A rua é uma rede emaranhada de vivências, cuja origem
se perde no tempo e se confunde com a existência das cidades, fazendo parte da
memória do mundo, abrigando tanto os grandes acontecimentos como os pequenos
incidentes do cotidiano. É local de intenso fluxo de mudanças, de movimento e
de novas relações sociais. Tem a sua importância como um dos lugares das
experiências humanas nas cidades.
atual Rua Formosa - 1908
A partir de princípios do século XIX a rua vai
ganhando um novo prestígio dentro do nosso sistema de relações sociais. Ela
deixa de ser apenas um lugar para as águas servidas dos sobrados, da escuridão,
de poças de lama, bicho morto, etc, e passa a ganhar dignidade e importância
social.
Um dos exemplos dessa mudança é o aparecimento no início
do século XIX dos primeiros Códigos de Posturas Municipais, que procuravam
defender a rua, inibindo os abusos cometidos por particulares e das
residências, que se instalavam nas cidades com os mesmos modos e com a mesma
arrogância da casa de engenho ou da fazenda, fazendo da calçada picadeiro de
lenha, atirando no meio da rua o bicho morto, o resto de comida, a água
servida, e as vezes, até a sujeira do pinico.
atual Rua Liberato Barroso s/data
Tais posturas fixaram, assim, a importância, a
respeitabilidade e os direitos da rua, antes tão violados. Com elas criaram-se
restrições à liberdade dos particulares, proibindo-se, aos proprietários das
casas, certos absurdos, como o hábito de criar animais soltos na via pública, e
as bicas que lançavam águas pluviais sobre as calçadas. Também foram proibidas
a lavagem de roupa nas bicas do centro da cidade pelas negras dos mucambos, e a
surra de escravos por parte dos senhores depois que o sino da matriz badalasse
nove horas da noite.
No entanto, o que se procurou com esses códigos de Posturas,
foi dar uma nova e mais eficaz funcionalidade à cidade, para que seu
ordenamento de hábitos, de sociabilidade e dos espaços de vivências estivessem
de acordo com as pretensões civilizatórias e modernas.
Lagoa do Garrote, no Parque da Liberdade (Cidade da Criança)
No relato de suas memórias de infância, Gustavo Barroso
nos fala de um passeio pela manhã de 5ª. Feira, dia de folga (não houve aula),
que realizara com sua tia até o Parque da Liberdade, onde existia “....grande
lago represado em magelas de cimento como um tanque, que foi a antiga Lagoa do
Garrote”. Naquele dia, ele vira no reservatório do Pajeú, “caboclinhos e
moleques” a tomarem banho livremente, o que lhe causou inveja, mesmo que por um
instante, por não poder brincar como eles, porque era um filho-família. O
episódio por si só demonstra a diferença de hábitos, sendo o banho de lagoa
e/ou rio um costume que não deveria ser mais praticado, por ir de encontro às
posturas do município, que não só proibia o banho nos reservatórios públicos,
como ameaçava com punição ao infrator. O titulo VI em capitulo de n° II legisla
sobre “bulhas, vozerias, obscenidades e ofensas à moral” com a novidade:
punição para a pessoa que se banhar à luz do dia “no corrente da Rua do Poço,
na Lagoa do Garrote, Pajeú e outros lugares expostos às vistas dos viandantes
ou de quem estiver em casa”.
O Açude do Pajeú ficava no atual Parque Pajeú (ou Parque das Esculturas) localizado entre a rua 25 de Março e a Avenida Dom Manuel. (foto anuário do Ceará)
Entretanto, essa regra municipal que atenta para a
condução e preservação de um pudor e de uma moral comunitária, já estava
presente em códigos anteriores, em que os banhos na Lagoa do Garrote, em que se
empenhavam os rapazes nus, provocou a vigência do artigo 70, de posturas de 11
de maio de 1849, proibindo a apresentação de qualquer pessoa despida das seis
da manhã às 6 da tarde.
Se as mudanças do espaço urbano se deram já na
primeira metade do século XIX, seria no entanto, a partir da segunda metade que
a rua iria sofrer significativas alterações, isso porque essas modificações
eram fruto de um processo de transformação capitalista do mundo, e da expansão
de uma nova ordem burguesa que ora se mundializava atingindo em cheio as mais
diversas áreas.
Em decorrência, o que aconteceu nesse contento foi a
emergência de uma ordem urbano-industrial que exigiu desse espaço público sua
adequação aos padrões desejados de modernidade e progresso. Assim, a rua
refletiu a transformação do espaço e a reordenação da vida.
Portão de acesso ao Passeio Público, onde a Avenida Caio Prado era a vitrine das elites durante o período conhecido como Belle Epoque
Em Fortaleza essas mudanças coincidiram com o início
do período conhecido como belle époque, onde a elite formada por comerciantes e
profissionais liberais vindos de outras regiões do Brasil e do exterior, ajudou
a promover diversas mudanças importantes em Fortaleza. De influência francesa e
baseada em ideais de civilidade, esse contingente teve atuação destacada no período
compreendido entre 1860 até por volta da metade dos anos 1920, onde a cidade foi
amplamente influenciada pelas ideais de modernidade estética e comportamental.
Extraído do livro
Humor, Vergonha e Decoro na Cidade de Fortaleza (1850-1890)
De Marco Aurélio Ferreira da Silva
Coleção Outras Histórias
fotos do Arquivo Nirez e postais antigos
Coleção Outras Histórias
fotos do Arquivo Nirez e postais antigos
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