A jovem boemia literária e etílica de Fortaleza costumava
recorrer à irreverência e à transgressão, em contraposição à formalidade
exibida pelas camadas sociais burguesas. Tão antenados quanto estas com as
questões contemporâneas, os boêmios denunciavam a imposição de normas, assumindo
uma postura crítica através da poesia, jornais, atitudes e aventuras urbanas
marcadamente satíricas, cômicas ou excêntricas. Não reservaram para si e aos seus pares a
verve de seus escritos: produziam efêmeros jornais, que duravam em média três
números, com títulos sugestivos e provocadores como O Vadio, O Bilontra, O
Frivolino, O Moleque, Ceará Moleque, O Diabo, etc.
Além de literários eram também jocosos, pilhéricos e
mexeriqueiros, tornando público fatos verídicos ou não, que transtornavam pais,
padres e autoridades atingidas. O Nusinho, acusado de pornográfico, chegou a
ter seus dois números apreendidos pela Polícia.
Entre os jovens boêmios que
editavam tais pasquins destacou-se Antônio Ferreira Lafayette que, segundo o
Barão de Studart, era o típico boêmio cearense, conhecido trovador de jornaizinhos
apreciados pela plebe, cujos sentimentos e linguagens ele traduzia e
interpretava.
Excêntricos, singulares e ensandecidos em uma sociedade que se pretendia racional, os poetas boêmios topando acasos e provocando surpresas, desafiando normas sociais e padrões vigentes, atiravam-se de corpo e alma, em agradável desespero, na poesia e na vida boêmia. Muitos morreram cedo, um cometeu homicídio, outro suicidou-se. Nenhum deixou de ser poeta.
Excêntricos, singulares e ensandecidos em uma sociedade que se pretendia racional, os poetas boêmios topando acasos e provocando surpresas, desafiando normas sociais e padrões vigentes, atiravam-se de corpo e alma, em agradável desespero, na poesia e na vida boêmia. Muitos morreram cedo, um cometeu homicídio, outro suicidou-se. Nenhum deixou de ser poeta.
o poeta Raimundo Varão tinha seis dedos em cada mão, alimentava-se exclusivamente de bolachas "Jacob" com cerveja e não tomava banho
Em termos de excentricidade ninguém superava
Raimundo Varão. O poeta tinha seis dedos em cada mão, era solitário e soturno.
Em uma cidade onde o limpo, o saudável e o belo tornaram-se culto obrigatório,
Varão ia contra a corrente: não tomava banho, alimentava-se de cerveja com
bolacha e criava um enorme sapo. Acabou partindo para o Rio de Janeiro, onde
ganhou na loteria e abriu uma loja. Vendo que seu negócio era poesia e não
comércio, deu tudo que tinha aos pobres. Algum tempo depois morreu afogado.
Café do Comércio, início do século XX, um dos redutos dos poetas e dos artistas da Fortaleza antiga
Se Varão criava um sapo, Vilião apelido de William Peter
Bernard, arrastava um garboso bode holandês. Recitava e bebia até cair, fosse
nos belos cafés afrancesados ou nos mais reles botequins que costumava
frequentar. Certa feita, sabendo que centenas de retirantes da seca de 1915 se
concentravam na praia, famintos e à espera de trabalho prometido pelo governo, Vilião os conduziu em passeata
até a Praça do Ferreira, trepado numa carroça, gritando “pão ou revolução”. Só parou quando veio a notícia de que seriam reabertas frentes de serviços para os retirantes e
que o Dispensário dos Pobres acolheria os mais necessitados. No dia seguinte
Vilião foi intimado a prestar esclarecimentos na polícia.
Praça do Ferreira, esquina das Ruas Major Facundo e Guilherme Rocha. O sobrado à direita, ficava no lugar hoje ocupado pelo Excelsior Hotel
Carlos Gondim não podia ficar sem poesia, não podia passar
sem beber. Mórbido, cético e de voz cavernosa, um dia, matou alguém. Na prisão
escreveu Poemas do Cárcere. Cumpriu pena, foi morar longe, em Parangaba, deixou
de beber e passou a lecionar para crianças. Inimigos fizeram com que ele fosse
demitido da escola. Amargurado, voltou a beber. Não se deram por satisfeitos, e Gondim foi misteriosamente
assassinado.
Eutímio Lopes, que não se matou nem matou ninguém era dos mais estranhos, só andava de preto. Era alto, pálido e capaz de fazer versos estranhos. Eutímio gostava de acompanhar enterros conduzidos pelos hilariantes gatos-pingados. A ironia é que quando morreu, não foi conduzido por eles.
Eutímio Lopes, que não se matou nem matou ninguém era dos mais estranhos, só andava de preto. Era alto, pálido e capaz de fazer versos estranhos. Eutímio gostava de acompanhar enterros conduzidos pelos hilariantes gatos-pingados. A ironia é que quando morreu, não foi conduzido por eles.
De tipos tão variados
quanto originais eram aqueles poetas boêmios, que havia até um – o poeta Mário
da Silveira – que apesar de ser um inveterado boêmio, não fumava, não bebia e
não jogava.
Assim, inebriados de poesia e paixão, dor e alegria, esses jovens demonstraram, às vezes com a própria vida, que aquela belle epoque não era tão bela assim, que poderia ser de outra forma, de outra beleza, menos apolínea e mais dionisíaca.
Assim, inebriados de poesia e paixão, dor e alegria, esses jovens demonstraram, às vezes com a própria vida, que aquela belle epoque não era tão bela assim, que poderia ser de outra forma, de outra beleza, menos apolínea e mais dionisíaca.
Extraído do
artigo de Sebastião Rogério Ponte
A Belle
Epoque em Fortaleza: remodelação e controle
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