sábado, 15 de dezembro de 2012

De Poetas e de Loucos

A jovem boemia literária e etílica de Fortaleza costumava recorrer à irreverência e à transgressão, em contraposição à formalidade exibida pelas camadas sociais burguesas. Tão antenados quanto estas com as questões contemporâneas, os boêmios denunciavam a imposição de normas, assumindo uma postura crítica através da poesia, jornais, atitudes e aventuras urbanas marcadamente satíricas, cômicas ou excêntricas.  Não reservaram para si e aos seus pares a verve de seus escritos: produziam efêmeros jornais, que duravam em média três números, com títulos sugestivos e provocadores como O Vadio, O Bilontra, O Frivolino, O Moleque, Ceará Moleque, O Diabo, etc.

Rua Major Facundo com o Café Art-Nouveau

Além de literários eram também jocosos, pilhéricos e mexeriqueiros, tornando público fatos verídicos ou não, que transtornavam pais, padres e autoridades atingidas. O Nusinho, acusado de pornográfico, chegou a ter seus dois números apreendidos pela Polícia. 
Entre os jovens boêmios que editavam tais pasquins destacou-se Antônio Ferreira Lafayette que, segundo o Barão de Studart, era o típico boêmio cearense, conhecido trovador de jornaizinhos apreciados pela plebe, cujos sentimentos e linguagens ele traduzia e interpretava. 
Excêntricos, singulares e ensandecidos em uma sociedade que se pretendia racional, os poetas boêmios  topando acasos e provocando surpresas, desafiando normas sociais e padrões vigentes, atiravam-se de corpo e alma, em agradável desespero, na poesia e na vida boêmia. Muitos morreram cedo, um cometeu homicídio, outro suicidou-se. Nenhum deixou de ser poeta.

 o poeta Raimundo Varão tinha seis dedos em cada mão, alimentava-se exclusivamente de bolachas "Jacob" com cerveja e não tomava banho

Em termos de excentricidade ninguém superava Raimundo Varão. O poeta tinha seis dedos em cada mão, era solitário e soturno. Em uma cidade onde o limpo, o saudável e o belo tornaram-se culto obrigatório, Varão ia contra a corrente: não tomava banho, alimentava-se de cerveja com bolacha e criava um enorme sapo. Acabou partindo para o Rio de Janeiro, onde ganhou na loteria e abriu uma loja. Vendo que seu negócio era poesia e não comércio, deu tudo que tinha aos pobres. Algum tempo depois morreu afogado.

 Café do Comércio, início do século XX, um dos redutos dos poetas e dos artistas da Fortaleza antiga 

Se Varão criava um sapo, Vilião apelido de William Peter Bernard, arrastava um garboso bode holandês. Recitava e bebia até cair, fosse nos belos cafés afrancesados ou nos mais reles botequins que costumava frequentar. Certa feita, sabendo que centenas de retirantes da seca de 1915 se concentravam na praia, famintos e à espera de trabalho prometido  pelo governo, Vilião os conduziu em passeata até a Praça do Ferreira, trepado numa carroça, gritando “pão ou revolução”. Só parou quando veio a notícia de que seriam reabertas frentes de serviços para os retirantes e que o Dispensário dos Pobres acolheria os mais necessitados. No dia seguinte Vilião foi intimado a prestar esclarecimentos na polícia. 

 Praça do Ferreira, esquina das Ruas Major Facundo e Guilherme Rocha. O sobrado à direita, ficava no lugar hoje ocupado pelo Excelsior Hotel

Carlos Gondim não podia ficar sem poesia, não podia passar sem beber. Mórbido, cético e de voz cavernosa, um dia, matou alguém. Na prisão escreveu Poemas do Cárcere. Cumpriu pena, foi morar longe, em Parangaba, deixou de beber e passou a lecionar para crianças. Inimigos fizeram com que ele fosse demitido da escola. Amargurado, voltou a beber. Não se deram  por satisfeitos, e Gondim foi misteriosamente assassinado. 
Eutímio Lopes, que não se matou nem matou ninguém era dos mais estranhos, só andava de preto. Era alto, pálido e capaz de fazer versos estranhos. Eutímio gostava de acompanhar enterros conduzidos pelos hilariantes gatos-pingados. A ironia é que quando morreu, não foi conduzido por eles. 

 Jardim Sete de Setembro, na Praça do Ferreira, início do séc. XX

De tipos tão variados quanto originais eram aqueles poetas boêmios, que havia até um – o poeta Mário da Silveira – que apesar de ser um inveterado boêmio, não fumava, não bebia e não jogava. 
Assim, inebriados de poesia e paixão, dor e alegria, esses jovens demonstraram, às vezes com a própria vida, que aquela belle epoque não era tão bela assim, que poderia ser de outra forma, de outra beleza, menos apolínea e mais dionisíaca.


Extraído do artigo de Sebastião Rogério Ponte
A Belle Epoque em Fortaleza: remodelação e controle 


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