Nas décadas iniciais do século XX surgiu no Cariri
mais um movimento messiânico que, com base nos princípios cristãos, oração,
fraternidade e trabalho coletivo, estabeleceu uma sociedade cooperativa de
tendência igualitária, alternativa à estrutura latifundiária Nordestina, então
em voga. Era chamado Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, comunidade liderada
pelo beato José Lourenço, seguidor do Padre Cícero e praticante do catolicismo
popular, típico do sertão do Nordeste.
o beato José Lourenço entre seu secretário Isaías (esquerda) e o repórter Luiz Maia
(foto O Nordeste)
(foto O Nordeste)
José Lourenço Gomes da Silva, nasceu em 1872, em
Pilões de Dentro, sertão da paraíba. Filho de sertanejos pobres, aos 14 anos
deixou a casa dos pais para tentar a sorte em outro lugar. Depois de algum
tempo, retornou a Pilões de Dentro, quando descobriu que a família tinha ido
para Juazeiro do Norte, no Ceará, atraída pelos milagres de Padre Cícero e da
beata Maria de Araújo. Decidiu seguir também para a cidade do Cariri.
Chegou a Juazeiro por volta de 1891, onde reencontrou os familiares. Ali foi assimilando a
religiosidade e a crença de Padre Cícero, seu guia espiritual. Lourenço
incorpora as maneiras de agir, pensar e sentir do padre. Passa a fazer parte da
ordem dos Penitentes da Santa Cruz, grupo religioso secreto, mas bastante
conhecido em todo o Nordeste. A partir daí fica conhecido como beato Zé
Lourenço.
Beato José Lourenço e a Santa Cruz do Deserto em 1937
(foto O Nordeste)
(foto O Nordeste)
Provavelmente em 1894, por conselho do Padre Cícero,
José Lourenço, sua família e mais alguns romeiros arrendaram um lote de terra
no Sitio Baixa Danta, de propriedade de um coronel chamado João de Brito,
localizado na cidade do Crato. Solidário, Lourenço permite que outros romeiros
venham morar no sítio. Sua casa fica rodeada por outras moradias habitadas por
camponeses humildes. Ali os sertanejos encontram terras para o trabalho e
condições melhores de vida.
Surgia, dessa forma, uma rústica comunidade. Em
pouco tempo, o solo árido e empoeirado da fazenda transformou-se em produtor de
cereais e frutas. Ao contrário das fazendas vizinhas, a produção era repartida
igualmente entre todos os seus membros. As pessoas do sítio tinham o beato como líder. Todos respeitavam aquele negro
alto, forte, dedicado, seguidor dos ensinamentos do Padre Cícero. Zé
Lourenço, mesmo analfabeto, dava conselhos, determinava tarefas, ensinava
práticas rudimentares de agricultura e medicina popular. Trabalhava como todos
os demais, e a noite, com o hábito da Ordem dos Penitentes, dirigia as rezas,
mesmo após um dia exaustivo de trabalho.
seguidores do Beato José Lourenço no Sítio Caldeirão.
(quadro do acervo do Museu do Ceará)
Em 1926, João de Brito decidiu vender o Sítio Baixa
Danta. O novo proprietário exigiu de imediato que Lourenço e a comunidade
deixassem as terras. O beato e os demais se retiraram sem nenhuma indenização
ou compensação pelas melhorias as quais transformaram aquela área em uma das
mais prósperas da região, em mais de duas décadas de trabalho.
Provavelmente no mesmo ano, Padre Cícero resolveu
alojar o beato e os moradores em uma grande fazenda de sua propriedade,
denominada Caldeirão dos Jesuítas. Situada na cidade do Crato, nas encostas da
Chapada do Araripe, com uma área em torno de 880 hectares, a fazenda tinha esse
nome devido a existência no local de uma depressão natural de pedra, capaz de
acumular água.
Ao chegar ao Caldeirão, o beato só encontrou mato e pedra.
Os camponeses então, iniciaram novo trabalho comunitário, igual ao antes
praticado no Baixa Danta. Uma das primeiras edificações foi a casa do beato,
que ficou conhecida como a casa-grande por ser bem maior que as habitações
construídas posteriormente. Essa casa foi feita de tijolos e coberta com
telhas, enquanto as outras que foram surgindo, eram feitas de taipa e cobertas
de palha ou telha. O piso era de terra batida.
Ergueram também barragens, cercas, armazéns, engenhoca, casa de farinha, sistemas de irrigação e reservatórios de águas. Cultivavam cereais e frutas e a criavam animais domésticos. O trabalho em pouco tempo, começou a apresentar resultados positivos. Posteriormente, em consequência da chegada de novos moradores, a comunidade foi ganhando novas atividades produtivas: pedreiros, carpinteiros, ferreiros, artesãos que trabalhavam com cerâmica, couro, flandres, etc.
Assim, o Caldeirão foi ganhando um caráter praticamente autossuficiente, pois fabricava quase tudo de que precisava. Tudo era coordenado pelo beato e por algumas pessoas de sua confiança, como Isaías, uma espécie de secretário. A obra de Zé Lourenço toma, em menores proporções demográficas, a dimensão social da comunidade religiosa de Antônio Conselheiro.
Criou-se uma sociedade igualitária, de sistema econômico coletivo, que impunha a seus membros a cooperação para assegurar uma existência digna e as condições de sobrevivência. Durante a seca de 1932, enquanto milhares morriam de fome e doenças por todo o Nordeste, o Caldeirão foi uma exceção. A comunidade abriu os depósitos de víveres, acolhendo e alimentando centenas de retirantes. Durante os 23 meses de estiagem, a comunidade sustentou cerca de 500 pessoas que, em sua maioria, decidiram depois se fixar na fazenda.
Após a morte do Padre Cícero, em 1934, muitos passaram a considerar o beato Zé Lourenço como sucessor daquele, e ante a notória prosperidade da fazenda, a ela corriam cada vez mais contingentes de pobres. Nesse período começaram as romarias para o Caldeirão. As romarias, o crescimento demográfico e a grande influência de José Lourenço não tardaram a chamar a atenção das elites sobre o “núcleo de fanáticos”. Assim, a igreja, os coronéis e o Estado começaram a se articular para a destruição do Caldeirão.
Ergueram também barragens, cercas, armazéns, engenhoca, casa de farinha, sistemas de irrigação e reservatórios de águas. Cultivavam cereais e frutas e a criavam animais domésticos. O trabalho em pouco tempo, começou a apresentar resultados positivos. Posteriormente, em consequência da chegada de novos moradores, a comunidade foi ganhando novas atividades produtivas: pedreiros, carpinteiros, ferreiros, artesãos que trabalhavam com cerâmica, couro, flandres, etc.
Assim, o Caldeirão foi ganhando um caráter praticamente autossuficiente, pois fabricava quase tudo de que precisava. Tudo era coordenado pelo beato e por algumas pessoas de sua confiança, como Isaías, uma espécie de secretário. A obra de Zé Lourenço toma, em menores proporções demográficas, a dimensão social da comunidade religiosa de Antônio Conselheiro.
Criou-se uma sociedade igualitária, de sistema econômico coletivo, que impunha a seus membros a cooperação para assegurar uma existência digna e as condições de sobrevivência. Durante a seca de 1932, enquanto milhares morriam de fome e doenças por todo o Nordeste, o Caldeirão foi uma exceção. A comunidade abriu os depósitos de víveres, acolhendo e alimentando centenas de retirantes. Durante os 23 meses de estiagem, a comunidade sustentou cerca de 500 pessoas que, em sua maioria, decidiram depois se fixar na fazenda.
Após a morte do Padre Cícero, em 1934, muitos passaram a considerar o beato Zé Lourenço como sucessor daquele, e ante a notória prosperidade da fazenda, a ela corriam cada vez mais contingentes de pobres. Nesse período começaram as romarias para o Caldeirão. As romarias, o crescimento demográfico e a grande influência de José Lourenço não tardaram a chamar a atenção das elites sobre o “núcleo de fanáticos”. Assim, a igreja, os coronéis e o Estado começaram a se articular para a destruição do Caldeirão.
Interventor Menezes Pimentel, o chefe de Polícia Cordeiro Neto e o bispo do Crato Dom Francisco de Assis Pires
Em fevereiro de 1935 reuniram-se em Fortaleza o
interventor Menezes Pimentel, o Secretário de Estado Andrade Furtado, o chefe
de Polícia, capitão Cordeiro Neto, o deputado Norões Milfont e o bispo do Crato
Dom Francisco de Assis Pires. Deliberaram pela destruição do lugar através de
ação militar. Antes, enviaram em missão sigilosa o capitão José Bezerra,
com a incumbência de descobrir os segredos e armadilhas do lugar. José Bezerra,
disfarçado de “comprador de algodão” foi recebido cordialmente por Zé Lourenço,
que lhe diz que não poderia vender a produção de algodão, porque estava sendo
utilizada e consumida na própria comunidade. Ao regressar, José Bezerra fez um
metódico relatório ao governo, dando conta do fanatismo e do terrível perigo
representado pelo Caldeirão.
ruínas da casa onde morava o beato José Lourenço no sítio Caldeirão
foto Diário do Nordeste
A 9 de setembro de 1936, uma expedição de polícia
militar seguiu para o Cariri. Para despistar, divulgou-se que os policiais
iriam para Mossoró, no RN. Mas o beato foi avisado da eminente chegada da tropa
e fugiu para o alto da serra do Araripe. Os soldados iam preparados para a
luta, porém, quando invadiram a fazenda na manhã do dia 10 de setembro de 1936,
os sertanejos, assustados, não ofereceram nenhuma resistência. São conduzidos a
empurrões e socos e pontapés para a casa do beato; os policiais gritavam,
apontavam armas, davam voz de prisão.
O capitão Cordeiro Neto explicou aos sertanejos o que
viera fazer: era preciso que voltassem ao seu lugar de origem, levando suas
posses e bens, pois o Estado do Ceará não permitiria mais a existência daquele
agrupamento de fanáticos. As famílias deveriam abandonar o Sítio em cinco dias,
e os solteiros, em três dias. O general ofereceu aos camponeses passagens de
trens e navio; estes recusaram. Propôs então que pegassem seus bens e
partissem. Os sertanejos responderam que nenhum deles tinham posses ali, porque
todos os bens eram coletivos.
Cordeiro Neto chega então a uma decisão: destruir as
estruturas físicas da fazenda e simplesmente expulsar os camponeses. A polícia
saqueou e incendiou os cerca de 400 casebres e o armazém da comunidade. O grupo
de policiais que fica no Caldeirão dispersa a população. Muitas famílias do
Caldeirão se dirigiram para a serra do Araripe, reencontrando o beato e
formando nova comunidade, espalhada por quase dois quilômetros entre a Mata dos
Cavalos e o Curral do Meio.
Um dos membros da comunidade, chamado Severino Tavares, que havia sido preso e trazido para Fortaleza durante a expulsão, foi posto em liberdade e retornou ao Cariri, juntando-se com o novo núcleo comunitário. Em conjunto com outros camponeses, passou a defender ações radicais, mais precisamente, um ataque à cidade do Crato com o objetivo de obter armas e munições visando a defesa da comunidade em futuros ataques. Armaram, então, uma cilada para atrair a polícia.
Um homem chamado Sebastião Marinho, informou à polícia do Crato que o beato pretendia retornar ao Caldeirão, enquanto um deputado enviou um telegrama urgente comunicando que os fanáticos pretendiam invadir o Crato. O chefe de polícia deu ordem para que a força policial de Juazeiro, sob o comando do capitão José Bezerra, tomasse providências a respeito.
Em maio de 1937, o capitão Bezerra, acompanhado de um pequeno contingente de 18 praças, viajaram num caminhão que foi deixado no local conhecido por Cruzeiro, onde também ficou parte do contingente. Bezerra e os demais militares seguiram a pé. De repente, foram atacados pelos sertanejos. A luta corpo a corpo foi bastante violenta, entre o capitão e seis soldados de um lado, e cerca de 100 fanáticos, armados de rifles, espingardas, foices e cacetes sob a chefia de Severino Tavares. Somente dois sargentos sobreviveram, porque mesmo feridos, arrastaram-se até o caminhão, fugindo e sendo recolhidos ao hospital do Crato.
A notícia do fracasso da força policial causou pânico entre as elites. Segmentos sociais e autoridades condenaram de forma enfática a emboscada. No mesmo dia, seguiram para a Chapado do Araripe o restante da tropa estacionada em Juazeiro, cerca de 30 homens comandados pelo tenente Assis Pereira. Três aviões partiram de Fortaleza sob o comando do capitão José Macedo, com grande quantidade de armas e munições, conduzindo também o chefe de polícia Cordeiro Neto para Juazeiro.
As aeronaves sobrevoam a serra e metralham as barracas da nova comunidade, além de lançarem granadas. A chacina, no entanto, não seria feita pelo ar, mas por terra. No dia 12 de maio de 1937, duzentos militares com armas em punho, atacaram os ex-habitantes do Caldeirão. Aconteceu ali uma das mais bárbaras e covardes chacinas da história do Ceará. Não se faziam prisioneiros. Adultos, crianças, velhos, eram barbaramente atingidos com tiros e golpes de baionetas. Os soldados fincavam as baionetas com tanta força que tinham de usar os pés para retirá-las.
Um dos membros da comunidade, chamado Severino Tavares, que havia sido preso e trazido para Fortaleza durante a expulsão, foi posto em liberdade e retornou ao Cariri, juntando-se com o novo núcleo comunitário. Em conjunto com outros camponeses, passou a defender ações radicais, mais precisamente, um ataque à cidade do Crato com o objetivo de obter armas e munições visando a defesa da comunidade em futuros ataques. Armaram, então, uma cilada para atrair a polícia.
Um homem chamado Sebastião Marinho, informou à polícia do Crato que o beato pretendia retornar ao Caldeirão, enquanto um deputado enviou um telegrama urgente comunicando que os fanáticos pretendiam invadir o Crato. O chefe de polícia deu ordem para que a força policial de Juazeiro, sob o comando do capitão José Bezerra, tomasse providências a respeito.
Em maio de 1937, o capitão Bezerra, acompanhado de um pequeno contingente de 18 praças, viajaram num caminhão que foi deixado no local conhecido por Cruzeiro, onde também ficou parte do contingente. Bezerra e os demais militares seguiram a pé. De repente, foram atacados pelos sertanejos. A luta corpo a corpo foi bastante violenta, entre o capitão e seis soldados de um lado, e cerca de 100 fanáticos, armados de rifles, espingardas, foices e cacetes sob a chefia de Severino Tavares. Somente dois sargentos sobreviveram, porque mesmo feridos, arrastaram-se até o caminhão, fugindo e sendo recolhidos ao hospital do Crato.
A notícia do fracasso da força policial causou pânico entre as elites. Segmentos sociais e autoridades condenaram de forma enfática a emboscada. No mesmo dia, seguiram para a Chapado do Araripe o restante da tropa estacionada em Juazeiro, cerca de 30 homens comandados pelo tenente Assis Pereira. Três aviões partiram de Fortaleza sob o comando do capitão José Macedo, com grande quantidade de armas e munições, conduzindo também o chefe de polícia Cordeiro Neto para Juazeiro.
As aeronaves sobrevoam a serra e metralham as barracas da nova comunidade, além de lançarem granadas. A chacina, no entanto, não seria feita pelo ar, mas por terra. No dia 12 de maio de 1937, duzentos militares com armas em punho, atacaram os ex-habitantes do Caldeirão. Aconteceu ali uma das mais bárbaras e covardes chacinas da história do Ceará. Não se faziam prisioneiros. Adultos, crianças, velhos, eram barbaramente atingidos com tiros e golpes de baionetas. Os soldados fincavam as baionetas com tanta força que tinham de usar os pés para retirá-las.
das várias construções edificadas no Sítio Caldeirão restam a pequena capela de Santo Inácio de Loyola, relativamente conservada, e poucas casas em ruínas. Quanto à árida paisagem de entorno, esta permaneceu praticamente inalterada. (Foto Secult)
Não se sabe até hoje o número exato de vítimas do
massacre. Há quem especule entre 300 e 1000 mortos. Os soldados juntaram os
cadáveres, incinerando alguns com gasolina numa grande fogueira e enterrando
outros em valas coletivas. A ação militar continuou ainda por alguns meses, a polícia
continuou na serra, prendendo, procurando, torturando e assassinando suspeitos
de serem provenientes do Caldeirão.
Os familiares e descendentes dos mortos nunca souberam
onde encontram-se os corpos, pois as autoridades responsáveis pela operação nunca informaram o local onde foram
enterrados. Presume-se que a vala coletiva se encontra no Caldeirão ou na Mata
dos Cavalos, na Serra do Cruzeiro, na região do Cariri.
José Lourenço fugiu para Pernambuco, onde morreu aos
74 anos, de peste bubônica, tendo sido levado por uma multidão para Juazeiro,
onde foi enterrado no cemitério do Socorro. Ali, segundo a história oral, teriam os sertanejos pedido ao vigário da cidade, monsenhor Joviniano Barreto, que celebrasse uma missa para o beato. Receberam a seguinte resposta: Eu não celebro missa para bandido.
Extraído do
livro
História do Ceará, de Airton de Farias
História do Ceará, de Airton de Farias
Um comentário:
Foi a maior chacina de camponeses realizada no Brasil. Não houve combate.
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