Muitos acreditam que o pré-carnaval de Fortaleza é coisa recente, iniciada nos anos 80 com os blocos que desfilam na Praia de Iracema e no Benfica. Ledo engano. Lá pelos anos 60, o Bloco Prova de Fogo já fazia a festa no bairro Otávio Bonfim e adjacências. Quer saber como era? então leia a crônica do Tarcísio Garcia.
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O ENSAIO DA PARADINHA
(Tarcísio García)
No começo do ano começava a festa. Lá de
casa dava para ouvir o baticum. Os ensaios de janeiro eram um pouco tímidos
devido à falta de entrosamento dos músicos, afastados desde o ano anterior. À
medida que se entendiam na execução, porém, passavam a tocar com mais
desenvoltura, fazendo uma verdadeira algazarra que atraía a atenção dos
moradores de toda a redondeza. Aos primeiros acordes da noite a gente se
entreolhava, largava o que estava fazendo e começava a frenética e animada
preparação para nossa participação no ensaio. Num entra e sai sem fim,
driblávamos a vigilância dos pais e escondíamos no jardim de muro baixo, os
saquinhos de carteira de cigarro com o material garimpado especialmente para a
ocasião.
No repertório revezavam-se dois estilos
distintos: marchinha e samba. No primeiro predominava o som dos metais, que se
ouvia a quilômetros. No outro, o samba, onde todo arranjo deixava a música
parecida com “eu vou pra Maracangalha”, do Dorival Caymmi. Só tinha uma
diferença: em todo samba eles botavam uma paradinha, tivesse ou não no
original. Até hoje acho graça sozinho quando ouço uma paradinha. Era assim:
faziam a introdução, cantavam a letra e depois de um caprichado solo de
cornetas, o mestre da bateria dava três apitos e a charanga fazia um breque.
Mais dois apitos e novo breque. Mais dois apitos e novo breque. Por último,
mais dois apitos, novo breque, dessa vez acompanhado de um frivião no repique,
e só então o samba recomeçava.
O cidadão comum, morador de subúrbio não
contava ainda com o feitiço da televisão que o anestesia e imobiliza na
cadeira, de modo que as noites nesta época, eram dedicadas ao convívio social e
à vadiação. Quem não estudava à noite, divertia-se com conversas, flertes e
brincadeiras ao ar livre. Velhos, adultos, adolescentes e crianças, todos
ocupavam democraticamente as beiras de calçadas. Nossa rua tinha uma posição
estratégica que fazia dela um corredor bastante concorrido, ligava a Av. Treze
de Maio à antiga Rua Juvenal Galeno, hoje, Bezerra de Menezes. Além disso,
passava por ali toda sorte de novidades; de prosaicas boiadas a caminho do
matadouro, a tropas de soldados do 23º BC, que iam acampar nas dunas do Papicu.
Nos meses de maio, junho e outubro, por
ocasião das festas da igreja, os moradores cortavam as flores dos seus jardins
e jogavam os ramalhetes na via pública para enfeitar a passagem das procissões
de Nossa Senhora das Dores, Santo Antônio e São Francisco. Com uma vocação
cultural dessas, nada passava despercebido ao olhar treinado dos moradores. Até
o mais inocente vendedor de algodão doce com sua indefectível lamparina, era
avistado de longe, parado pela freguesia e só liberado quando acabava a última
colherada de açúcar.
Pois bem... nas semanas que antecediam o
carnaval, o Bloco "Prova de Fogo" saía às ruas para corrigir as falhas do
desfile, com destaque para a coreografia da paradinha, que depois de exaustivamente
ensaiada no coração da Praça Tabajara, passava então para a etapa final da
preparação: o ensaio em movimento. Neste propósito, o bloco enchia as noites do
Otávio Bonfim com o mais autêntico e acalorado pré-carnaval. O primeiro sinal
de que o bloco ia sair do Beco dos Pintos e passar na rua, era o volume do som,
que de repente mudava de direção. Estava longe, ficava perto, sumia e voltava,
como se estivesse sendo tangido pelo vento. Ficava mais nítido e ia se
aproximando gradativamente até alguém na calçada anunciar sua visualização e a
dúvida se transformar em certeza, despertando a vontade incontrolável de correr
porta afora.
No abre alas, vinha o estandarte preto,
enfeitado de espelhos e ostentando o nome do bloco. Carregada pelo
porta-bandeira, uma caveira de uns três metros, sacudia braços e pernas de
madeira ao sabor das evoluções. Os passistas veteranos seguiam na frente
mostrando o estilo para aos jovens aspirantes a folião. Trajavam calça branca,
blusa vermelha de mangas compridas e um colete preto adornado com lantejoulas
vermelhas. Na cabeça, outro símbolo: um artefato metálico que lembrava ao mesmo
tempo, um elmo das armaduras medievais e um capacete de bombeiro. Envolto numa
nuvem de poeira, iluminado pelos faróis dos carros que pediam passagem, lá
vinha o ensaio da "escola", solto na buraqueira, tomando conta da rua,
arrastando a multidão.
Da calçada era possível avistar a silhueta
do cortejo se aproximando. Uma piracema de gente acompanhava o desfile,
correndo, pulando e achando graça, somando-se aos que se posicionavam em suas
casas para ver de perto a performance dos passistas. Num crescendo medonho, o
som da charanga cada vez mais alto, invadia todos os espaços, sacolejava a
caixa dos peitos, afrouxava o risador. As cadeiras das calçadas eram recolhidas
para dar passagem, as mulheres casadas corriam para as janelas pra evitar as
mãos bobas, os muros das casas transformavam-se em camarotes cheios de gente de
todas as idades. Crianças de braço eram alçadas às cacundas dos pais, as
maiores fervilhavam de contentamento, os cachorros latiam inutilmente, os
adultos se dividiam: uns torciam a cara achando aquilo uma fuleiragem, outros
se empolgavam com a fanfarra e dançavam na calçada. A atmosfera cheirava a
poeira, sovaco e cloretil, e o Prova de Fogo agora estava passando na porta de
casa. O povo acompanhava disputando um
lugar perto da orquestra. A rua invadida. A música troando. Não sobrava lugar
para uma pitomba.
Ao som ensurdecedor dos tambores e das
cornetas, a gente grelava os olhos nos passistas que dançavam de olho grelado
no maestro, que no tempo certo da música levantava a batuta e regia a
paradinha: pi- pi- piiiiiiiii!!! E todo mundo se abaixava: pi- piiii! Davam um
pulinho e mudavam de pose: pi- piii! Mudavam de novo: pi- pi- paracatum-paracatum-paracatum...e
saíam saracoteando alegremente movidos por uma força misteriosa que lhes
revigorava o ânimo. Felizes da vida seguiam pela Rua Justiniano de Serpa afora,
indiferentes à nossa provocativa participação: uma chuva de areia provocada
pelos saquinhos que eu e meus irmãos jogávamos sobre o desfile toda vez que os
passistas se abaixavam ensaiando a paradinha.
fotos do arquivo Nirez e Diário do Nordeste
Tarcísio Garcia é cearense de Fortaleza, artista plástico e escritor, autor dos livros
Nó na Língua (1998)
Dicionário do Ceará - as palavras, as expressões e como usá-las - (2000)
Auto-ajuda na Ruma - neurolinguística cearense (2000)
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2 comentários:
Um resgate histórico muito bem humorado!
Era assim mo meu saudoso bairro natal Otávio Bomfim
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