Afilhado de Padre Cícero, filho de Exu criado no
Juazeiro, o gigante negro aportou por estas plagas por volta da metade dos anos
40. Quase dois metros de altura, retilíneo, músculos de atleta, formas que a
farda em permanente aprumo, delineava. Na mão enorme, a presença infalível de
um rebenque, peça de caprichado labor artesanal, cuja bainha, segundo a lenda
corrente, escondia uma enorme lâmina de punhal. Cercado de lendas, João
Apolinário da Silva, inspetor da Guarda Civil de Fortaleza, impôs sua marca
durante longo período naquela distante Fortaleza.
Dele falavam os que já haviam sentido o peso do famoso
rebenque: o açoite queimava e deixava para sempre a lembrança da humilhação.
Apolinário não era dado a bravatas, mas impunha-se pela fama de sua coragem
pessoal, da violência de suas atitudes de policial, principalmente se estavam
em jogo a segurança dos chefes e a ordem que representava.
Parecia possuir o dom da onipresença. De repente, despontava
descomunal na paisagem calma da Praça do Ferreira, o olhar atento, percorrendo
o horizonte na busca de algo que pudesse ameaçar aquela quietude. Tinha
perfeita consciência dos limites de sua força, da dimensão de sua autoridade.
Nem pensar em partir, de chicote em punho, contra os meninos ricos, que por
aqueles dias costumavam produzir arruaças em pontos conhecidos. Pelo contrário.
Se por acaso os encontrava em suas pândegas barulhentas, mostrava-se cordato,
bom conselheiro, fechando os olhos àquelas “coisas de crianças” e ia em frente,
que não iria se expor ao risco de magoar o filho de um dos protetores. Mas se
era uma confusão na geral do Majestic, já chegava de relho pronto para acalmar
os ânimos.
Garbo absoluto, percebia-se o orgulho com que vestia o
uniforme da célebre Policia Especial, os temíveis “quepes vermelhos”,
instrumento aterrorizante da ditadura getulista, destinada a barrar qualquer
movimento contestatório. Apolinário simbolizava a própria “Especial”, na
elegância do uniforme, na expressão de terror e medo que espalhava.
[A Polícia Especial era uma divisão uniformizada da Polícia Civil, fundada durante o Governo Vargas. Era organizada como uma "força de choque", ou de intervenção, treinada e aparelhada para enfrentar distúrbios populares e manter a ordem pública, num período de grande efervescência política.]
[A Polícia Especial era uma divisão uniformizada da Polícia Civil, fundada durante o Governo Vargas. Era organizada como uma "força de choque", ou de intervenção, treinada e aparelhada para enfrentar distúrbios populares e manter a ordem pública, num período de grande efervescência política.]
Torcedor do Ferroviário, ostentava sua imponência nas
arquibancadas do Presidente Vargas, onde também fazia valer sua presença nas
habituais confusões entre torcedores. Poucos se aventuravam a cometer desatinos
com o Apolinário por perto. Certa vez, em Quixadá, não se sabe se por mera
coincidência ou porque seu faro policial antevira algum perigo, Apolinário
apareceu à beira do campo, o indefectível rebenque a espancar a perna da calça.
O jogo envolvia as seleções de Quixeramobim e Quixadá, rivalidade intensa,
times parecidos, e valentes.
O pobre juiz, à parte aos interesses em choque, ia
fazendo o possível para manter a casa em ordem. Aconteceu que, jogando em casa,
o Quixadá acabou vencendo. O Quixeramobim que vencia, acabou perdendo de 2x1.
Foi o bastante para que os perdedores esquentassem a
cabeça e partissem dispostos a acertar contas com o juiz. A saída do campo, a
malta enfurecida partiu para a explosão de seus ódios e frustrações. Apolinário
surgiu em defesa do árbitro, levando-o até o hotel onde estava hospedado, onde
se pôs de guarda até que os ânimos se acalmassem.
O inspetor era compadre e doublê de protegido e
protetor do senador Olavo Oliveira. Tinha pelo velho senador uma verdadeira
veneração. Os amigos de Olavo, notadamente os da política, gozavam de sua total
simpatia e mereciam tratamento vip em matéria de segurança pessoal.
Apolinário tinha um filho, Crispim, também da Polícia
Especial e soldado raso, como o pai. Um dia, em seu trabalho de ronda policial,
Crispim entrou em confronto com um carroceiro, na Praça dos Leões. Atracaram-se
os dois em violenta refrega pessoal, em que a vantagem pendia para o civil.
Nessa ocasião, Apolinário, naquela onipresença habitual, apareceu no local e
atirou-se sobre o adversário do filho. Não satisfeito, aplicou-lhe várias
chicotadas e o expôs diante de dezenas de circunstantes à mais vexatória
situação. Espancado e humilhado, o homem da carroça ainda foi recolhido ao
xadrez, por desacato à autoridade.
Meses depois, era tempo de campanha eleitoral. Estava
programado um comício no bairro Jardim América, na então Rua Moacir Weyne, hoje
Major Weyne. Anunciava-se a presença de políticos como Raul Barbosa, Stênio
Gomes, Olavo Oliveira e outros, a partir das 8 da noite. Às 7, Apolinário
chegou para cuidar das medidas preventivas de segurança. Rondou o local do
comício, revistou o palanque improvisado, e entrou em uma bodega próxima, onde
pediu uma cerveja. Recostado no balcão de madeira, Apolinário se divertia
amassando uma tampinha de garrafa entre as juntas dos dedos, numa prática que
revelava força e habilidade.
Noite aparentemente tranquila, o bairro nem despertara
ainda para a agitação do comício. De repente, escuridão total tomou conta da
bodega. E num salto felino, com incrível rapidez, alguém atirou-se sobre o
enorme policial, abrindo-lhe a garganta com um profundo golpe de faca. Em
questão de minutos, o inspetor Apolinário estava morto. No chão do
estabelecimento, vencido e destruído pela fúria vingativa e traiçoeira da vítima
sobre o seu algoz naquele fato distante na Praça dos Leões, ficou aquele que
fora o mais temido policial dos tempos da ditadura e dos anos seguintes.
No velório, a viúva cercada de muitos filhos, alguns
ainda pequenos, faziam o último apelo ao político a quem o marido morto servira
com inteira devoção e total subserviência: “douto Olavio! douto Olávio! Mande enterrar
o meu marido no Juazeiro do Padim Ciço! Era o último desejo dele!”
Manchete de 1ª. Página, fotos tão grandes quanto o
morto e no final, a informação: O Inspetor Apolinário será enterrado no
Cemitério São João Batista, em Fortaleza.
Extraído do livro
Sessão das Quatro – cenas e atores de um tempo mais
feliz, de Blanchard Girão
fotos do Arquivo Nirez e IBGE
Um comentário:
Ele era meu avô
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