domingo, 17 de julho de 2022

Adolfo Caminha – A Literatura como Vingança

 


antigas residências da família de Adolfo Caminha, em Aracati (foto Mauricio Albano)


Nascido no Aracati, a 29 de maio de 1867, Adolfo Ferreira Caminha defrontou-se ainda na infância com dificuldades e aspectos amargos da vida. Em 1877 o Ceará foi assolado por uma das mais terríveis secas da história, e no mesmo ano perdeu sua mãe, e doente, seu pai o mandou para Fortaleza. Em 1883, nova partida, seguiu para o Rio de Janeiro, onde o tio materno o matriculou na Escola Naval para que seguisse carreira na Marinha. Como guarda-marinha viaja pelas Antilhas e pelos Estados Unidos. Durante a viagem redige um diário com anotações e observações sobre as terras vistas, que ressaltará no livro “No País dos Ianques”, de 1894.


Em 1888, já no posto de segundo-tenente alegando razões de saúde, Caminha pediu transferência para Fortaleza, onde serviu no cruzador Paquequer. Imaginou que a capital cearense fosse politicamente mais avançada do que a Corte, o Ceará por exemplo, havia sido a primeira província brasileira a libertar os escravos.




Na década de 1880 a vida literária em Fortaleza vivia um momento de grande atividade. Vários grêmios culturais se formavam em torno de ideais republicanos e abolicionistas e da estética naturalista, brigando jovens escritores. Deles sairiam posteriormente a Caminha, outros nomes que ficaram na história da literatura brasileira, como Manuel de Oliveira Paiva, Domingos Olímpio e Rodolfo Teófilo.      


Quando Adolfo Caminha chegou a Fortaleza, uma questão pessoal o ocupou mais do que a vocação literária e as tendências políticas: em 1889, ano da Proclamação da República, o escritor apaixonou-se por Isabel Jataí de Paula Barros, 19 anos, esposa de um alferes, que abandonou o marido e foi viver com ele.  O escritor foi alvo de críticas tanto da sociedade local como dos próprios colegas da Marinha, onde era também oficial. Chamaram-no de “flagelo dos bons costumes”.  A repercussão do caso foi tão grande que custou até mesmo a carreira do escritor na Marinha. Frota Pessoa, amigo de Adolfo caminha, conta a celeuma:


“ O idílio começou com todas as secretas cautelas, tímido a princípio, mais tarde audacioso, e imprudente. Nasceram ponderadas suspeitas no espírito do marido; cenas conjugais, violentas disputas, tempestuosas explicações lavraram aos poucos a discórdia no casal, e uma certa manhã, ela deserta do lar e vai se abrigar na casa do namorado. Ele não hesita; aceita-a e, em pleno dia, atravessa a cidade com sua amada pelo braço e a deposita em lugar seguro”.


A cidade ficou alvoroçada com o caso; os alunos da Escola Militar querem “vingar a farda do Exército”; as famílias puritanas exigem que o profanador dos bons costumes seja transferido do Ceará: faça suas aventuras onde quiser menos em Fortaleza.


Ao ser praticamente obrigado a deixar o posto na Marinha por causa da repercussão do caso, Adolfo Caminha viu frustrar-se todas as expectativas que o haviam levado a trocar o Rio de Janeiro por Fortaleza. Mais tarde, ele dedicaria o livro Cartas Literárias à sua amada: “Quero que o nome dela fulgure como uma legenda de ouro à primeira página de meu livro.” Amainados os ecos do tremendo escândalo, o escritor vai se reintegrando na vida da cidade.  Mas essa reintegração se processa com atritos e novas inimizades.



Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará, no Jacarecanga (acervo da Marinha)

Para sobreviver arranjou emprego como escriturário na Tesouraria da Fazenda. Mas queria ser escritor, e participava ativamente dos movimentos literários do Ceará. Em 1891 fundou a Revista Moderna e no ano seguinte, participou da fundação da Padaria Espiritual – movimento literário que acreditava na necessidade de educar as massas populares para modificar o Brasil. Mas, em função do casamento irregular, do qual nasceram duas meninas, o ambiente na cidade não favorecia Adolfo Caminha. Em 1893 ele conseguiu transferência para o Rio de Janeiro, como funcionário do Tesouro Federal. Pobre, procurou aumentar seus vencimentos como colaborador do Jornal Gazeta de Notícias. Ainda em 1893, publicou seu romance A Normalista.


A Normalista foi uma espécie de vingança literária de Caminha contra a cidade que o menosprezou, o romance traça um painel crítico implacável da vida em Fortaleza. Acompanhando a trajetória da adolescente Maria do Carmo, o autor desnudou os impulsos mais mesquinhos de tipos e habitantes da capital do Ceará. Através desse olhar de ódio e despreza, conseguiu dar vida a seus personagens, torná-los interessantes e convincentes.


Ao publicar o romance Caminha causou revolta na sociedade cearense da época. O autor expõe cruamente a falta de moral e as baixezas de pessoas influentes que posavam de puritanas, dignos representantes dos bons costumes.


A edição esgotou-se em poucos meses, graças à interferência das pessoas que se sentiram atingidas e que não tinham interesse na divulgação da história. O romancista então deixou de ser editado por muitos anos. Em seu livro “Escritores na Intimidade”, Raimundo Menezes fala sobre o episódio: 


"O autor focaliza em suas páginas cenas e fatos de Fortaleza daqueles tempos, ridicularizando e combatendo certos hábitos e costumes provincianos, quando então descrevera e pintara conhecidos tipos com nomes diferentes, porém, tão bem traçados, que foram prontamente identificados pela população e apontados sob o riso malicioso dos leitores.


Afirma que foi tamanha a celeuma provocada pelo romance que Adolfo Caminha recebeu ameaças de ser chicoteado e mesmo assassinado. Criou-se lhe um ambiente tal, que o escritor se viu na contingência de tomar determinadas precauções para evitar o perigo de ser surpreendido com um ataque à mão armada.


Na opinião unânime da crítica literária recente, o autor vingou-se das desditas que o viver no Ceará lhe proporcionara. Mas Caminha talvez não tenha se dado por satisfeito. É possível que continuasse decidido a causar escândalo e a levar adiante sua vingança literária. Em 1895, dois anos depois da edição de A Normalista, publicou “Bom-Crioulo”. Tema: um amor homossexual que resultaria em assassinato. Vestuário dos personagens: a farda da Marinha do Brasil.


Adolfo Caminha faleceu no Rio de Janeiro, a 1° de janeiro de 1897, antes de completar trinta anos, acometido de tuberculose. Terminava assim a carreira de autor, que ignorado em vida, seria depois redescoberto como um dos nomes mais originais das letras brasileiras.


Obras:


Vôos Incertos (poesia, 1886)

Judite (contos, 1887)

Lágrimas de um Crente (novelas, 1887)

A Normalista (Romance, 1894)

No País dos Ianques (Impressões de viagem, 1895)

Bom Crioulo (Romance, 1895)

Cartas Literárias (Crítica, 1895)

Tentação (Romance, 1896) 


Resumo: Bom-Crioulo



Bom-Crioulo conta a história de Amaro e Aleixo, a partir de uma perspectiva naturalista, isto é, de condenação da homossexualidade. Além disso, traz uma visão determinista, em que o meio corruptor (a Marinha) e a raça (Amaro é negro) determinam as atitudes dos dois personagens. Desse modo, Amaro é assim retratado pelo narrador: “um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada [...]”. Esse marinheiro é chamado de Bom-Crioulo, “na gíria de bordo”.

Ele se apaixona pelo jovem Aleixo e começa a seduzir o rapaz com promessas. Por fim, o grumete se rende após sentir “uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se lhe para o que ele quisesse”. E o narrador se refere à primeira relação sexual entre os dois desta maneira: “E consumou-se o delito contra a natureza”.

Além disso, Aleixo, um adolescente de quinze anos, branco e loiro, é descrito como tendo formas femininas: “[...] formas de homem tão bem torneadas, braços assim, quadris rijos e carnudos como aqueles... Faltavam-lhe os seios para que Aleixo fosse uma verdadeira mulher!...”.

Bom-Crioulo, então, aluga um quartinho, na rua da Misericórdia, no Rio de Janeiro. É ali que os amantes se encontram quando estão em terra. O quarto é alugado por dona Carolina, uma portuguesa, ex-prostituta e grande amiga de Amaro, pois, em uma ocasião, ele a salvou de um assalto.

No entanto, Carolina, uma mulher quarentona, fica interessada em Aleixo e seduz o rapaz. Após ele ceder ao desejo da mulher, a transformação em seu corpo é visível. Desse modo, o narrador sugere que manter relações sexuais com uma mulher fez com que Aleixo adquirisse características masculinas:

"Estava gordo, forte, sadio, muito mais homem, apesar da pouca idade que tinha, os músculos desenvolvidos como os de um acrobata, o olhar azul penetrante, o rosto largo e queimado. Em pouco tempo adquirira uma expressão admirável de robustez física, tornando-se ainda mais belo e querido".

E quando Amaro descobre a dupla traição, ele mata, de forma violenta, o seu amante. Dessa forma, o narrador tem a intenção de demonstrar a impossibilidade de um final feliz para esse tipo de relação.

No entanto, apesar de ser hoje considerada uma obra racista e homofóbica, Bom-Crioulo tem valor histórico. Afinal, essa obra de Adolfo Caminha é o primeiro romance brasileiro cuja temática principal é a homossexualidade. Assim, apesar do tom condenatório e punitivo, pela primeira vez na história da literatura brasileira, o protagonismo é dado a personagens homossexuais.

 

Fonte principal: A História do Ceará Passa por esta Rua, de Rogaciano Leite Filho, e outras  


                    

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