quinta-feira, 21 de julho de 2016

A Vida Cotidiana na Vila de Fortaleza

Nos seus primórdios Fortaleza era uma terra afastada do reino, vista com reservas pelos homens de maior poder econômico. Um lugar inóspito, sujeito a reveses climáticos, como as secas periódicas e onde os colonos estavam expostos aos ataques de índios ostensivamente hostis aos portugueses. 

Barra do Ceará - desenho de Franz Post, 1645 

O período anterior à emancipação da vila, permite elucidar não somente o lento processo de ocupação dessas terras, como também os desafios enfrentados nas paragens distantes da colônia portuguesa. Amplo espaço, população rarefeita, fauna e flora desconhecidas, extrema sujeição ás intempéries, dificuldade de transporte, comunicação incerta e morosa com os principais núcleos da administração colonial, são alguns dos aspectos que marcaram as condições em que viviam os contingentes que vieram à Capitania do Ceará nos séculos XVII e XVIII.

O cotidiano daqueles primeiros colonos, em sua maioria soldados da guarnição, era marcado pela rusticidade do meio, a instabilidade dos assentamentos e a dura obtenção da subsistência. Além da caça e da pesca e coleta de frutas, os pioneiros plantavam roçados de milho e feijão, criavam animais de pequeno porte e aprendiam com os nativos o emprego de certos recursos da natureza tropical, notadamente ervas medicinais, buscando fazer frente a enfermidades, venenos e peçonhas, desconhecidas em terras europeias.

Nas modestas casas de farinha e nos engenhos se beneficiava a mandioca e a exígua cana-de-açúcar era usada no fabrico de rapadura, que em 1783 o governador Montauri,(João Baptista de Azevedo Coutinho de Montauri/1780-1789),  pouco afeito as iguarias locais, descreveria como “uns pães de um açúcar muito mascavado e de ínfima qualidade, mais para incitar o nojo, que de servir ao paladar”. 

As habitações eram em sua maioria, de chão batido, feitas de taipa e cobertas de palha, com madeiramento extraído da carnaúba, atestando a grande simplicidade do padrão das construções e a falta de acesso a materiais duradouros, como pedra, telha e tijolo.

A vila era um lugar pobre. No século XVIII um viajante mais desavisado encontraria dificuldades para pisar na nossa Vila. Se viesse por mar, que era o mais comum, teria que encarar as dificuldades imediatas do porto de desembarque, à época, localizado na Prainha. A embarcação ancorava a uma distância considerável, depois o viajante descia para um paquete menor que o conduzia para o mais próximo possível da praia. Então, vinham dois escravos altos e fortes, com uma cadeira sobre os ombros; o viajante sentava na cadeira e era transportado pelos cativos, desviando das ondas mais rebeldes.

Praia de Iracema - final do séc. XIX

Para alcançar a parte alta da Vila, onde ficava a fortaleza e as principais construções, o viajante tinha que subir por um caminho arenoso – já que a vila ainda não era pavimentada – com fortes ventos e sol escaldante. E chegando no alto, iria encontrar construções toscas, com alguns prédios em pedra-e-cal. Quase não existiam calçadas, as ruas eram arenosas, e constantemente entrecortadas por carros de boi, que traziam produtos para serem vendidos em Recife.

Caso fosse convidado para entrar em uma casa, o viajante se depararia com uma mobília escassa, com muitas redes amarradas e poucas cadeiras para sentar. À noite a escuridão era companheira inseparável daqueles que se aventuravam pelas ruas, pois não existia qualquer tipo de iluminação pública. As casas, quando necessário, costumavam ter seus poucos aposentos iluminados por velas de sebo ou candeeiros de óleo de peixe, o que não tornava o odor agradável.

Em 1695, o povoado do forte contava com mais ou menos duzentos habitantes, subjugados à vontade suprema do capitão-mor e desassistidos do alcance efetivo da lei. Tal era o predomínio do arbítrio, do abuso da força, o imperativo da autoridade, que na Carta Régia de 1699, mandando erguer uma vila no Ceará, era salientado o propósito de controlar os abusos cometidos pelas autoridades e administrar melhor a justiça. Após uma série de disputas, a vila foi instalada em Aquiraz. Mesmo quando Fortaleza recebeu igual honraria, em 1726, manteve-se o aspecto de abandono e pobreza que lhe caracterizava. Em tudo pairava um certo ar de desolação, isolamento e senso de contingência ante as adversidades do ambiente. Compondo um traço fundante dessa colonização, a violência era o instrumento usual de resolução dos conflitos e sujeição do povo.

Rua Sobral

Na precariedade material que saltava a vista, com arruamentos grosseiros, casario modesto, mobiliário parco, padrão técnico rudimentar, carência de estradas e pontes, um forte em ruínas – se colhiam indícios de um modo de vida permeado pela improvisação e acomodações provisórias. Como se as coisas e os espaços fossem feitos para não durar além de duas ou três gerações, transmitindo aquela impressão de fragilidade constitutiva que emanava dos núcleos estabelecidos nas bordas do empreendimento colonizador.


Extraído dos artigos
Entre a Reta e o Círculo, de Antônio Luiz Macêdo e Silva Filho
O Encontro marcado com o Tempo, de Antônio Otaviano Vieira Filho
     Publicados na Revista Fortaleza, fascículo 14, de 13 de abril de 2006 
fotos (arquivo Nirez) meramente ilustrativas
     


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