domingo, 3 de fevereiro de 2019

O Otávio Bonfim que eu conheci


Rua Justiniano de Serpa, próximo à Domingos Olímpio. Ao fundo, à esquerda, o muro do convento dos Franciscanos. Anos 70 - Acervo particular

Um dos mais antigos de Fortaleza, o bairro que tem nome oficial de Farias Brito – em homenagem ao filósofo nascido em São Benedito – é mais conhecido pelo apelido: Otávio Bonfim, nome de um engenheiro que trabalhou na estação ferroviária do bairro. Assim, a antiga Estação do Matadouro, recebeu o nome do engenheiro, que segundo dizem, faleceu num acidente rodoviário. Como naquela época a estação era o equipamento mais importante do bairro, acabou virando Otávio Bonfim. A estação nem existe mais, contudo, o nome ficou para a posteridade.

Sobre a estação, inaugurada em 1922, há uma crença equivocada que a mesma recebeu retirantes da seca de 1915, história contada pela própria Rachel de Queiroz, no seu romance best-seller “O Quinze”.

No mesmo atordoamento chegaram à Estação do Matadouro. E, sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e se viram levados através da praça de areia, e andaram por um calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo. Só aos poucos se repuseram e se foram orientando. 
(Rachel de Queiroz - O Quinze, pág. 39)


Foto do site Estações Ferroviárias - anos 70

Conforme o site “Estações Ferroviárias, até 1917 a linha instalada pela antiga Estrada de Ferro Baturité passava por outro trajeto, que corresponde hoje a Avenida Tristão Gonçalves, até a Estação Central. A partir daí os trilhos foram arrancados e um novo trajeto foi estabelecido mais a oeste do centro, cortando os bairros do Jacarecanga, Otávio Bonfim e Porangabuçu, chegando até Couto Fernandes. Portanto, a Estação do Matadouro não teve esse protagonismo que lhe foi atribuído nesse período. 
  
As principais diversões do bairro tinham origem em dois locais: a Igreja das Dores e o Cine Familiar. A Senhora das Dores estava sempre no centro dos acontecimentos. Nos meses de Junho e Outubro, promovia as trezenas de Santo Antônio e as novenas de São Francisco, respectivamente. No último dia da festa, o dia do santo propriamente dito (13 de junho – Santo Antônio; 4 de outubro – São Francisco), havia o encerramento em grande estilo: a missa era campal, os sinos tocavam alegremente e se formava uma grande procissão, que se arrastava pelas ruas do bairro.


Igreja de N. S. das Dores ainda sem o relógio na torre,e sem o Salão Paroquial, construído ao lado da igreja em 1959. A Pracinha em frente recebeu o nome de Praça de Otávio Bonfim em 1941, e na época da foto, quase não tinha arborização. No lugar da estátua de Farias Brito, que hoje se encontra no centro da praça, existia esse busto do Almirante Tamandaré, que tinha um pedestal que imitava uma proa de navio. A praça era bem menor em relação ao seu tamanho atual. Foto do Arquivo Nirez, dos anos 50

No cortejo, um andor ricamente enfeitado, o padre e os coroinhas todos paramentados, banda de música, uma chusma de anjinhos vestidos à caráter, e todas as irmandades, com estandartes, portando suas fitas coloridas num misto de fé e comemoração: fitas vermelhas do Apostolado da Oração, Fita azul das Mães Cristãs, fita amarela para os meninos da Cruzada, uma opa marrom para os membros da Ordem Terceira Secular. 

Encerrada a parte religiosa, começava o capítulo da arrecadação de recursos, quando no pátio externo era armado um palanque de madeira para a realização de leilão. As prendas para o leilão eram arrecadadas junto aos moradores, geralmente bolos, galinhas cheias (de quê?) e outras guloseimas, e alguns objetos, tudo embalado em colorido papel de seda.
  
Cine Familiar, ficava vizinho à Igreja das Dores - foto do Arquivo Nirez

O leiloeiro era o Irapuan Lima, e acho que já era figura conhecida naquela época (anos 60), porque alguns se admiravam dele estar sempre lá, trabalhando de graça para engordar os cofres da igreja. Outro que vivia por ali no sereno dos leilões, sempre acompanhado de suas duas filhas, era o ainda hoje conhecido Vavá, atualmente proprietário do Cine Nazaré. Naquela época, Vavá era o responsável pelo funcionamento do Cine Familiar, e acho que ele ajudava (ou fazia tudo) na iluminação do pátio e instalação do som, onde se realizava o leilão. Outra tradição da Igreja, era a distribuição do pão de Santo Antônio, às 3as. Feiras. Vinha gente de longe, para receber o alimento.   

Na esquina da praça de Otávio Bonfim com Rua Dom Jerônimo, ficava a sede da SUMOV – Superintendência Municipal de Obras e Viação, órgão da prefeitura encarregado das obras e embelezamento da cidade, e que ocupava o terreno onde outrora funcionou o matadouro. A SUMOV foi extinta em 1997 e deixou um clube de futsal na orfandade. 

Rua Justiniano de Serpa, com o muro do Convento dos Franciscanos à direita. Foto do Arquivo Nirez

Na Rua Justiniano de Serpa, num larguinho no cruzamento com a Rua Bela Cruz ficava a primitiva Capela de São Sebastião, desativada desde a inauguração da Igreja das Dores, no início dos anos 30. Os moradores a chamavam de “igrejinha”, e era bastante singela, erguida em uma calçada alta, com três portas em arcos na fachada principal, uma porta lateral em cada lado, e uma cruz no alto. No seu interior, alguns bancos de escola onde eram ministradas aulas de catecismo para os meninos que estavam sendo preparados para a primeira comunhão. E num nicho meio esquecido, uma pequena imagem (ou seria um quadro?) de um São Sebastião com o corpo traspassado de flechas. Essa igrejinha, antecessora das Dores, foi demolida por volta dos anos 80. No seu lugar, construíram uma pequena praça que deram o nome de Praça Frei Teodoro, um frade franciscano alemão morador do convento, que militava nas causas sociais da igreja, e tinha grande afinidade não só com os fiéis, mas com muitos moradores do Otávio Bonfim.

Cruzamento das ruas Justiniano de Serpa e Bela Cruz, local da igrejinha demolida nos anos 80. Atual Praça Frei Teodoro. imagem google

Na mesma Rua Justiniano de Serpa, antiga Estrada do Gado, havia várias bodegas, precursoras dos atuais supermercados, cujos proprietários eram bastante populares em razão do seu ofício e por causa das facilidades que ofereciam: cadernetas de fiado e vendas a retalhos, estavam sempre na ordem do dia. Um dos mais antigos, atendia em uma casa com duas portas na fachada, vendia carvão e outros artigos hoje totalmente obsoletos. O proprietário faleceu junto com sua mulher num acidente automobilístico na Avenida João Pessoa, engrossando a estatística da via que já era conhecida por “Avenida da Morte”. O casal tinha alugado um carro no Posto Onze, que funcionava na pracinha em frente à igreja das Dores, e se dirigia para o aeroporto, quando aconteceu o acidente. 

Mas, além dessa, que algum tempo depois voltou a funcionar com outro proprietário, ainda havia várias bodegas que quebravam o maior galho dos lisos da época. Havia a bodega do "Seu" Antônio, famoso pela limpeza das instalações, que tinha umas prateleiras que ocupavam uma parede inteira com garrafas de cachaça, todas iguais, com os rótulos rigorosamente no mesmo ângulo, onde se lia “Aguardente de Cana Idealista”. Seu Antônio era casado com a dona Anísia (uma das mais fervorosas colaboradoras dos leilões) a "galinha cheia ofertada pela dona Anííísia" conforme anunciava o leiloeiro, era uma das prendas mais cobiçadas, tanto que ficava quase sempre, para o final do leilão. 

Havia ainda a Bodega de "Seu Batista", esse sim bodegueiro raiz. Vendia de fumo de rolo à meia barra de sabão. Passava o dia de pijama e sapato e vivia com Dona Judite, a esposa, que era um poço de antipatia. A bodega dos dois ficava justamente na esquina da igrejinha.

Arquivo Nirez

A Avenida Bezerra de Menezes já existia, mas não chegava até o nosso bairro. Na época o trecho entre o Mercado São Sebastião até o então Grupo Escolar Presidente Roosevelt, atual E.E.E.P. Presidente Roosevelt, chamava-se Rua Juvenal Galeno. Logo no início da Juvenal Galeno alguém construiu um pequeno açude, formado pelo represamento das águas do riacho Jacarecanga. O açudinho, como era chamado, assumia ares de grande reservatório, ganhava corpo e força quando no período de chuvas. Era bastante frequentado pelos meninos da vizinhança e alguns afogamentos foram registrados lá. Ficava no local onde hoje está a empresa Aço Cearense, quase em frente ao Mercado São Sebastião. 

Em seguida, vinham os jardins Japonês e São José, que eram atravessados por um filete de água corrente, imagino que proveniente do sangradouro do açudinho. Esses dois jardins ocupavam todo o quarteirão onde hoje se encontra o supermercado Assaí, no início da Bezerra de Menezes. 

Havia outros estabelecimentos comerciais na Rua Juvenal Galeno, como a Fábrica Siqueira Gurgel/Usina Ceará, na esquina com a Avenida José Bastos, e na outra esquina, em frente a fábrica, estava a farmácia da Dona Rosélia, acho que a única do bairro. Em 1967, inauguraram a nova avenida Bezerra de Menezes, e o piso rústico e irregular daquele trecho, sumiu junto com a Rua Juvenal Galeno, e a nova avenida revista e ampliada, passou a ter início no Mercado São Sebastião. Deve ter sido por essa época que o açudinho foi aterrado.

início da Avenida Bezerra de Menezes. à esquerda da foto, onde estão as palmeiras, ficava o Jardim Japonês. O jardim ficava abaixo do nível da via. Foto do Arquivo Nirez 

Depois da inauguração da Avenida Bezerra de Menezes, não sei se foi o Otávio Bonfim que, pouco a pouco começou a perder sua identidade, ou se fui eu que, como diria Milton Nascimento, “partiu por outros assuntos”. O fato é que muita gente se mudou, muito comércio novo apareceu, os jardins fecharam e deram lugar ao primeiro supermercado da área – o Mercantil São José – a Siqueira Gurgel também virou supermercado, a Renovadora de Pneus Batista, que ficava na esquina da Justiniano de Serpa com a Rua Larga, ardeu numa monumental fogueira de fumaça preta, que chegou a clarear a noite do bairro, e causou enorme apreensão por causa da proximidade com o posto de gasolina, localizado em frente, do outro lado da avenida. O Cine Familiar deixou de exibir as chanchadas da Atlântida nas manhãs de domingo, e por isso, virou colégio, o Padre Champagnat. O discreto piso de mosaico da Igreja das Dores foi substituído por um espalhafatoso porcelanato branco, que deixou o templo com cara de shopping center. 


foto Fortaleza em Fotos/2011

Hoje, andando por lá, não reconheço quase nada e apenas algumas poucas pessoas. O Otávio Bonfim que eu conheci, perdeu-se nas brumas do passado.  

(redigido por Fátima Garcia com o precioso auxílio de alguns dos seus inúmeros irmãos)

16 comentários:

Unknown disse...

Amei mora neste bairro muito divertidos as festas religiosas e as pessoas das vizinhanças.

Unknown disse...

Nasci e me criei no Otávio bomfim. Tenho boas recordações da minha infancii e amei rever as fotos de origem desse tão renomado bairro. Parabéns .....

Margarida Garcia disse...

Morava perto da igreja de São Raimundo e revive a minha infância lendo a postagem. As histórias se misturam e encantam

Unknown disse...

É o local mais gostoso de Fortaleza, prá se viver.

Anônimo disse...

Morei na Rua Justiniano de Serpa. Que prazer poder reviver lembranças tão especiais. Obrigada!

Eliane Caminha disse...

Cresci entre as ruas José Bastos e D. Jeronimo, entre as décadas de 60 e 70. Rever o querido Otávio Bonfim de antigamente bateu saudade.

yara disse...

Saudades da minha infância. Faltou falar do colégio padre champgnat

Milena disse...

Plena e grata por ter vivido essa época. infelizmente, hoje, essas praças são redutos de vagabundos; traficantes e usuários de drogas. Decadência com "elegância".

FRANCISCO EDSON CABRAL disse...

Gostei muito das referências do Bairro, senti falta de uma citação ao 'cajueiro'que existia no término da Rua Juvenal Galeno, onde hoje existe a caixa d'água da foto. Era referência das pessoas que iam apanhar o ônibus já que era local de parada, tanto na ida quanto na volta.

Anônimo disse...

Você teria fotos antigas da rua Dom Jerônimo?

Silvania Marques disse...

Nasci, me criei e vivi no otávio Bonfim até meus 16 anos, e até hj eu amo esse bairro, amo a minha Igreja das Dores, onde fui batizada e fiz a Primeira Eucaristia, aliás eu passava mais tempo no Convento dos Franciscanos do que na minha casa, os frades eram muito amáveis e os jovens tinham muita liberdade nas dependências do convento, onde podíamos brincar, praticar esportes, tocar instrumentos, participar de grupos, etc. O melhor era participar da quadrilha junina, comandada por Frei Carlos, era bom demais... muita saudade.

Unknown disse...

Muito bom! Como é bom recordar.

Unknown disse...

Vivo aqui até hoje e amo esse bairro

Unknown disse...

Meus pãis morovam na rua Otávio Bonfim na antiga cercado Zé padre, Meu pai trabalhava no mercado São Sebastião e meu avô , Minha infância foi nessa bairro, Eu morava perto do jardim japonês,Eu me lembro que tinha um mercantil na época mercantil 12, Eu era muito criançaEu fiz a primeira comunhão nessa ingeja nossa senhora das Dores, Minha mãe chama-se Maria das Doris,e conhecida como Dorinha ela trabalhou na antiga Siqueira Gurgel, Quantas saudades.

Anônimo disse...

Cheguei no Otávio bom fim en dezembro de 1971 tinha 9 anos ainda hoje moro no bairro sai daqui não ficaria bem até tentei mais fiquei muito triste então voltei jkkk! E essa moça que comenta Fátima Garcia acho que é filha filha do seu Garcia dona neuma acho que é uma família do bem entre eles Tarcísio Edson Eugênia só gente boa

Fátima Garcia disse...

olá anônimo (a), sou sim a filha de Dona Neusa e seu Garcia, diga ai seu nome para que eu possa falar pro Tarcísio e a Eugênia e demais irmãos sobre você. Um grande abraço