Evaldo Gouveia começou sua carreira de sucessos cantando na Pensão América, da conhecida Madame Nininha, em Fortaleza
Fortaleza dormia cedo. As famílias se recolhiam após a
conversa na calçada ou depois de ouvir alguns programas de rádio. Os cantores
locais dispunham de seus “quartos de hora”
apresentações de quinze minutos que era precedido pelo prefixo musical
de cada um. Lury Santiago começava com as alegres notas do Trem, de Lauro Maia. Gilberto Milfont entrava com os versos da velha valsa Iracema. O elenco era
numeroso e de alto nível, cantando os sucessos eternizados pelos cantores
nacionalmente famosos daqueles dias, Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco
Alves, Carlos Galhardo, Vicente Celestino Carmem e Aurora Miranda, Odete Amaral,
Carmem Barbosa, Dalva de Oliveira, e outros.
Se a maioria ia cedinho para a rede, havia o grupo de
notívagos que resistia ao chamamento caseiro e optava por ficar pelos arredores
da Praça do Ferreira, na boemia. Os
cabarés ficavam no centro, nos velhos casarões herdados de tempos mais antigos,
dos quais as chamadas pensões alegres ocupavam o andar superior.
Na Praça, fazendo hora, os boêmios permaneciam até o último
ônibus, que saía a meia noite. Os bondes
desativados em 1947, na administração do prefeito Leite Maranhão, também não
iam além desse horário. E quando a Coluna da Hora emitia as doze badaladas, uma
vaia corria o logradouro, acompanhada dos gritos de ”suburbanos! Suburbanos! “,
saudação aos que morando distantes do centro, dependiam do transporte coletivo.
Praça do Ferreira com a Coluna da Hora (arquivo Nirez)
Os que ficavam, pouco a pouco iam se dispersando, principalmente rumo às
pensões. Numerosas e animadas, quase todas possuíam orquestras próprias com
seus cantores. Na ”América”, por algum tempo podia-se ouvir o posteriormente
famoso Evaldo Gouveia, cantando ao som de um violão. A “Buenos Aires” aos
sábados apresentava soirées elegantes, com as mulheres usando vestidos longos
em cores berrantes, às vezes em veludo ou lamê.
prédio na esquina da Rua Barão do Rio Branco com a Guilherme Rocha. As pensões alegres funcionavam no andar superior (arquivo Nirez)
Havia a “Império”, a “City”, o “Bar
da Alegria” de Madame Nena, espanhola antifascista, que sabia fazer relações
públicas, conhecendo pelo nome a maioria dos fregueses. O cabaré se agitava, os
pares dançando ao som de velhas melodias. Mas havia casos de amor verdadeiro
entre aquelas mulheres de vida fácil, mas em muitos casos, trazendo no peito dolorosos
dramas pessoais.
prédio que abrigava a pensão de D. Amélia Campos
Outro tipo popular da noite era o Zé Tatá, homossexual assumido,
de impressionante poder de liderança sobre o mulherio que comandava. Dizia-se que Zé Tatá
escolhia com perfeição as inquilinas de sua casa de lenocínio aprovando-as em
testes pessoais, o que servia para colocar em dúvida sua condição de
homossexual, como ele mesmo se declarava. Sobre sua figura havia ainda a versão
da valentia, homem com H, capaz de resolver qualquer parada no braço. Para
tanto não lhe faltavam atributos físicos, dono de elevada estatura e de expressiva
massa muscular.
Durante muito tempo foi visto pela cidade, com um cesto de
frutas e outras compras que realizava pessoalmente para a última casa de
prostituição que manteve na cidade, ali na área do Dragão do Mar, quase debaixo
do primeiro viaduto construído em Fortaleza.
O povo apelidou o referido viaduto
de Tatazão em sua homenagem, o que teria provocado um enciumado comentário do
prefeito que o construiu, Vicente Fialho: é isso ai, a gente consegue um
melhoramento desse porte para a cidade e o povo presta homenagem ao Zé Tatá...
Outra figura identificada com a vida devassa da cidade era o
Raimundão, pederasta que não apresentava sinais exteriores de suas preferências
sexuais. Pelo contrário, o jeitão era de macho. Atlético, exímio nadador, podia
ser visto aos domingos fazendo saltos acrobáticos dos guindastes desativados
que se consumiam na Ponte Metálica, antigo embarcadouro de passageiros e cargas
antes do advento do Cais do Mucuripe.
Rua Major Facundo, com o prédio do Majestic em 1930 (arquivo Nirez)
Raimundão
vivia no prédio do Majestic, nos altos, onde funcionavam repúblicas e aposentos
para rapazes solteiros. Corria a lenda de que ele colocava uma toalha de banho
na janela, indicativo de que naquele momento, ele estava acompanhado.
Raimundão exerceu seu oficio por largo tempo, iniciando nas
artes do amor centenas ou milhares de adolescentes que não dispunham como
agora, das facilidades que a liberação dos costumes permite aos jovens
namorados.
Extraído do
livro
O Liceu e o
Bonde na paisagem sentimental da Fortaleza-Província
De Blanchard
Girão
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