terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Memórias do Mucuripe

 

A Criação do Cemitério 


É de bom tamanho/ nem largo nem fundo/ 
é a parte que te cabe/ neste latifúndio 
(João Cabral de Melo Neto-Chico Buarque)


Seu Arcanjo morava no Mucuripe. Pobre e portador de hanseníase, não vivia confinado nem afastado da convivência de seus amigos, como era recomendado na época. No Mucuripe, ninguém tinha medo da doença de “seu” Arcanjo, e muitos vizinhos até davam uma ajuda nos serviços da casa dele.

Seu Arcanjo, sentado em frente ao seu casebre, vendo passar quase todo dia, pessoas com uma estaca atravessada nos ombros, carregando defunto numa rede, para enterrar no São João Batista, resolveu que aquela situação não podia continuar. E teve a ideia de lutar por um cemitério próprio para o Mucuripe. O ano era 1916, depois da seca de 1915, que deixou um rastro de miséria, fome, doença e morte.

Procurou o “coronel” Jesuíno, o homem mais importante do lugar, nome de rua importante do bairro atualmente, dono de extensos terrenos naquela região. Manuel Jesuíno também tinha bom coração e doou a terra para o cemitério. Mas não havia dinheiro para cercar o terreno. Então, seu Arcanjo pensou numa maneira de arrumar os recursos, e inventou a “associação do vintém”. Pescadores, labirinteiras, boleiras, cuscuzeiras, chegaram juntos na campanha do vintém, e arrecadaram o bastante para comprar os arames. O coronel autorizou a retirada das estacas das suas matas, que se estendiam dum lado e do outro do Maceió, subindo até a região do Cocó.

Com estaca e arame, o resto foi fácil. Logo o terreno estava todo cercado e o cemitério criado. O melão de São Caetano e a salsa cresceram naturalmente, formaram uma cerca viva em torno do terreno e impediram a entrada de animais. O cemitério concebido por “seu” Arcanjo, o hanseniano, implantado em terras de Manuel Jesuíno, o latifundiário, e cercado pelo povo com os vinténs de cada um, localizado em plena Avenida da Abolição, olhando para a matriz de Nossa Senhora da Saúde, dizem, está superlotado.

O cemitério do Mucuripe, denominado São Vicente de Paula (o correto seria São Vicente de Paulo, nascido Vincent de Paul, sacerdote francês), é o segundo cemitério público criado em Fortaleza e é também o menor da cidade, com menos de 600 jazigos. O amontoado de jazigos é tão grande que as covas ficam coladas até o portão de entrada. De acordo com a prefeitura, a falta de recuo em relação aos imóveis do entorno vem desde a construção do espaço.


As Meninas da Rua da Frente


Boneca noturna que gosta da lua/Que é fã das estrelas/ e adora o luar/Que sai pela noite e amanhece na rua/ E há muito não sabe o que é luz solar. 
(Adelino Moreira-Nelson Gonçalves)

casas na Praia do Meireles - rua da Frente anos 40 imagem IBGE (colorizado por computador)

A Rua da Frente era como era chamado um trecho da atual Avenida Beira Mar. E era uma babel, uma misturada de gente, de famílias tradicionais, netos e filhos de jangadeiros pobres, e muitas, numerosas prostitutas. E eram estas que animavam a vida daquela praia. As “meninas” faziam a diferença, viviam aquela vida desregrada, trocavam o dia pela noite, bebendo, amando, brigando por causa de homens, geralmente pescadores e marinheiros, que aportavam no Mucuripe, vindo de mares desconhecidos.

orla marítima do Mucuripe anos 40 - imagem IBGE

Da mesma forma que o curral do antigo Arraial Moura Brasil, o Mucuripe foi durante muitos anos, uma animada zona de prostituição, onde o vicio e o pecado caminhavam ao lado do trabalho e da solidariedade. Os moradores da mesma área testemunhavam que essas mulheres, no que pese a vida libertina que levavam, eram generosas, prestativas e tinham espírito solidário.

Quando chegou a urbanização, invocação do progresso, uma das primeiras providências foi pensar numa maneira de como acabar com a Rua da Frente a fim de implantar a moderna Avenida Beira Mar. E como transferir aquela gente, muito com raízes fincadas desde os primórdios da cidade.

De pronto apareceu uma proposta. As mulheres iriam para um local, as famílias para outro. Coube às primeiras a zona do farol e para os jangadeiros e outros moradores, a Praia do Futuro e adjacências. A mudança foi monitorada pelo então vigário padre José Nilson e coordenada por uma das “meninas” que negociou com representantes do prefeito Cordeiro Neto. A prefeitura pagou indenizações e providenciou a construção de casas para moradia. Nada menos de 1.332 mulheres foram conduzidas da Rua da Frente para o Mucuripe.

região do farol antes da mudança - 1935 - imagem Arquivo Nirez 


Depois da mudança - anos 60 (imagem Anuário do Ceará

A transferência foi aceita pela maioria até com certa satisfação. Foram adotadas diversas iniciativas para assegurar as mínimas condições de moradia para o local em que as mulheres seriam acomodadas. Assim, foram introduzidos melhoramentos na área, como água, luz, e  transporte.

Surgia assim, ampliando os limites do Mucuripe, a zona do Farol, que a prefeitura batizou depois de Vicente Pinzon, numa homenagem ao primeiro estrangeiro que andou pelo Mucuripe. Da mesma forma, os outros moradores foram transplantados para diferentes pontos, em especial para a Praia do Futuro, em casas construídas pela prefeitura.  

 

Extraído do livro “Mucuripe de Pinzon ao Padre Nilson/Blanchard Girão/Fortaleza/Edições Fundação Demócrito Rocha/1998/informações adicionais dos Jornais Diário do Nordeste e o Povo/Publicação Fortaleza em Fotos

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