quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O Bem Querer da Memória

O Abrigo Central na Praça do Ferreira, conheceu personalidades que ficaram na memória da cidade, como o Pedão da Bananada. 

O que fica na lembrança, que o tempo não consegue varrer, é o bem querer da memória, é o que se julgava ter esquecido.  E a cidade também tem os seus: o Roque Macedo, que adivinhava chuvas; o Pedão da Bananada; o Tostão quimoeiro, e até o João da Silva Tavares, dos idos de 1802, professor régio da Vila de Fortaleza e o primeiro mexeriqueiro de que se tem notícia – se a pessoa não tinha defeitos, descobria-os, inventava – no dizer de Raimundo Menezes em “Coisas que o Tempo Levou”.  Tipos, bichos e até árvores que se tornaram populares ao herdar da cidade, as ruas. Eles formam o álbum de retratos da Fortaleza das décadas de 1910 a 1920.


A garapeira do Bem-bem na Praça Carolina (atual Waldemar Falcão)  paixão pela França, briga de grilos e garapa doida (foto de 1907)

Bem-BemDono de uma garaperia, na Praça Carolina, juntou dinheiro e foi à Paris. Voltou assinando “Bien-Bien Garapiere”. O caldo de cana que sobrava, no terceiro dia era chamado de garapa doida, propalada como o melhor refresco para afinar o sangue e fazer as pessoas pálidas ficarem coradas. Bem-Bem se gabava que os copos da garapeira eram limpos, tinha uma bacia com pedra de rio, mergulhava o copo dentro, mexia e dava para o freguês. Trouxe da Europa uma grande novidade: a briga de grilos. Ele tinha dois ou três grilos dentro de uma bacia, que se exibiam para o público.


Manezinho do Bispo - Conta-se que o bispo D. Joaquim, aborrecido com a grande papelada que enchia o quarto do porteiro do Palácio Episcopal, chamou-o um dia e disse que queimasse aqueles folhetos. Manezinho saiu para a rua e queimou-os, vendendo pela metade do preço.

Manezinho do Bispo – andava para cima e para baixo, com os seus pensamentos. E também publicava, no Correio do Ceará e em folhetos, suas peças literárias, como a “Biografia de uma ex-mãe – acompanhada de um passatempo”. “Amar sem ser amado é correr atrás de um trem e perder”. Manuel Cavalcante da Rocha, sem os adereços da poesia, era pernambucano e porteiro do Palácio Episcopal. Para Otacílio de Azevedo em “Fortaleza Descalça”, Manezinho do Bispo foi talvez o iniciador do movimento modernista que explodiu no Brasil em 1922. Pelo seu gosto, ele teria sido como as borboletas: “As borboletas voam e eu não voo”.
Casaca de Urubu – José Cândido lutou na Guerra de Canudos (1896-1897) e perdeu o juízo por lá. Epilético era avistado em 1915, demitido do Tribunal da Relação, vendendo doces de goiaba, vestido com os surrados fraques dos desembargadores.
De Rancho – Jesuíno Rosendo sobreviveu à I Guerra Mundial e continuou a metralhar os passantes com a carabina desativada. Atrás do seu tabuleiro de frutas e verduras,  um magote de meninos a se divertir com os ataques. Certa vez ao avistar um automóvel, fez pontaria para o ocupante: Sentido! Preparar Armas! O automóvel freou bruscamente e o ocupante, refazendo-se do susto, gritou furioso: Prendam esse sujeito! O ocupante do carro era o Presidente do Estado.

O cruzeiro da Sé era um dos palcos favoritos para o fanático Tertuliano

José Tertuliano – proprietário de um pequeno comércio, fechou o negócio e virou beato. As praças se converteram em púlpitos para sermões que ninguém entendia.  Escalava o cruzeiro da catedral da Sé, onde se amarrava de braços estendidos, a fingir o Cristo no Calvário, onde permanecia horas a fio. Aos sábados, em sua exótica indumentária de santo, com um quadro do Coração de Jesus pendurado nos ombros, percorria o comércio na coleta semanal do imposto celestial.


O Chagas dos Carneiros surgiu em Fortaleza por volta de 1911. Alto, magro, nariz grande e adunco, cego, usava um chapéu de palha e costumava trajar um espalhafatoso camisolão branco que lhe descia até os joelhos.

Chagas dos Carneiros – músico ambulante, que perambulava acompanhado por meia dúzia de carneiros e uma gaita. Os bichos, além de coloridos, eram identificados pelos nomes de figuras políticas: Deodoro, Benjamin Constant, Floriano, Hermes, Rui Barbosa, Franco Rabelo.  Cego, com eles e a música palmilhou o Nordeste. Os seus instrumentos eram fabricados por ele: uma gaita de taquara com bocal de cera, um caixote de sabão e um cachimbo de tubo de pau e cabeça de barro com que imitava os pássaros.
Mané Coco – Manuel Pereira dos Santos era proprietário do Café Java. Entendia do conserto de toda espécie de relógios e máquinas de costura, dos quais, não raro, sobravam peças que eram honestamente devolvidas num embrulho. Também acumulava a função de bombeiro, quando havia qualquer incêndio na cidade, era chamado a combater o fogo, sozinho, armado com dois baldes de madeira e uma machadinha.


Muitas histórias são contadas sobre o bode que bebia cachaça e tinha preferência por moças. Yoiô participou de atos políticos em coretos, praças e saraus literários, comeu a fita inaugural do Cine Moderno, assistiu peça no Teatro José de Alencar, passeou de bonde, perambulou pelas igrejas e até pela Câmara Municipal.

O Bode e a Ema – houve um bode, o Yoyô que se afeiçoou a boemia desde quando migrou para Fortaleza com um retirante da seca em 1915 e foi vendido  à firma Rossbach Brazil Company, na Praia de Iracema. Yoyô flanava até a Praça do Ferreira. Gostava de brincar com o povo, fingindo que dava cabeçadas no transeunte. Tinha além do bode, a ema do Parque da Liberdade. A ave tinha um andar marcial e todo mundo olhava, mas a ema não dava confiança a ninguém. Dava uma volta na Praça do Ferreira e se voltava para o Parque.


O Oitizeiro do Rosário, árvore centenária, foi cortada em 1929 por determinação do prefeito Álvaro Weyne

Árvores afetivas – cinco árvores adquiriram o direito de cidadania em Fortaleza. Ao tempo em que a cidade era visível do mar, o oitizeiro do Rosário acenava indicando a terra firme ,a árvore servia de baliza às jangadas. E abrigava conversas – sobre política, arte,  religião e vida alheia. Outra benquerença do povo era o cajueiro botador, na Praça do Ferreira. Todo dia 1° de abril dava sombra à urna que elegia o batalhão dos potoqueiros. Havia ainda a árvore da liberdade, um coqueiro plantado em 1831 no Pátio do Palácio da Luz, na Praça General Tibúrcio, para comemorar a abdicação de D. Pedro I. A casuarina do cemitério Velho, árvore que aceitou bondosamente o destino que lhe deram, chorar os mortos. Pela tarde partia de sua fronde um ressoar baixinho como se fora um sino que dobrasse a finados. Em último lugar havia o coqueiro da Praça da Estação. Era o que restou do sítio do peixeiro José Felipe,  antigo servidor da Guarda Nacional, que nas noites de luar conversava com o coqueiro.

fotos do Arquivo Nirez
extraído da Revista Fortaleza, fascículo 9, Fortaleza Descalça, de Otacílio de Azevedo
Geografia Estética de Fortaleza, de Raimundo Girão. 


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