A bodega na Fortaleza antiga foi sempre nota de realce da
vida pacata de sua gente, ponto de convergência e referência e reduto de importância acima das rotineiras
e modestas atividades mercantis. Assim como a farmácia era local de destaque
dos vilarejos e burgos do interior, a bodega nas cidades maiores era o elemento
divulgador dos acontecimentos que merecessem essa qualificação.
no interior, as bodegas ainda resistem
Nas duas
décadas iniciais do século XX, Fortaleza, com seus cinquenta a sessenta mil
habitantes, contava com algumas bodegas que se tornaram muito conhecidas pela
vida longa que tiverem. Essas bodegas eram conduzidas pelos seus proprietários,
as vezes sozinhos, sem empregados, outras ajudadas por familiares. Situadas estrategicamente
em esquinas, raras seriam as encravadas no meio de quarteirão. Estas não seriam
consideradas bodegas, mas quitandas ou vendinhas. As bodegas eram marcadas pelo
sortimento que assegurava e espalhava a fama do estabelecimento:
– a bodega do Fulano
tem tudo!
Tinham características que estavam em praticamente todos os
estabelecimentos. O balcão de tábuas superpostas era pintado de duas cores,
geralmente vivas: verde e vermelho, azul e amarelo, em listas verticais como
que separando as tábuas que era assentado. As prateleiras eram rústicas, também
pintadas de cores vivas. Algumas tinham uma parte envidraçada para os artigos
de miudezas, outras possuíam armários para esses artigos, que eram chamados
fiteiros.
Além das casas retalhistas do centro, famosas eram as bodegas do Mané Boi (Avenida do Imperador) do Zé Ramos (Santa Isabel) do Gambetá Bruno
(Imperador), do Maracanã (Imperador), do Zé Macieira e do Chico Ramos (na
Tristão Gonçalves), a do Lopicinio, do Eduardo Garcia e do Chico da Mãe Iza, na
Rua 24 de Maio.
Durante muitos anos eram as bodegas mais conhecidas das ruas
centrais, excluídas algumas do centro classificadas como mercearias, e
naturalmente as dos bairros e das areias. (as areias eram os subúrbios mais
distantes do centro, sem calçamento e sem urbanização). Afastadas do centro
propriamente dito, isoladas na Rua Senador Pompeu havia também algumas lojas de
tecidos e miudezas. Populares eram as casas de Madeira Barros e Miranda, ambas
na Senador Pompeu, a de Braz Branco, nas imediações, e a de Francelino Moreira
Gomes, na Rua do Imperador.
antiga Rua Princesa isabel, cenário das antigas bodegas de Fortaleza. Nesta rua ficava a bodega do Zé Ramos (foto Arquivo Nirez)
A bodega sortida de Zé Ramos, na Rua de Santa Isabel
(Princesa Isabel) tinha uma curiosa característica. De tempos em tempo fechava
por dois ou três dias. Era que seu proprietário tomava porres homéricos, aos
quais, dizia-se à boca pequena, sua mulher aderia. E a freguesia logo concluía, com conhecimento
de causa:
- Ze Ramos está bebendo. A bodega está fechada desde ontem.
As bodegas de Chiquinho Ramos e de Zé Macieira ficavam na
antiga Rua do Trilho de Ferro, esquina com a São Bernardo (atual Pedro Pereira). Ficavam em frente uma da outra. A bodega de Zé
Macieira, quando já mudara de proprietário, foi palco de uma tragédia nos
tempos agitados da queda de Franco Rabelo.
A jagunçada do Padre Cícero e de
Floro Bartolomeu, afiançada e estimulada pelo governo federal que interviera no
Estado, invadiu a cidade. Nesse período
obscuro da vida da capital, houve total subversão da ordem. Todos os dias havia
arruaças e até mortes e os roubos eram uma constante. O comerciante Francisco Moraes, ex-contramestre
de importante fábrica de tecidos, então proprietário da bodega que fora de Macieira,
dormia no quarto que ficava ao fundo do estabelecimento.
Fazia-o por precaução,
pois residia perto com a família, mas a época era de pavor e apreensão. Numa noite,
Moraes ouviu barulho na bodega. Homem resoluto, apanhou uma espingarda de caça,
subiu numa escada e através da bandeirola da porta, disparou. Uma carga de
chumbo acertou de frente o ladrão, que era o subdelegado do Arraial Moura
Brasil ou do Morro do Moinho. Os demais ladrões fugiram, deixando na rua as
mercadorias roubadas.
Rua 24 de maio com Guilherme Rocha em 1910 (arquivo Nirez)
Na Praça do Patrocínio (antiga Marquês de Herval e atual
José de Alencar), esquina com a Rua 24 de maio, a bodega do Lopicinio era muito
conhecida.
Lopicinio Maia não tinha empregados. Ele mesmo de atendia
aos fregueses, não sem alguma dificuldade, pois era fanhoso e não se fazia
entender rapidamente. Homem sério, nada simpático e naturalmente desconfiado,
com fama de sovina, dizem que certa vez foi desfeiteado por outro fanho que lá
apareceu e julgou que o bodegueiro o imitasse.
Na Rua General Sampaio, também com a São Bernardo, rua
famosa de bodegas e mercearias, havia o estabelecimento de Francisco Benjamin
de Menezes, o pai do escritor Raimundo de Menezes. Era uma mercearia de
sortimento de artigos finos, de importação. Mantinha a tradição de vender fogos
de artificio. Francisco Benjamin era um velho limpo e saudável, de maneiras
finas mesmo no balcão do seu estabelecimento. Era respeitado por sua postura e
educação, mas às ocultas, era chamado de Chico Bacurau, que parecia ser apelido
de família.
As bodegas de Fortaleza foram destaques da vida e da
evolução da capital. Não eram apenas casa comerciais de varejo, mas pontos de
referência e locais de efervescência de boatos, de divulgação de notícias. Eram
verdadeiros fortins da vida do povo. Centros de abastecimento e de comunicação
da cidade, que não se pejava de crescer aos poucos, mas harmoniosamente, com
tranquilidade, modéstia e até com alegria.
Extraído do livro de Edigar de Alencar
Fortaleza de ontem e anteontem
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