quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Fortaleza tinha tudo para não dar certo

A crônica histórica de Fortaleza se iniciou, de maneira mais precisa, com o filho de inglês Henry Koster, ao escrever o livro Travels in Brazil, publicado em Londres em 1916 e traduzido por Luís da Câmara Cascudo, em 1942, com o título Viagens ao Nordeste do Brasil. Nascido em Portugal, veio por motivo de saúde fixar-se no Recife, por sugestão de amigos e da família.
Em 1810, a 3 de novembro, inicia uma viagem maluca – cerca de 156 léguas a cavalo, em tempo de seca, varando agreste, praia, caatinga, tabuleiro e sertão, até Fortaleza. Viaja anotando tudo, os homens, as raças, as paisagens, os animais, a natureza dos terrenos, crianças, tarefas agrícolas, produtos, indumentárias, ferramentas de trabalho, crenças, usos e costumes.

 A Igreja do Rosário é a mais antiga de Fortaleza (construída por escravos em 1730)  e foi uma das avistadas por Henry Koster

Koster demorou em Fortaleza de 16 de dezembro de 1810 a 8 de janeiro de 1811, e consignou no seu diário de viagem, valiosas informações sobre a capital da Colônia do Siará Grande, à época governada por Luis Barba Alardo de Menezes (junho de 1808 a março de 1812).
“A Vila de Fortaleza do Ceará – escreve o luso-inglês – é edificada sobre terra arenosa, em formato quadrangular, com quatro ruas partindo da praça (Praça do Conselho, hoje Praça da Sé) e mais outra, bem longa, do lado norte desse quadro, correndo paralelamente, mas sem conexão”. 

  residência do governador das Armas do Ceará em 1824. Ficava na Praça da Sé na atual Rua Sobral, em frente ao Paço Municipal. 
Um governador das armas constituía cada um dos comandantes territoriais do Exército Português, entre 1641 e 1836. Cada governador das armas tinha a seu cargo um governo das armas, sendo responsável pelas tropas estacionadas numa província

“As casas têm apenas o pavimento térreo e as ruas não possuem calçamento,  mas em algumas residências, há uma calçadas de tijolos diante. Tem três igrejas, o Palácio do Governador, a Casa da Câmara e Prisão, Alfândega e Tesouraria. Os moradores devem ser uns mil e duzentos. A fortaleza de onde a vila recebe a denominação fica sobre uma colina de areia, próxima às moradas e consiste num baluarte de areia ou terra, do lado do mar, e uma paliçada enterrada no solo, para o lado da Vila (somente em 1812, no governo de Manuel Sampaio a fortaleza foi reconstruída em alvenaria), contém quatro peças de canhão, de vários calibres, apontadas para muitas direções. Notei que a peça de maior força estava voltada para a Vila. A que estava montada para o mar não tinha calibre suficiente para atingir um navio no ancoradouro comum. O armazém da pólvora está noutro ponto e é visto do porto”. 

 Casa dos Governadores na Rua dos Mercadores (atual Conde D'Eu). No mesmo local hoje funciona o Centro de Referência do Professor

“Não é muito para compreender-se a razão da preferência dada a este local.  Não há rio nem cais e as praias são más e de acesso difícil. O porto é exposto e mau. Os ventos são sempre do sul e do leste. Fossem mais variados, e seria raro um navio chegar à costa. Os edifícios públicos são pequenos e baixos, mais limpos e caiados, e perfeitamente adaptados aos fins a que se propõem. Não obstante a má impressão geral, pela pobreza do solo em que a Vila está situada, confesso ter ela boa aparência, embora escassamente possa este ser o estado real dessa terra. A dificuldade de transporte terrestre, particularmente nessa região, a falta dum porto, as terríveis secas, afastam algumas ousadas esperanças no desenvolvimento, não tomará grandes impulsos. Os longos créditos que se é obrigado a conceder aos negócios locais, fecham os cálculos de rápidos pagamentos como estão habituados os comerciantes ingleses”.

 prédio da Tesouraria Provincial em 1842

A capital do Siará Grande, a julgar por essas impressões de Koster, não passava de uma pobre aldeia, sem melhor vitalidade e sem esperança de se desenvolver. Pobreza sobre pobreza: sem calçamento, sem iluminação pública, sem transportes, senão no lombo de cavalos. Naquele areal, nem os carros de bois podiam trafegar. O viajante francês L.F. Tollenare quase cobriu o roteiro de Koster, alguns anos mais tarde, em 1817, quando administrava a Colônia do Siara Grande, o governador Manuel Inácio de Sampaio (março de 1812-janeiro de 1820). A capital cearense é chamada de Cidade do Ceará, e o viajante calcula de 1.000 a 1.200 o número de seus moradores, enfatizando ainda a precariedade do porto.

prédio da Assembleia Provincial
 
Essa pobreza da capital do Ceará continuaria por longo tempo, mesmo depois de promovida à categoria de cidade, por decreto imperial de 17 de março de 1823, as ruas sem pavimentação, às escuras durante à noite, todos andando à pé, pois não havia ainda qualquer espécie de veículos. As casas não apresentavam nenhuma estética em suas fachadas e o conforto interno era quase rudimentar, sem serviço de água e com iluminação mortiça a azeite de peixe.


Centro de Fortaleza, anos 70

Mesmo depois do início do seu povoamento, de se transformar em cidade, a capital do Ceará tinha tudo para não dar certo, conforme previa Koster. Das dificuldades geográficas e naturais que impunha a seus exploradores, ao desinteresse econômico e político por parte da Coroa Portuguesa em relação ao seu território, muitos foram os fatores que fizeram o povoado atravessar mais de três séculos em total ostracismo.

Avenida Barão de Studart (foto Fátima Garcia)

Tanto que, historiadores, cronistas e geógrafos, até hoje não sabem explicar com precisão, o que levou aquele povoado ermo e abandonado à própria sorte - fincado numa planície arenosa, sem grandes potenciais agrícolas, sujeita à secas periódicas, sem baías aportáveis e sem uma foz de rio navegável - se transformar numa das maiores metrópoles do País. Fortaleza tinha tudo para não dar certo. E deu.     


fotos do Arquivo Nirez
fontes:
Fortaleza e a Crônica Histórica, de Raimundo Girão
Revista Fortaleza, fascículo 2, de 13/04/2006 
Wikipédia
 

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