imagem Iphan
O Distrito de Califórnia fica
em Quixadá, sertão central do Ceará. O surgimento do distrito tem origem na
Fazenda Califórnia fundada por Miguel Francisco de Queiroz, que foi durante muitos
anos, a fazenda mais importante do município. A propriedade rural
desenvolveu-se, e ao seu redor surgiu um pequeno povoado formado por casas de
escravos e outros agregados além de uma capela dedicada a São Francisco de
Assis, o que fez com que o lugar passasse a ser chamado de São Francisco da
Califórnia, considerado o padroeiro do distrito.
Em 1882, a Fazenda Califórnia passou, através de doação, para Arcelino de Queiroz Lima. Arcelino deixou grande descendência e, entre os seus filhos, está Daniel de Queiroz Lima (1886-1948), advogado e professor, pai da Escritora Rachel de Queiroz).
Em 1882, a Fazenda Califórnia passou, através de doação, para Arcelino de Queiroz Lima. Arcelino deixou grande descendência e, entre os seus filhos, está Daniel de Queiroz Lima (1886-1948), advogado e professor, pai da Escritora Rachel de Queiroz).
O distrito de Califórnia
consta nos primeiros registros de divisões administrativas de Quixadá já em
1911 com o nome de São Francisco da Califórnia. Em 1920 passou a ser chamado
novamente apenas de Califórnia. A escritora Rachel de Queiroz, descendente de
Arcelino, conta sua versão da origem e da evolução da propriedade. A Fazenda Califórnia foi desapropriada em 1985.
A Fazenda Califórnia era “um
condado”, conforme se dizia pelo sertão em redor. Foi nos começos da era de
1850 que o velho Miguel Francisco de Queiroz, meu tio-bisavô, senhor de muitas
terras entre o Sitiá e o Choró, no Quixadá, resolveu diversificar da sua
criação de gado crioulo, o chamado pé-duro. Afinal, era dono de uma boa data
das famosas croas de aluvião, na ribeira do Choró: assim, a umas 500 braças da
barranca do rio, situou fazenda nova, disposto a tentar a sorte na folha da
cana.
Quem decidiu o local da sede foi o açude, alimentado por dois grandes riachos. A barragem se levantou pela mão dos negros – terra puxada em couro de boi, aguada, batida a malho. O grande prato d´água ainda lá está hoje, serenando.
Em terreno plano, o cavaleiro
do vale do sangradouro, alisou-se uma esplanada, levantou-se a capela. E,
fechando os três lados ao redor da igrejinha, “a rua”, composta numa das faces
pela morada do sinhô e, por trás e defronte à igreja, as casas de agregados, o
vaqueiro, a professora. Adiante, no caminho da Croa Grande, o cemitério.
Houve inveja e falatório diante
do arrojo inovador de Miguel Francisco. Era o tempo da descoberta das célebres
minas de ouro da Califórnia, nos Estados Unidos, e até no sertão se falava e se
sonhava com aquelas riquezas. Um primo e rival mandou recado irônico: como ia
seu Miguel com a sua Califórnia? O velho riu, gostou do nome, e assim a fazenda
se batizou por “São Francisco da Califórnia”.
Na capela inaugurou-se a imagem
do orago, um São Francisco de talha primitiva e forte; que hoje, aliás, está na
capela do cemitério, onde o refugiamos para salvar da fúria airada de um
vigário alemão que pretendia incinerar “aquela feiura barroca” e o substituiu
por um santo de gesso, loiro, rosado, coberto de dourados.
Capela de São Francisco da Califórnia
imagem Wikipédia - Mário Cezar Silveira Silva
Meu tio Miguel não tinha filhos: deixou tudo que era seu para meu avô, o Dr. Arcelino; e nas mãos do novo dono a Califórnia virou realmente um condado. Mudou-se a casa-grande (que, no sertão, nós chamamos simplesmente “a fazenda”) para o outro cabeço, do lado de lá do sangradouro. Imensa, rodeada por fundos alpendres de 3 metros, 57 portas e janelas, salas e salões, quartos e alcovas onde se podem armar 120 redes. Nas festas do centenário, lá se hospedaram 125 pessoas. Por trás da “fazenda”, o vale profundo do sítio, o cano de irrigação partindo do açude, as valetas regando em sucessão primeiro a famosa horta de minha avó, depois o pomar onde se cultivavam até fruta-pão e jambo, até uvas. Além do pomar, o vale se alargava mais, e era o canavial.
imagem do blog "I love califórnia"
Entre a “fazenda” e o açude, a
“fábrica”: o engenho a vapor, os tachos de apurar a garapa, o locomóvel que
apitava como um trem, o alambique, os paióis de rapadura e, por fim, em plano
mais baixo, no escuro, deitando um cheiro forte que tonteava, a adega onde
dormiam os toneis de cachaça.
Pena grande foi meu avô morrer
cedo, deixando a viúva com dez filhos. Mas, mesmo em mão de viúva, a fazenda
não decaiu. Ao contrário, parecia mais viva, com a presença frequente dos
filhos, genros, noras e nós, as dezenas de netos. Dos sete filhos, cinco
tiraram grau de doutor, o sexto fez seminário até o último ano, só o caçula não
se formou. Concluídos os preparatórios, foi ele o escolhido para morar com a
mãe e tomar conta da Califórnia. Só depois que ela morreu é que ele, solteirão,
casou-se com uma prima. (A gente, na minha família, casava preferencialmente com
primos. Dos dez da Califórnia, metade casou com primo ou prima.)
Até à morte de Dona Rachel, a Califórnia era mesmo o centro do nosso mundo. Era lá que nós os netos passávamos as férias, nas danças ao som de piano ou gramofone, cavalgatas, novenas, namoros.
Morta a avó, ficou de dono o caçula; nos anos em que lá esteve, se não fez melhoramentos, pelo menos não deixou que nada a arruinasse. Mas aí ele morreu (já viúvo) e a consanguinidade tinha atacado os herdeiros, jovens e irresponsáveis. Fazendeiro nordestino tem terras e senhoria, mas dinheiro vê muito pouco. E os órfãos queriam ver dinheiro na mão. Começaram vendendo cabras e ovelhas, depois passaram ao gado. Venderam o engenho, o locomóvel, o alambique.
E, parte a parte, foram vendendo afinal a terra da Califórnia – e por tutameia. A família não se envolveu – os moços faziam tudo às ocultas, “tinham cisma de parentes”. Quando se viu, acabavam de vender até a casa-grande, que aliás está caindo em ruínas.
Açude Califórnia - passagem molhada sobre o rio Choró
imagem Diário do Nordeste
Na degringolada os herdeiros deixaram que caducasse o aforamento perpétuo com que o velho garantira a posse efetiva do terreno: o Patrimônio reverteu à Cúria de Quixadá, que o administra. E os padres, por sua vez, passaram a lotear o Patrimônio. A velha rua se “urbaniza”, desfigurada em arruado, pululante de bodegas e biroscas. Mas o pessoal antigo que ainda mora lá quer continuar plantando nos seus velhos roçados que hoje pertencem a novos donos, diversos. Os donos novos querem reaver a terra; a disputa se envenena e, como já se disse, deu até crime de morte.
Na Califórnia, que já foi um condado, só existe hoje miséria e rixa.
A casa-grande assiste a tudo e protesta se desmoronando. No inverno passado caiu a queijaria de minha avó. Antes, ruíra o terraço empedrado. De longe a “fazenda” ainda faz figura, mas de perto está morrendo.
Originalmente publicado na edição nº 3 de Globo Rural, em
dezembro de 1985.
Um comentário:
Moro na Califórnia e continua sendo maravilhosa
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