Rua Formosa (atual Barão do Rio Branco) em 1910. Havia grande preocupação com a higienização da cidade e a (falta de) educação da população mais pobre.
O fato de se afirmar que havia normas de conduta e
disciplinamento em uma sociedade não significa dizer que existia obediência das mesmas pelas
pessoas – ao contrário, no caso de Fortaleza, a massa reagia a essas normatizações, por vezes,
abertamente, outras vezes usando táticas para burlar ou desprezar ao que autoritariamente era imposto “de cima
para baixo”, e limitava seu modo de ser.
Assim, era grande a reincidência e a
consequente detenção por vadiagem, de pessoas que haviam assinado o chamado Termo de Bem
Viver (documento assinado em juízo pelo qual o acusado reconhecia sua má
conduta e comprometia-se a não mais praticá-la, sob pena de ser preso em caso
de repetição).
Outra forma de resistência pode ser identificada pela compulsão dos populares ao deboche, ironia e sátira. No final do século XIX e
primeiras décadas do século XX ficaram famosos em Fortaleza os tipos populares,
que riam e faziam rir de qualquer coisa jocosa que acontecesse nas ruas – daí tal
comportamento, profundamente censurado pelas elites e classes médias, ter
ganhado a alcunha de “Ceará Moleque”, expressão inclusive já existente à época.
A Praça do Ferreira sempre foi o local preferido para as manifestações de desagrado da população. (foto do livro A Tela Prateada)
O local preferido para as manifestações e “excentricidade”
do povo era a Praça do Ferreira, por
onde passavam bondes, gente com as últimas novidades, os sisudos senhores
proprietários e onde se encontravam as lojas mais elegantes e os principais
cafés. Qualquer pessoa ou episódio que quebrasse a rotina eram pretexto para a
divertida molecada soltar vaias, gracejos, palavras ou bolar os apelidos e escárnios,
os mais engraçados.
Pode-se entender a
irreverência popular – num momento de disciplina e higienização da cidade, como
uma forma de alivio ante a pressão social representada pelas más condições de vida
e trabalho daquela massa de pobres, bem como uma expressão de descontentamento
perante a normatização urbana que as elites tentavam impor.
Rua Major Facundo, início do século XX (foto do arquivo Nirez)
Por serem feios, sujos, anti-higiênicos, estranhos, exóticos
ou diferentes, os tipos populares e o
comportamento jocoso do povo chocavam-se frontalmente e ofendiam os padrões
civilizatórios que os grupos médios e dominantes se esforçavam em estabelecer para
acompanhar os valores modernos da Belle Epoque. No fundo era uma tática de
resistência popular.
Passeio Público - Avenida Caio Prado - Neste espaço privilegiado, foram introduzidas práticas sociais de
educação e postura, normas de comportamento que eram antagônicas a
balbúrdia e a irreverência típica das praças e seus frequentadores. Assim, apesar de público
em seu momento de instauração, esse logradouro representou um espaço
segregado na cidade, construído por e para uma elite econômica e
social, que estabeleceram elegantes e comportados padrões para um grupo
social diferenciado.
O humor também foi usado como forma de causar constrangimento, reprimir e censurar, forçando as pessoas a se adequarem à disciplina civilizatória desejada pelos setores dominantes da sociedade. Os pasquins de Fortaleza da virada do século, faziam uma verdadeira cruzada em defesa dos bons modos, tendo como arma a exposição e o vexame público. Para eles, era necessário combater a ignorância, a vulgaridade e a sem-vergonhice do povo. Dessa maneira, usando um humor ácido, ridicularizava-se a tudo que era considerado como grosseiro para as elites. Não por acaso, o alvo das pilhérias eram os escravos e pobres livres, pardos e negros. Estes tinham hábitos condenáveis: falavam alto, praticavam jogos de azar, bebiam cachaça, etc.
Os pasquins voltavam-se, sobretudo, para fofocar sobre a
vida alheia e destinavam-se particularmente ao público feminino. A linguagem
era direta, acessível a todos, ao contrário do estilo rebuscado dos jornais da
época, havia uma ansiedade dos leitores: a curiosidade em saber de quem os jornalzinhos estavam falando e o cuidado de não cometer “as gafes” ali citadas
e virar alvo de chacotas. A ridicularização dos comportamentos grosseiros
gerava embaraços e vergonha, estimulando a adesão à conduta civilizada desejada
pela classe dominante.
extraído do livro
História do Ceará, de Airton de Farias
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