Paulo de Castro Laranjeira era um engenheiro fiscal
das obras do Estado no final do século XIX. Morava na Rua do Trilho e tinha 29
anos de idade. Boêmio e seresteiro, fazia versos, cantava e tocava piano. Nas
noites enluaradas saía com sua turma de amigos, todos bons de copo e de voz,
para as serenatas nas portas dos sobrados da Rua do Imperador e da Rua Formosa.
Usavam violões, banjos, bandolins e, algumas vezes, até um piano alemão, que
era transportado por quatro homens numa espécie de padiola, com muita
dificuldade.
Naquele ano de 1897, o seresteiro estava apaixonado.
Uma figura esbelta, mãos finas e palidez romântica, abundantes madeixas e
verdes olhos de mar passara diante dele, acompanhada da criada e, a partir dali,
nunca mais fora o mesmo. A mulher entrara-lhe de alma adentro e se apossara de
seus sentimentos, não lhe dando tréguas para pensar noutra coisa que não fosse
o desejo avassalador, de namorá-la, de casar-se com ela.
Mas era um amor unilateral, não correspondido, a moça
não lhe daria a menor atenção. A família não permitiria o romance nem em sonhos,
e a própria desejada fazia restrições à sua delirante pretensão. A fama de
boêmio inveterado, que o engenheiro tinha construído com tanta devoção, seria a
causa da rejeição. Nenhuma moça casadoira, mesmo naquele tempo, sendo bela,
rica e detentora de um bom dote, aceitaria se casar com um dissoluto, cujas
noites eram preenchidas com serestas, violões e bebedeiras, sobrando para a
esposa, apenas a irremediável solidão. Decididamente, ele não tinha a menor
chance.
Mas o poeta não se deu por vencido. Noite após noite, lá
estava ele, embaixo da janela do sobrado onde a moça residia, gemendo a sua
paixão, numa obstinação que só os amigos, por fidelidade canina, compreendiam. O
amor desvairado passou a comprometer o trabalho, já não rendia o mesmo em
suas tarefas. Tornou-se um homem triste, amargo, macambúzio.
Um dia chegou para
o seu amigo e parente Raimundo Nonato e disse que tinha feito uns versos para
ele musicar. A canção deveria se chamar “Teu Desprezo”. Depois dos devidos ensaios, eis o trovador, na noite
seguinte, à porta da amada, desfiando os versos adocicados de lamúrias e os
repetindo duas ou três vezes, embora sem sucesso algum: a donzela não abriu a
janela do sobrado.
Laranjeira foi-se abatendo cada vez mais. Certa tarde
chegou ao Café Java e solicitou ao Mané Côco que preparasse quinze garrafas de
champanhe para aquela noite. Alegou o dono do quiosque que para tão avultada
compra, precisava de um pequeno prazo. Dias depois, a bebida pronta, enterrada
na serragem com areia molhada, foi entregue no local combinado, que não era
outro se não a calçada da casa da inspiradora de Paulo Laranjeira.
Os violões
entraram em ação e o poeta cantou mais uma vez o “Teu Desprezo”, que como das
outras vezes, não teve nenhuma resposta. Então ele serviu o champanhe e abraçou
emocionado os amigos com efusivas despedidas, para, de súbito, ante a
estupefação de todos, puxar um revólver e detonar um tiro no ouvido. Eram 11:30
da noite de 14 de fevereiro de 1897.
No dia seguinte, com grande acompanhamento, Paulo
Laranjeira era sepultado no São João Batista e o jornal “A República” fazia
extenso necrológio do boêmio. A família do engenheiro, dias depois, através do
jornalista Benedito Sidou, procurou tornar menos patético seu ato suicida,
afirmando que ocorrera em sua própria residência e “não no meio da rua, como
andam dizendo”. O povo, no entanto, preferiu a versão mais dramática.
Os companheiros de boemia de Paulo Laranjeira passaram
a comemorar o seu aniversário, em 08 de junho, todos os anos, ocasião em que
cantavam repetidas vezes a triste canção do malfadado seresteiro. Começavam a
beber na Praça do Ferreira, por volta das quatro da tarde e, lá pelas nove,
saíam em serenatas, fosse ou não noite de lua. Decorridos 18 anos, um fiel grupo de devotados continuava
a cultuar a memória do amigo.
E aqui é que começa o inusitado da história:
Certa tarde, em plena seca do quinze, um grupo de flagelados chega na praça
conduzindo um bode, que mais tarde viria ser conhecido como Bode Yoyô. O grupo
queria vender o bode para comprar feijão, farinha e rapadura. O gerente da
empresa inglesa Rossbach Brazil Company, mostrou-se interessado e acabou
comprando o animal.
A estampa do bode tinha alguma coisa de especial. À beleza
plástica aliava-se uma elegância natural e um olhar que parecia querer ir além
da mudez, da irracionalidade. O bode, diziam os boêmios, parecia gente. Foi essa
aparência peculiar que salvou Yoyô da imolação. Seus proprietários resolveram deixa-lo
solto, e o animal, sem cerimônia, se pôs a perambular pela cidade, indo e vindo
da Praia de Iracema, onde ficava a Rossbach Company, para a Praça do Ferreira,
coração fervilhante da cidade.
Um dia, festejava-se mais uma vez, o aniversario de
Paulo Laranjeira, in memoriam. À determinada altura, o seresteiro Xavier de
Castro, começou a cantar a música “Teu Desprezo”. O que aconteceu em seguida,
deixou a todos impressionados: o bode Yoyô deu um salto violento e caiu
esparramado no chão, entrando em convulsão. Parecia apoplético, o olhar vesgo,
a língua mordida em diagonal. Uma gosma descia-lhe da boca e ele resfolegava
nos estertores.
Assustados, os boêmios e transeuntes da praça
esperavam apenas o último suspiro do caprino quando, de repente, ele começou a
melhorar. Logo depois, para alivio geral, estava completamente restabelecido,
embora persistisse uma certa tristeza em seu olhar. Os boêmios e outros seresteiros que assistiram o fato,
desconfiaram que a reação de Yoyô tinha sido provocada pela canção do suicida.
Então fizeram o teste e não deu outra: tão logo começaram a cantar “Teu Desprezo”
o bode empinou-se todo e desabou no chão novamente. – É o Laranjeira, gritaram
eufóricos, “O bode Yoyô é o nosso amigo Paulo Laranjeira!” Nascia uma lenda.
Padre Quinderé (Diário do Nordeste) |
No dia seguinte, o padre Quinderé apareceu na Praça do Ferreira “fumando numa quenga” e censurando severamente os boêmios, que, por beberem demais, estavam agora vendo coisas e inventando histórias absurdas, que além de serem mentirosas, intentavam contra os princípios da igreja Católica. Não bastava o caso de Juazeiro com o tal de Boi Santo? Queriam agora inventar um bode poeta? E Dom Manuel, o arcebispo, proibiu qualquer comentário na imprensa sobre o estranho episódio.
Indiferente à querela, o Bode Yoyô continuou sua
vidinha de folgado, comendo, bebendo e fumando, participando ativamente dos
movimentos cívicos. Em 1930, já velho, ainda teve forças para comandando os
vitoriosos aliancistas, invadir o Palácio da Luz para depor o governador Matos
Peixoto.
Teu Desprezo
Eu te consagro, ó mulher os meus afetos
Meu viver só consiste em te adorar
Para que foges, assim, de quem te ama?
Eu fui um louco, ó mulher, em te amar
Teu desprezo me arrasta lentamente
Para a campa solitária vou partir
E a morte será minha vingança
Para que serve ó mulher, eu existir
São tantos males que torturam minha vida
O meu pranto não cessa um só instante
Sofro tudo por ti, mulher querida
Mas, por Deus eu te juro ser constante
Quando ouvires os dobres de um sino
São sinais por um pobre que morreu
Deita ao menos uma lágrima em lembrança
Por aquele que por ti tanto sofreu
Quando fores um dia ao cemitério
Uma campa bem triste lá verás
Não perturbes, ó mulher, por piedade
O sono mortuário de um rapaz
Se fitares meu sepulcro esquecido
Ó tu, a quem tanto idolatrei
Deita sobre meu túmulo uma saudade
Em troca do amor que te jurei.
Extraído do livro
Sábado, Estação de viver – histórias da boemia
cearense, de Juarez Leitão
fotos: facebook, google, DN e arquivo Nirez
fotos: facebook, google, DN e arquivo Nirez
Um comentário:
Nossa cidade tem fatos históricos maravilhosos e curiosos! Adorei saber desse fato e de como o bode ioiô fez parte da vida dos cearenses através desse episódio tão pitoresco!
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