 


Havia um fator político nessa decisão: Teófilo era ferrenho opositor da oligarquia de  Nogueira Accioly que, à época, dominava a máquina político-administrativa do Estado. Por isso, a decisão do farmacêutico foi bastante criticada pelo órgão oficial do governo, o jornal “A República”, que duvidava da eficácia de sua vacina.
Teófilo por sua vez não deixava de responder às acusações da oligarquia através dos jornais da oposição, onde, também informava a quantidade mensal de bairros visitados e pessoas que visitara e vacinara.


Rodolfo Teófilo era crítico ferrenho da administração Nogueira Accioly, a quem acusava de se preocupar com o embelezamento da cidade e negligenciar a saúde urbana. Na foto o Jardim 7 de Setembro, na Praça do Ferreira, que durante o carnaval era reservada somente para as elites. (Arquivo Nirez)

Tendo visitado a Bahia para aprender a fabricação da vacina, Teófilo passou a produzi-la em Fortaleza recorrendo aos bezerros do seu sítio. O relato minucioso da campanha de Teófilo, contido no seu “Varíola e Vacinação no Ceará”, de 1904, é relevante pelas informações que fornece sobre as classes mais pobres, como também pelo olhar preconceituoso que o médico lança sobre o universo popular. Através de registro, constata-se que o bairro do Matadouro era o mais carente da cidade, o mais canalha e o lugar por excelência da escória da população, onde miséria e vício se aliaram.


Rodolfo Teófilo e a vacinação em domicilio, no Morro do Moinho (arquivo Nirez)

O farmacêutico relata que encontrou muitas dificuldades, naquela e nas demais áreas urbanas, todas paupérrimas, pois os moradores o recebiam com medo, com hostilidades ou fugindo para o matagal mais próximo.  Para vencer tal resistência teve que ser paciente, oferecer dinheiro e ser enérgico em algumas ocasiões. 
Revela, no entanto, que obteve mais sucesso quando inventou que a vacina que portava, fora descoberta por um inglês, após a aparição de um anjo de Deus que lhe revelou como fabricar um milagroso líquido capaz de salvar seus conterrâneos então atingidos por mortal epidemia de varíola.
Rodolfo Teófilo garante que, ao cabo dos  três em que empreendeu sua vacinação domiciliar, seu objetivo foi alcançado, ou seja, a extinção da endemia de varíola em Fortaleza.  Na verdade alguns poucos casos continuariam a aparecer nos anos seguintes à sua campanha, mas a literatura médica cearense é unânime em reconhecer que a ação benemérita do farmacêutico foi decisiva para minar a ação daquela moléstia na capital do Ceará.

Extraído do livro
Fortaleza belle époque – reformas urbanas e controle social 1860 – 1930  de Sebastião Rogério Ponte

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