sábado, 25 de fevereiro de 2012

Noites Boêmias, Zé Tatá e Raimundão

Evaldo Gouveia começou sua carreira de sucessos cantando na Pensão América, da conhecida Madame Nininha, em Fortaleza

Fortaleza dormia cedo. As famílias se recolhiam após a conversa na calçada ou depois de ouvir alguns programas de rádio. Os cantores locais dispunham de seus “quartos de hora”  apresentações de quinze minutos que era precedido pelo prefixo musical de cada um. Lury Santiago começava com as alegres notas do Trem, de Lauro Maia. Gilberto Milfont entrava com os versos da velha valsa Iracema. O elenco era numeroso e de alto nível, cantando os sucessos eternizados pelos cantores nacionalmente famosos daqueles dias, Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Vicente Celestino Carmem e Aurora Miranda, Odete Amaral, Carmem Barbosa, Dalva de Oliveira, e outros.

compositor Lauro Maia (arquivo Nirez)

Se a maioria ia cedinho para a rede, havia o grupo de notívagos que resistia ao chamamento caseiro e optava por ficar pelos arredores da Praça do Ferreira, na boemia.  Os cabarés ficavam no centro, nos velhos casarões herdados de tempos mais antigos, dos quais as chamadas pensões alegres ocupavam o andar superior.
Na Praça, fazendo hora, os boêmios permaneciam até o último ônibus, que saía a meia noite.  Os bondes desativados em 1947, na administração do prefeito Leite Maranhão, também não iam além desse horário. E quando a Coluna da Hora emitia as doze badaladas, uma vaia corria o logradouro, acompanhada dos gritos de ”suburbanos! Suburbanos! “, saudação aos que morando distantes do centro, dependiam do transporte coletivo. 

Praça do Ferreira com a Coluna da Hora (arquivo Nirez)

Os que ficavam, pouco a pouco iam se dispersando, principalmente rumo às pensões. Numerosas e animadas, quase todas possuíam orquestras próprias com seus cantores. Na ”América”, por algum tempo podia-se ouvir o posteriormente famoso Evaldo Gouveia, cantando ao som de um violão. A “Buenos Aires” aos sábados apresentava soirées elegantes, com as mulheres usando vestidos longos em cores berrantes, às vezes em veludo ou lamê. 

prédio na esquina da Rua Barão do Rio Branco com a Guilherme Rocha. As pensões alegres funcionavam no andar superior (arquivo Nirez)

Havia a “Império”, a “City”, o “Bar da Alegria” de Madame Nena, espanhola antifascista, que sabia fazer relações públicas, conhecendo pelo nome a maioria dos fregueses. O cabaré se agitava, os pares dançando ao som de velhas melodias. Mas havia casos de amor verdadeiro entre aquelas mulheres de vida fácil, mas em muitos casos, trazendo no peito dolorosos dramas pessoais.

prédio que abrigava a pensão de D. Amélia Campos

Outro tipo popular da noite era o Zé Tatá, homossexual assumido, de impressionante poder de liderança sobre  o mulherio que comandava. Dizia-se que Zé Tatá escolhia com perfeição as inquilinas de sua casa de lenocínio aprovando-as em testes pessoais, o que servia para colocar em dúvida sua condição de homossexual, como ele mesmo se declarava. Sobre sua figura havia ainda a versão da valentia, homem com H, capaz de resolver qualquer parada no braço. Para tanto não lhe faltavam atributos físicos, dono de elevada estatura e de expressiva massa muscular.


Durante muito tempo foi visto pela cidade, com um cesto de frutas e outras compras que realizava pessoalmente para a última casa de prostituição que manteve na cidade, ali na área do Dragão do Mar, quase debaixo do primeiro viaduto construído em Fortaleza. 
O povo apelidou o referido viaduto de Tatazão em sua homenagem, o que teria provocado um enciumado comentário do prefeito que o construiu, Vicente Fialho: é isso ai, a gente consegue um melhoramento desse porte para a cidade e o povo presta homenagem ao Zé Tatá...
Outra figura identificada com a vida devassa da cidade era o Raimundão, pederasta que não apresentava sinais exteriores de suas preferências sexuais. Pelo contrário, o jeitão era de macho. Atlético, exímio nadador, podia ser visto aos domingos fazendo saltos acrobáticos dos guindastes desativados que se consumiam na Ponte Metálica, antigo embarcadouro de passageiros e cargas antes do advento do Cais do Mucuripe.  

Rua Major Facundo, com o prédio do Majestic em 1930 (arquivo Nirez)

Raimundão vivia no prédio do Majestic, nos altos, onde funcionavam repúblicas e aposentos para rapazes solteiros. Corria a lenda de que ele colocava uma toalha de banho na janela, indicativo de que naquele momento, ele estava acompanhado.
Raimundão exerceu seu oficio por largo tempo, iniciando nas artes do amor centenas ou milhares de adolescentes que não dispunham como agora, das facilidades que a liberação dos costumes permite aos jovens namorados.

Extraído do livro
O Liceu e o Bonde na paisagem sentimental da Fortaleza-Província
De Blanchard Girão

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