sábado, 2 de agosto de 2014

O Culto do Afrancesamento

O Hotel de France acompanhava a tendência de afrancesamento da época; o Passeio Público, que teve como modelo os  jardins públicos europeus, acolhia as elites da cidade.
 
Paris, capital do século XIX, segundo a expressão de Walter Benjamin, não só estava na moda como ditava modas para o mundo ocidental estabelecendo os modelos e figurinos a serem seguidos para se poder estar em dia com os novos tempos. E assim foi na Europa, em São Paulo, Rio de Janeiro e em Florianópolis. Em Fortaleza não foi diferente, seduzindo os novos grupos afluentes, ansiosos por novidades que lhes deleitassem e demarcassem a superioridade social e estética. O afrancesamento, sinal de prestígio e refinamento, tornou-se uma febre na capital, nas mais variadas formas e sentidos.

 Rua Major Facundo, esquina com a Guilherme Rocha anos 20. No local onde  funcionava o Café Riche hoje está o Excelsior Hotel.  

Era elegante utilizar termos e nomes franceses onde fosse possível. O caso mais evidente era o das próprias lojas que vendiam objetos de desejo mundano vindos de Paris. Assim, não era à toa que as mesmas passassem a ostentar títulos como Rendez-vous de Dames, Au Phare de La Bastille, Paris des Dames, Paris n’America, Bom Marché, Maison Moderne, Louvre; e também Hotel de France, Restaurant Entaminet Europeu, café Riche, Confeitaria Maison Art Nouveau, Notre Dame de Paris, além de Farmácia Francesa e Farmácia Pasteur. Em suas vitrines, o atraente acervo de artigos europeus constituídos de tecidos, sapatos, perfumes, chapéus, bijuterias, conservas, bebidas, maquinários e peças de automóveis.

Propaganda da Farmácia Pasteur, fundada em 1894 e vendida em 1905, para a empresa que fez esse anúncio

Havia no ofício de fotógrafo a superstição dos nomes franceses. Fotógrafo com nome nacional ficava sem trabalho. O velho e moreno Moura passou a ser Moura Quineau. O Eurico Bandeira transformou-se em Eurico Bandière.
Alguns casos de mudança de nomes nacionais por franceses não se deram por objetivos mercadológicos, mas pela espiritualidade popular que a tudo satirizava, e que não poderia deixar passar sem gozação, tamanha compulsão pelas coisas da França. Foram os casos do Bembém Garapeira, chamado de “Bien-Bien Garapiere” e do Dr. Aurélio de Lavor que se tornou “Monsieur Laveur”. 


 Garapeira do Bembém, localizada na antiga Praça Carolina e José de Alencar, atual Waldemar Falcão. foto de 1909.

Bembém era o proprietário de um quiosque de madeira no centro da Cidade que vendia garapa de cana-de-açúcar. Seu pequeno estabelecimento divertia o público pelas brincadeiras do seu dono e por conter coisas bizarras, como cabeças feitas pelo próprio garapeiro em quengas de coco. De tanto ouvir falar da França, o garapeiro passou a cultivar o sonho de conhecer Paris. Instruído por Alfredo Salgado, um dos mais ricos comerciantes da cidade, Bembém economizou dinheiro e um belo dia, para surpresa geral, viajou para a França. Seu relato da viagem é uma das mais hilariantes histórias que a Capital já ouviu. Quem conta é Otacílio de Azevedo, no seu “Fortaleza Descalça”.
Bembém foi e voltou radiante. Lamentava apenas ter ido tão tarde, não podendo assistir a decapitação de Maria Antonieta... Aquilo é que é cidade!, dizia entusiasmado. No hotel onde me hospedei fui obrigado a escrever meu nome. Como a língua era outra, escrevi: “Bien-Bien” e mais embaixo: Garapiere. E completava: Olha, lá eu só andava com um homem chamado Cicerone que falava Português como eu. Terra adiantada aquela: todo mundo falando francês, até mesmo os carregadores chapeados, as crianças e as mulheres do povo! Bembém não se cansava de falar da França e completava declarando que lá, a única palavra em português que ouvira fora “mercibocu”... a conselho de um intelectual perverso, mandou imprimir um cartão para distribuir com amigos e fregueses: 

 BIEN-BIEN – Garapière
Fortaleza – Ceará.

Já o caso do Dr. Aurélio de Lavor é uma ilustração contundente de que a mania de afrancesamento da época às vezes beirava o patético, e por isso mesmo, logo percebido e transformado em gozação pública. O médico em questão, após viagem à Europa, não descuidava de usar impecáveis fraques, calça listrada, sapatos de verniz e cravo branco à lapela. Seu exagero se completava com a compulsão de sempre falar em francês em qualquer conversação. Em face disso, o ferino jornalista João Brígido nas páginas do seu jornal Unitário resolveu mudar o nome de Aurélio de Lavor para Monsieur Laveur, alcunha pilhérica que ganhou fama na cidade.
No meio literário a admiração pela França também se fez presente, afinal era a pátria de escritores estimados pelos literatos brasileiros. Dentre os muitos literatos cearenses que cultivavam o encantamento francês, sobressaía-se Antônio Sales, um dos principais escritores do começo do século. Vibrava quando falava na França que era uma espécie de segunda pátria para ele.


Fachada da loja Torre Eiffel, localizada na Rua Major Facundo 88. Anos 20

Recitar versos em francês era comum nas rodas literárias, principalmente entre a jovem boemia literária que vigorou intensamente na cidade, perpetrando suas aventuras urbanas em cafés, tabernas, serestas, comícios e através de pequenos jornais que não cansavam de publicar e que, em geral não passavam do 3º número.
Nesse grupo uma dos que mais se destacou pela vivência boêmia foi William Peter Bernard, profundo conhecedor das obras de poetas franceses ditos malditos, como Baudelaire, Verlaine e Rimbaud. Figura singular, Bernard costumava andar arrastando um grande bode holandês, recitava poesias com ardor enquanto se embriagava nos cafés do centro e nas bodegas e botequins mais reles, quando o dinheiro escasseava.
Certa feita, ao se deparar com dezenas de flagelados da seca de 1915 em tumulto com policiais na praia, Bernard e seus companheiros promoveram uma passeata com os retirantes dali até a Praça do Ferreira, bradando “Pão ou Revolução”. Dela só desistiu quando veio o recado do Presidente do Estado de que as frentes de serviço na estrada de ferro estavam reabertas e que o Dispensário dos Pobres receberia verba especial para atender os retirantes. No dia seguinte foi intimado para ir prestar explicações à Polícia. 

 Restaurante do Clube Iracema, que funcionava no Palacete Ceará, atual Caixa Econômica, na Praça do Ferreira, década de 1920 

Todos esses indicativos de um forte referencial francês na constituição do comércio importador-exportador, no viver mundano, nas letras e ciências em Fortaleza, consubstanciam aspectos da ardente vontade de instaurar na Cidade uma nova ordem sócio-urbana, onde as classes dominantes pudessem auferir os benefícios de uma sociedade produtiva, aformoseada, civilizada e higienizada. O afrancesamento foi, nessa perspectiva, uma vivência e uma das frentes  de persuasão tentadas para romper com a tradição e o provincianismo da cidade.

Extraído do livro
Fortaleza Belle Epoque reformas urbanas e controle social – 1860-1930
De Sebastião Rogério Ponte
pesquisa:
Cronologia Ilustrada de Fortaleza
de Miguel Ângelo de Azevedo
fotos do Arquivo Nirez
    
  

5 comentários:

Geraldsz disse...

Acho uma pena que a História arquitetônica de Fortaleza esteja se perdendo dia a dia. Essa postagem nos alerta de momentos da nossa história que nem sabíamos existir, pois não há ensino aprofundado nas escolas sobre a nossa própria história local. Triste.

Fátima Garcia disse...

Pois é Geraldsz, somos uma cidade sem memória e sem passado. E esse processo continua, basta ver a desfiguração pela qual a cidade passa atualmente, e com amplo apoio da população.
abs

Unknown disse...

Fui um aluno que detestava Historia. Porém, no ano de 2009, por conta da dedicação ao vestibular, comecei a me aprofundar na Historia do nosso Brasil. Sobretudo, na Historia do nosso Estado. Isso despertou uma forte paixão! Essas historias hilárias contadas na Praça dos Ferreira, a Vaia ao Sol e o Bode Iô-Iô, são acontecimentos fantásticos que adorei conhecer.

Unknown disse...

Sou apaixonado pela Historia do nosso Estado. Pena que nossa arquitetura não está sendo preservada. Ainda tenho um sonho: conhecer o local onde ocorreu o famoso "Caldeirão", do Beato José Lourenço.

Unknown disse...

Olá, Fátima... vc tem algum relato em fotos do restaurante do Excelsior Hotel?
Hoje, lá funciona o restô Paidégua, e não sabe de um cliente, de idade adiantada', q tenha ou conhece alguém q tenha fotos de lá! Nem na Internet se vê!
Um lugar q já passou milhares de pessoas desde 1932... é de se admirar!