terça-feira, 23 de julho de 2024

Tipos de Rua da Fortaleza de Outrora


Na Fortaleza de antigamente sempre eram encontrados alguns tipos de ruas, pessoas geralmente desprovidas de recursos e cuidados, sem suporte familiar, alguns viciados em bebidas alcoólicas, outros simplesmente abandonados à própria sorte, que apresentavam sintomas de deficiências mentais. 



Um dos mais conhecidos era o Antônio Galo Chinês, que perseguia e mostrava grande agressividade, quando os moleques, para irritá-lo, imitavam o canto de galo. A perseguição era certa, e munido de um pedaço de pau, o pobre do mendigo muitas vezes conseguia se vingar do autor da ofensa. Mas o Galo Chinês não estava sozinho, havia muitos outros: Papai-abre-o-olho; Mocó-Tinindo, Sabão-mole; Romão; Casaca-de- Urubu; Palheta.  

Não havia esgotos ou fossas, os despejos domésticos ficavam acumulados durante semanas, em barris especiais, de forma cônica, chamados de quimoas, ou cambrones, que eram retirados das casas e lançados ao mar pelo Romão e pelo Sabão-Mole. O Romão era um antigo escravo, brutalizado pela miséria. Imundo, andava meio curvado, apoiado numa bengala improvisada, rosnando palavrões por qualquer motivo. Sustenta-se de cachaça, come vísceras cruas que lhe dão na feira, misturadas com farinha. Quando pega no sono, em qualquer vão de porta, a mulher e as filhas, três negras igualmente miseráveis, que o seguem à distância, vasculham seus bolsos atrás das moedas que sobraram da aguardente.


Uma tarde ia o Romão com sua carga mau cheirosa, pela calçada da Santa Casa, rumo à rampa do gasômetro que leva à praia. De repente, o apodrecido fundo do barril de imundície cede e afunda enterrando-lhe a cabeça até os ombros. O infeliz braceja como um cego, enquanto toda a gente ao redor, foge sem coragem de socorrê-lo. As irmãs de caridade da Santa Casa, mandam os jardineiros lhe atirarem alguns baldes de água, que o salvam daquela indigna situação. Pobre do Romão! Quando não conseguiu mais trabalhar, deixaram-no viver a um canto da Cadeia Pública, onde terminou seus dias.

O concorrente do Romão no asqueroso ofício é o Sabão-Mole, mestiço alto, cuja face amarelada semelhante ao sabão amolecido na água, deu origem ao apelido. Andava em companhia de uma mulher bem mais velha do que ele, que parecia sua sombra. Um dia a mulher o abandonou, e o Sabão-Mole vagava solitário, procurando trabalho indagando nas portas das casas: – tem limpeza hoje, freguesa?

Junta-se um bando de moleque atrás dele, gritando:  – Sabão- Mole, cadê a velhinha?  E o rapaz que ninguém sequer sabe seu nome, empunha furiosamente seu cajado de jucá e grita reprimendas com palavras obscenas. É um mestre do baixo calão, conhece todo o vocabulário. As famílias retiram-se das janelas , batendo vidraças e venezianas. As vezes a polícia é chamada, mas ao invés de reprimir os agressores que o provocam, levam o Sabão-Mole aos empurrões e o trancafiam no xadrez por algumas horas. Quando atravessa a Praça do Ferreira, então um vasto areal emoldurado de árvores antigas, com um cacimbão de pedra de Lisboa ao meio e um café ou quiosque de madeira a cada canto, Padre Macaíba, sacerdote brincalhão, emboscado a um canto da Farmácia Pasteur, disfarçando a voz, faz a pergunta que tira o Sabão-Mole do sério – Sabão Mole, cadê a velhinha? – “estou reconhecendo essa voz... é do Padre Macaíba... olhe seu padre, só não digo que está na **##**@## , porque o senhor é padre. Senão, diria...”


O Casaca-de-urubu é um cabra com sangue nos olhos, valentão, contínuo do Tribunal de Relação, cobrador terrível de contas perdidas e vendedor de latas de goiabadas nas horas vagas. Veste os fraques usados que lhe dão os desembargadores, daí seu apelido. Epiléptico e perigoso, anda sempre gesticulando, murmurando coisas desconexas sobre os maus pagadores e doces de goiaba. A molecada grita de longe, precavidamente: – Casaca de Urubu! Bu! Bu!. Ele esperneia, atira pedras, dá socos em si próprio com toda a força; no auge da fúria, vem o ataque epilético, cai no chão, espumando, se machucando, às vezes sangrando.

O Palheta é alto, esquelético, de ombros levantados, e andar vagaroso. Usa um chapéu de palha sobre a testa, chupando um eterno cigarro apagado. Muito calmo, faz ponto pelas esquinas mais frequentadas do velho centro. Vive de dar calotes, de aplicar golpes, de iludir a boa-fé dos que param para ouvi-lo. Conta misérias, vende joguinhos, cartões de rifas falsas, ingressos de teatro sem valor e bilhetes corridos de loteria.

 – Palheta! Gritam os moleques e acrescentam uma rima obscena; não dá escândalo, finge que não é com ele. Muda de pouso muito sério, muito digno. Mas vai resmungando impropérios e proferindo todo um repertório de palavrões e obscenidades.

O Mocó-Tinindo mora numa casinha de taipa, à sombra de uma tamarineira no alto de um barranco, além do Benfica, na estrada da Parangaba. Ao tempo da festa de Bom Jesus, padroeiro da antiga Arronches, os bondes andam repletos de moças ou com os estribos cheios de rapazes. E estes por pilhéria, gritam quando passam pela casa, o apelido odiado: Mocó-tinindo! Ele surge à janela, faz gestos indecentes, e os xingamentos sobram para todos que estão no bonde. As moças ficam envergonhadas. Os rapazes morrem de rir.

O Papai-abre-o-olho é vítima de troça e fica tomado de fúria quando lhe gritam a alcunha, que responde com xingamentos e berros hediondos. Não se sabe a origem do apelido.

Um poeta dizia que a falta de piedade dos meninos por estes infelizes é um tanto inconsciente. Falta-lhes a educação cristã, a única capaz de imprimir às almas em formação, o sentimento de verdadeira caridade, que muita gente pensa que consiste em tirar uma moeda do bolso e dar uma esmola. Essas pobres criaturas, vítimas da pobreza, do abandono, do desdém e do desprezo, há muito repousam em paz, lá onde não ouvem mais os escárnios que tanto os faziam sofrer.


Extraído do livro “Coração de Menino” /Gustavo Barroso/Livraria José Olympio/Rio de Janeiro/1939. Post Publicação Fortaleza em Fotos/Imagens postais antigos e Arquivo Nirez. 

    

2 comentários:

VIVIANE disse...

AMO DEMAIS SUAS POSTAGENS

Fátima Garcia disse...

obrigada Viviane