quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Padre Cícero – Parte 3/3

foto: Diário do Nordeste

Quando foi obrigado a deixar Juazeiro por imposição do bispo D. Joaquim, Padre Cícero permaneceu quase três meses em Salgueiro, Pernambuco. Nesse período concluiu que a última esperança de pôr fim as perseguições que vinha sofrendo por parte das autoridades eclesiásticas, era explicar as atitudes pessoalmente em Roma. 
Voltou para Juazeiro e preparou a viagem. Com o auxilio financeiro de vários amigos seguiu para a Europa em fevereiro de 1898. Em Roma, permaneceu por nove meses. Apresentou-se ao Santo Ofício como um sacerdote pobre, com a obrigação de sustentar a família. 
Relatou as injustas punições sofridas e os milagres de Juazeiro, declarando-se inocente de qualquer crime e afirmando acatar toda determinação da Igreja. 
Padre Cícero esperou em Roma, por várias semanas  pela decisão do Santo Ofício, até que em setembro de 1898 saiu finalmente o veredito:  o tribunal religioso mantinha a condenação do milagre, a proibição de pregar, ministrar a confissão, aconselhar fiéis, etc. Mas lhe permitiu voltar para casa e – dependendo da concordância do bispo cearense –  celebrar missa. 
O padre retornou a Juazeiro em 1898; D. Joaquim, após muita protelação, temendo uma revolta popular, concedeu a licença para celebrar missas, exceto em Juazeiro e nos arredores, uma forma de coagir o Padre Cícero a deixar a cidade, o que nunca aconteceu.
A partir daí o Padre Cícero põe em prática uma estratégia de ação que daria novos rumos à sua vida. Embora continuasse envolvido com os romeiros, procurou se fortalecer antes as investidas das altas autoridades da igreja católica romana. 

foto: Estadão

Para tanto, aproxima-se das ordens religiosas não subordinadas ao bispado no Ceará, como a ordem dos Salesianos. Ao mesmo tempo, aliou-se definitivamente aos políticos e coronéis do Cariri, e às oligarquias dominantes, como a de Nogueira Accioly, que então governava o Ceará. Padre Cícero tentava controlar as manifestações religiosas mais radicais (o excesso de fanatismo religioso, que tanto assustava aos setores urbanos), e oferecer um enorme contingente eleitoral (os famosos currais eleitorais que ainda hoje são encontrados em alguns municípios cearenses). 
Os fiéis sob influência de padre Cícero votariam em peso nas oligarquias – desde que ele assim determinasse. Em troca, desejava não só a preservação de Juazeiro, mas benefícios de ordem material para a cidade, e apoio contra as perseguições religiosas movidas pela alta cúpula da igreja.
O padre estruturou ainda um poderoso esquema econômico. Seus inimigos não enfrentariam mais “um pobre e humilde sacerdote suspenso das ordens”, mas um poderoso senhor de terras, detentor de prestígio e muito dinheiro.
Passou a influenciar outros latifundiários, a controlar grupos de jagunços, a reivindicar o direito de nomear ocupantes de cargos públicos. Os críticos desse novo Padre Cícero passaram a chamá-lo de coronel de batinas.
O padre agia como um autêntico conciliador da luta de classes, a favor da ordem dominante. Possuindo o respeito e a admiração das classes populares, auxiliava as massas, arranjando-lhes trabalho, terra, dinheiro, ou dando conselhos e orientação espiritual.
vendedores de corda em juazeiro (foto IBGE)

Em troca, os sertanejos não mediam esforços para defender  “Padim Ciço”, sem questionar a estrutura social assentada no latifúndio e as ligações do próprio padre com as classes proprietárias. Suas ambições pessoais e políticas eram limitadas ao meio em que vivia. 

A prova é que Padre Cícero foi eleito vice-governador e deputado federal, mas nunca foi tomar posse. Não apenas por razões de saúde, mas para permanecer em Juazeiro, ao lado dos romeiros que o adoravam e o respeitavam. 
O padre exerceu o cargo de prefeito de Juazeiro, sendo destituído pelo sucessor de Nogueira Accioly, Governador Franco Rabelo.
casa na zona rural de Juazeiro (foto IBGE)

Nos últimos anos de vida padre Cícero tornou-se obcecado em recuperar os plenos poderes do sacerdócio, o que jamais conseguiu. Pensou em ir a Roma novamente, mas as condições físicas não lhe permitiam. 
Em 1914 o Crato foi escolhido como sede do novo bispado do Cariri, preterindo Juazeiro em razão da presença do padre Cícero, que nos anos anteriores lutara bastante para fazer de sua cidade sede episcopal. Foi uma grande derrota para o padre que acreditava que, sendo a diocese instalada em Juazeiro, ficaria mais fácil recuperar as ordens sacerdotais. 

rua em Juazeiro (foto IBGE)
O episódio reacendeu a rixa entre Crato e Juazeiro, e para amenizar a situação, o primeiro bispo da região restituiu ao padre o poder de celebrar missas, mas impondo uma série de restrições: não podia receber romeiros em casa, nem dar benção ou benzer artigos religiosos, batizar crianças ou estimular peregrinações.
O bispo criou ainda a paróquia de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro, o que foi alvo de muita comemoração da cidade e do patriarca. A alegria, porém, duraria pouco. Por essa época, várias vezes, Roma decretara a excomunhão de Padre Cícero. A diocese do Crato, jamais cumpriu tais decretos temendo a reação popular. 
No ano de 1921, padre Cícero foi novamente proibido de celebrar missa. A indignação dos fiéis foi geral, e culparam o vigário de Juazeiro, Padre Esmeraldo, que teria feito intrigas contra Padre Cícero. Intimidado Padre Esmeraldo renunciou, irritando o bispo do Crato e enterrando de vez, qualquer possibilidade de reconciliação.
Depois da revolução de 1930, Padre Cícero perdeu o poder político, tornando-se apenas mais um coronel derrotado pelo getulismo, até seu retrato foi retirado da prefeitura de Juazeiro.


Na manhã de 20 de julho de 1934, aos 90 anos, Padre Cícero faleceu. O filho de um dos secretários particulares do patriarca Lourival Marques, fez um relato que dá a dimensão da dramaticidade daquele dia.

Acordei pelo tropel de gente que corria pela rua. Fiquei sem saber a que atribuir aquelas carreiras insólitas. Quando cheguei à janela tive a impressão de que alguma coisa monstruosa sucedia na cidade. Que espetáculo horroroso, esse de mulheres alucinadas, correndo pelas ruas afora, chorando, gritando, arrepelando-se...foi então que se soube...O Padre Cícero falecera...Eu, sem ser fanático, senti uma vontade louca de chorar, de sair aos gritos, como toda aquela gente, em direção à casa desse homem, que não teve igual em bondade e nem teve igual em ser caluniado. 
Um caudal de mais de 40 mil pessoas atropelava-se, esmagava-se na ânsia de chegar à casa do reverendo. (...) dezenas de caminhões superlotados, milhares e milhares de pessoas á pé, marchavam para aqui. 
Juazeiro viveu e está vivendo horas que nem Londres, nem Nova York viverão jamais...O povo, uma horda enorme, invadiu tudo, derrubando quem se pôs de permeio, quebrando portas, passando por cima de tudo. Pediu-se reforço à polícia, mas o delegado recusou, alegando que o padre era do povo e continuava a ser do povo.

Mas de 60 mil pessoas acompanharam o enterro do padre. O corpo foi enterrado no altar da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (a capela do cemitério), construída por iniciativa do próprio padre e que virou local de visita obrigatória dos romeiros –  que acreditam que ao tocar com as mãos ou objetos a lápide do túmulo, estão sendo abençoados pelo Padim.
foto: Estadão
A questão do “milagre” diluiu-se com o tempo. A hierarquia da igreja católica buscou aproximar-se dos romeiros, e desde a década de 1960 começou a aceitar as peregrinações como expressão da espiritualidade popular. 
A crença em Padre Cícero e em seus poderes deixou de ser combatida, ainda que a igreja não o aceite como “santo milagreiro”. 

A igreja o perdoou, a elite transformou-o em mito, o povo em santo, e a história em polêmica.
Nunca houve na história do Ceará uma figura mais controvertida do que Padre Cícero Romão Batista.

Pesquisa:
FARIAS, Airton. História do Ceará. Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2009-5ª.edição, 400p.
OLIVEIRA, Amália Xavier de. O Padre Cícero que eu conheci: a verdadeira história de Juazeiro do Norte. 3.ed. Recife: FJN. Ed. Massangana, 1981. 344p.
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,padre-cicero-mil-e-uma-faces-de-um-mito-da-fe-nacional,476885,0.htm     

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