quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Carta de Rachel de Queiroz para a Miss Ceará 1955 - Emília Correa Lima

Os concursos de miss no Brasil, anuais e sistematicamente organizados tiveram início em 1954, com a eleição da baiana Marta Rocha, e de imediato, caíram no gosto da população, tornando-se bastante populares. A partir de 1955, a organização do concurso passou a responsabilidade do grupo Diários Associados, com transmissão e cobertura da rede Tupi. Acabou se tornando o segundo evento mais assistido do país, atrás apenas dos jogos da Seleção Brasileira de Futebol.





No concurso do ano de 1955, a cearense de Sobral, Emília Barreto Correa Lima foi eleita Miss Maguary, Miss Ceará e Miss Brasil, recebendo a faixa das mãos de Marta Rocha.  Emília recebeu elogios da escritora Rachel de Queiroz, que lhe escreveu uma longa carta, e era musa do jornalista Millor Fernandes. Ela representou o Brasil no concurso de Miss Universo, ficando no Top 15 mundial.

  



Minha flor: 

         

Quando esta carta sair impressa você talvez já esteja a caminho da América, para a disputa do grande título. É que eu ando por longe, metida no sertão da sua e minha terra, o que dificulta a rapidez das comunicações; mas palavras de amor nunca são demais nem tardias, e são justamente palavras de muito carinho que lhe posso dizer.

          

Faz algum tempo que não a vejo. A última vez foi em sua casa – você e Iaci, de saída para um cinema, creio, se entremostraram rapidamente na porta da sala, para se fazerem apreciar pela “tia” que chegava de viagem. E reparei logo nessa sua esbelteza de galgo ou de garça, que é talvez o maior dos seus encantos. Nesta nossa terra de brevilíneas, você, longilínea perfeita, é uma maravilhosa exceção.


Porém, em lugar da sua beleza e da beleza de sua irmã, igualmente tão linda, o que a família quis comentar foram os seus triunfos de estudiosa, tão de acordo com as tradições dos Barreto e dos Corrêa Lima; as famílias sofrem essa preocupação de subestimar a beleza das suas moças. Têm medo de que elas fiquem por demais vaidosas, que percam o amor da virtude e dos estudos, pelo amor da bonita cara e do bonito corpo.

          

Felizmente, minha querida Emília, você não se deixou iludir pelas boas intenções dos de casa, e ao invés de tratar apenas de estudar, não se despreocupou de ser bonita. Teve a inteligência de dar valor a esse dom sobre todos os dons, que é a beleza. Sim, não acredite nunca quando lhe disserem que beleza é um acidente que não tem valor, que não dá felicidade, que mais vale inteligência etc. Isso são chavões nascidos do desejo e da necessidade de consolar os feios. Uma bela mulher é uma perfeita obra de arte. Seja bonita com orgulho, com tranquilidade, com segurança; cuide bem do seu rosto e do seu corpo, pois nada neste mundo vale mais do que a beleza.


Quando eu tinha a sua idade, recebi um prêmio literário. (Recordo isso porque seu pai, então no Rio, no entusiasmo fraternal pela estreante, foi o meu melhor eleitor.) Pois, querida, não esse modesto prêmio, destinado a estimular uma principiante, mas todos os prêmios literários deste mundo, até o Nobel, eu o daria de bom-gosto para ser bonita como você o é.

          

Eles dizem que não há mérito em ser bonita. Claro. Como não há mérito em ser inteligente, nem em ter bom caráter, nem em ser um gênio musical, nem um maravilhoso poeta. Manuel Bandeira, que foi um dos seus juízes, já nasceu com o dom divino; e com ele nasceu o seu poeta predileto, Carlos Drummond de Andrade. Tudo são dons, dons gratuitos, que se recebem da fonte de todos os dons. Valerão eles menos por isso? E a beleza, entre os dons, é o mais alto de todos: o maior elogio que se pode fazer a uma realização, a uma paisagem, a um poema, é dizer que são belos. Porque a beleza é a coroa que os completa.

 

Nem a virtude se concebe sem beleza, nem a divindade. Não só os deuses dos pagãos eram belos: a própria Igreja, dentro da sua austeridade, pinta os santos formosos. Alguém poderia imaginar Nossa Senhora feia? E Cristo, se viesse ao mundo na figura de um homem malformado, não seria até uma profanação? Vi outro dia o retrato autêntico de Santa Teresinha no seu leito de morte: era uma mulher de feições severas, nariz forte, rosto descarnado e precocemente envelhecido. Mas a hagiografia oficial jamais permitiu que a reproduzissem assim e, em todas as imagens do culto, Santa Teresinha nos é apresentada como uma jovem de angélica beleza. (E digo angélica, porque os anjos são também padrões de formosura). Por que isso? Não será por frivolidade que a Igreja assim se empenha em tornar seus santos; será antes porque, com o seu profundo conhecimento do coração humano, sabe que a beleza atrai o amor e a devoção. Porque a beleza é como um selo de Deus.

         

Filha de uma mulher muito linda, sempre adorei a beleza de minha mãe. Contam os de casa que um dia – eu teria uns seis anos - ela me pôs de castigo por motivo que me pareceu imerecido. E ao jantar, horas depois, ainda zangada com a injustiça, eu disse, encarando-a: “Só fico morando aqui porque você é bonita. Se você fosse uma mãe feia, eu fugia de casa”. Ela era também muito inteligente, mas, agora que a perdi, o que mais lembro da infância, da mocidade, de todos os tempos em que vivemos juntas, é aquele rosto formoso, que enchia a nossa casa como uma luz. E ao escrever estas palavras, sinto uma saudade tão grande, parece que uma coisa rebenta dentro do meu peito, e talvez eu não a tivesse amado tanto se ela não fosse tão linda. Nós nos orgulhávamos daquela beleza como de um tesouro de família, e a condição de seus filhos nos parecia um privilégio. Para nós era uma rainha.

          

Você foi escolhida a mulher mais bela do Brasil. É um grande título, não acredite em quem lhe deprecie o valor, nunca desdenhe o seu dom maravilhoso. Todos lhe queremos bem por isso, lhe somos gratos por ter nascido e se criado tão bonita, nos orgulhamos de você. Se na América não lhe derem o título máximo, é porque os cegos são eles. Não viu que no ano passado, em lugar da nossa radiante Martha Rocha, prefeririam aquela pequena escocesa de lábios finos?

          

Aqui ficamos, numa ansiosa torcida. Mas, volte você ou não com a faixa atribuída a Miss Universo, de qualquer forma será a nossa Miss; a única que nos agrada e igualmente nos encanta, Emília Barreto Corrêa Lima, a Miss Maguari, a Miss Ceará, a Miss Brasil.

  

Rachel de Queiroz



2 comentários:

Unknown disse...

A carta é interessante!! Mas tem algo nela que nos passa um pouco de preconceito para com os desprovidos de beleza. Fica o registro de uma "cartinha" da bairrista Raquel de Queiroz.

Anônimo disse...

Disse tudo.