sábado, 7 de dezembro de 2013

O Ceará Moleque e as Normas de Boa Conduta



 
 Rua Formosa (atual Barão do Rio Branco) em 1910. Havia grande preocupação com a higienização da cidade e a (falta de) educação da população mais pobre. 
  
O fato de se afirmar que havia normas de conduta e disciplinamento em uma sociedade não significa dizer que existia obediência das mesmas pelas pessoas – ao contrário, no caso de Fortaleza, a massa reagia a essas normatizações, por vezes, abertamente, outras vezes usando táticas para burlar ou desprezar  ao que autoritariamente era imposto “de cima para baixo”, e limitava seu modo de ser.
Assim, era grande a reincidência e a consequente detenção por vadiagem, de pessoas  que haviam assinado o chamado Termo de Bem Viver (documento assinado em juízo pelo qual o acusado reconhecia sua má conduta e comprometia-se a não mais praticá-la, sob pena de ser preso em caso de repetição).
Outra forma de resistência pode ser identificada pela compulsão dos populares ao deboche, ironia e sátira. No final do século XIX e primeiras décadas do século XX ficaram famosos em Fortaleza os tipos populares, que riam e faziam rir de qualquer coisa jocosa que acontecesse nas ruas – daí tal comportamento, profundamente censurado pelas elites e classes médias, ter ganhado a alcunha de “Ceará Moleque”, expressão inclusive já existente à época.

 A Praça do Ferreira sempre foi o local preferido para as manifestações de desagrado da população. (foto do livro A Tela Prateada) 

O local preferido para as manifestações e “excentricidade” do povo era a Praça do Ferreira, por onde passavam bondes, gente com as últimas novidades, os sisudos senhores proprietários e onde se encontravam as lojas mais elegantes e os principais cafés. Qualquer pessoa ou episódio que quebrasse a rotina eram pretexto para a divertida molecada soltar vaias, gracejos, palavras ou bolar os apelidos e escárnios, os mais engraçados.  
Pode-se entender a irreverência popular – num momento de disciplina e higienização da cidade, como uma forma de alivio ante a pressão social representada pelas más condições de vida e trabalho daquela massa de pobres, bem como uma expressão de descontentamento perante a normatização urbana que as elites tentavam impor. 

Rua Major Facundo, início do século XX (foto do arquivo Nirez)

Por serem feios, sujos, anti-higiênicos, estranhos, exóticos ou diferentes,  os tipos populares e o comportamento jocoso do povo chocavam-se frontalmente e ofendiam os padrões civilizatórios que os grupos médios e dominantes se esforçavam em estabelecer para acompanhar os valores modernos da Belle Epoque. No fundo era uma tática de resistência popular.
  

  Passeio Público - Avenida Caio Prado -  Neste espaço privilegiado, foram introduzidas práticas sociais de educação e postura, normas de comportamento que eram antagônicas a balbúrdia e a irreverência típica das praças e seus frequentadores. Assim, apesar de público em seu momento de instauração, esse logradouro  representou um espaço segregado na cidade, construído por e para uma elite econômica e social, que estabeleceram  elegantes e comportados padrões para um grupo social diferenciado.

O humor também foi usado como forma de causar constrangimento, reprimir e censurar, forçando as pessoas a se adequarem à disciplina civilizatória desejada pelos setores dominantes da sociedade. Os pasquins de Fortaleza da virada do século, faziam uma verdadeira cruzada em defesa dos bons modos, tendo como arma a exposição e o vexame público. Para eles, era necessário combater a ignorância, a vulgaridade e a sem-vergonhice do povo. Dessa maneira, usando um humor ácido, ridicularizava-se a tudo que era considerado como grosseiro para as elites. Não por acaso, o alvo das pilhérias eram os escravos e pobres livres, pardos e negros. Estes tinham hábitos condenáveis: falavam alto, praticavam jogos de azar, bebiam cachaça, etc.
Os pasquins voltavam-se, sobretudo, para fofocar sobre a vida alheia e destinavam-se particularmente ao público feminino. A linguagem era direta, acessível a todos, ao contrário do estilo rebuscado dos jornais da época, havia uma ansiedade dos leitores: a curiosidade em saber de quem os jornalzinhos estavam falando e o cuidado de não cometer “as gafes” ali citadas e virar alvo de chacotas. A ridicularização dos comportamentos grosseiros gerava embaraços e vergonha, estimulando a adesão à conduta civilizada desejada pela classe dominante. 

extraído do livro 
História do Ceará, de Airton de Farias    
 

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