sexta-feira, 31 de julho de 2015

A Fortaleza do tempo da "A Normalista" parte 2/2

No romance publicado em 1893, Adolfo Caminha traça um perfil de Fortaleza no final do século XIX. “A Normalista” é apontado como um dos principais representantes do Naturalismo no Brasil.

continuação ....

“O Zuza dava-se muito com o presidente, que também pertencia a uma alta linhagem de fidalgos em São Paulo e fora educado na Europa: um rapagão alegre, amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo das mulheres” p.34 


O presidente citado várias vezes no decorrer da história, é Antônio Caio da Silva Prado, nomeado presidente da província do Ceará por carta imperial de 25 de março de 1888. Nascido em São Paulo, de família rica e tradicional, irmão do renomado escritor Eduardo Prado, foi educado na Europa, cursou Engenharia na França e formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo. Caio Prado assumiu o governo do Ceará em 21 de abril de 1888, cercado de admiradores e elogios de simpatizantes, mas com reservas da imprensa local. Ao tomar posse no cargo, revelou todo o seu despreparo e desconhecimento de como lidar com os problemas que assolavam o Ceará. 

“Morava na Rua Formosa  numa casa assobradada e vistosa com frontaria de azulejos, varandas e dois ananases de louça no alto da cimalha, à velha moda portuguesa” p. 34 



A descrição é referente ao local de moradia do coronel Sousa Nunes, que residia com a mulher e hospedava o filho Zuza, quando este vinha ao Ceará. A Rua Formosa é a atual Rua Barão do Rio Branco, uma das mais antigas de Fortaleza, famosa por seus sobrados e residências de alto luxo. 

“Passava um enterro caminho do cemitério. Quatro gatos pingados,  de preto conduziam o caixão cujos galões de fogo reluziam ao sol” p.44

Antigamente os enterros eram solenes e a pé. O caixão do falecido era carregado por amigos, parentes ou pelos “gatos pingados”, homens contratados para levar o defunto ao cemitério. Vestiam-se com casacas compridas e negras, uma fita amarela a tiracolo, calças com listas vermelhas, cartolas altas de oleado, de abas enroladas. Somente homens, todos de preto, acompanhavam o féretro. Se o defunto era pessoa importante, o cortejo terminava com uma banda de música tocando peças fúnebres.

“Esse José Pereira, fisicamente, dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo, da Escola Normal... Começara a vida pública no Correio, como carteiro e agora ai estava feito redator da Província” p.54

No tempo da normalista”, o Correio funcionava no térreo do prédio da Assembleia Provincial, na Praça General Tibúrcio, onde ficou até 1895. No dia 9 de março desse ano, mudou-se para o prédio da União Cearense, localizado na Rua Dr. João Moreira, na Praça dos Mártires.


“Onde fica a tipografia do jornaleco? Na Rua de São Bernardo, creio eu ...” p. 56

A Rua de São Bernardo que recebeu esse nome por causa da Igreja de São Bernardo localizada na esquina com a Rua Senador Pompeu, é a atual Pedro Pereira.

“José Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da Perseverança e Porvir...” –  p.58



A Sociedade Perseverança e Porvir era uma entidade voltada para a causa abolicionista, instalada no dia 28 de setembro de 1879 em homenagem declarada ao oitavo aniversário da Lei do Ventre Livre. 

“Ao dobrar a Rua da Assembleia, o Zuza parou, à espera que o bonde passasse...” – p. 59
A Rua da Assembleia é a atual Rua São Paulo

“Entregou-a ela mesma, no Passeio Público, numa quinta-feira à noite, uma belíssima noite de luar. A Avenida Caio Prado tinha o aspecto fantástico...”p.64

O Passeio Público era dividido em três planos: No inicio do século XX, foi rodeado de grades artísticas e dividido por classe social. A elite frequentava a Avenida Caio Prado, de frente para o mar; A classe média frequentava a parte central denominada Avenida Carapinima, e os pobres ficavam na Avenida Padre Mororó. É possível que no decorrer da história, a avenida não se chamasse ainda Caio Prado, nome dado em homenagem ao presidente da província falecido em 1889 e personagem do romance. 

“Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata que lamentava por sua vez tamanho “desastre” . um rapaz fino, com um futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma simples normalista sem eira nem beira! E em toda parte, desde o Café Java até o Palácio da Presidência comentava-se, discutia-se ruidosamente assombroso acontecimento...”  p.76



O Café Java era um dos quatro cafés localizados nos cantos da Praça do Ferreira. Ali nasceu a ideia de se criar, em 1892, a Padaria Espiritual. O Java data da década de 80 do Século XIX, e foi demolido pela reforma da praça em 1925.

“No quarteirão compreendido entre a Rua das Flores e a do Senador Alencar...” p.80
A Rua das Flores é a atual Rua Castro e Silva

“A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a Lídia, era no Benfica...” – p 81 

O Benfica ficava nos arrabaldes de Fortaleza, na estrada do Arronches, atual Parangaba. Era um lugar de muita vegetação, com muitos sítios e chácaras e famoso por suas fontes de águas limpas.

"Agora, uma semana depois, num sábado, toda a gente falava no casamento da Campelinho como d’um acontecimento extraordinário... Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva Campelo, no trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, daí a pouco surgiu na calçada a Campelinho caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço dado com a firma Carvalho e Cia... Logo após vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do Carmo e um rapaz empregado do comércio... O cortejo desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se debruçava nas  janelas para ver melhor a noiva... Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando baixinho, com um belo ar de velha familiaridade"  P. 82/3

Descrição do cortejo de casamento daqueles tempos. A exemplo dos enterros, noivos e convidados também seguiam a pé, exceção para as famílias mais abonadas que geralmente dispunham de transporte próprio (carroças puxadas por cavalos ou burros).
  
"Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o casamento seguiu em paz, direto à Igreja do Patrocínio.” P. 83


“Nisto adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão com as calças arregaçadas, um barril na cabeça, a gritar – arre corno! Cercado de garotos que lhe atiravam pedras.... depois o preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada de imundícies, e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço de circo, uivando uma porção de asneiras, que a molecagem replicava sempre com o mesmo estribilho, a uma voz: – é sim sinhô! “ p.90



O sonho de Maria do Carmo com o negro Romão está relacionado a forma de saneamento doméstico praticado por largos anos em Fortaleza. De acordo com Raimundo Girão, em "Geografia Estética de Fortaleza" o Romão era um antigo escravo bestializado pela miséria. Imundo, andava meio curvado, apoiado a uma bengala, rosnando sempre nomes feios. Sustentava-se de cachaça e comia vísceras cruas, misturadas com farinha de mandioca, no fundo do seu fétido chapéu de palha. Quando ferrava no sono em um vão de porta, a mulher e as filhas, que o seguiam à distância, vasculhavam lhe os bolsos em busca dos níqueis e cobres que porventura tivesse sobrado da aguardente. Romão era um quimoeiro. Como naquele tempo não tinha esgotos, era usual em quase todas as residências, juntar os detritos fecais em grandes barris de madeira, conhecidos por “quimoas”, e mandar esvaziar o infecto conteúdo nas proximidades da praia. A tarefa era realizada pelos quimoeiros, que carregavam na cabeça sua malcheirosa carga. Por onde passavam, havia grande correria de homens, mulheres e crianças, bater de portas e janelas, todos procurando evitar o encontro com os carregadores. E quando cansados ou bêbados, (e eles bebiam muito para poder encarar o serviço), descansavam o barril nas calçadas ou num batente que lhes servisse de apoio. De onde quer que partissem, os quimoeiros passavam obrigatoriamente pela frente da Santa Casa, desciam o calçamento que dava no velho gasômetro, rumo a praia (que seria hoje a Praia de Iracema). Ali chegando o fétido carregamento era atirado ao mar, o barril era lavado, e o homem voltava, passando pela antiga Rua Formosa.
  
“Seguiram para a Praça do Ferreira a tomar o bonde de Pelotas” p.98

  
João da Mata e Maria do Carmo iam para o Benfica visitar a amiga Lídia. Para tanto rumaram para a Praça do Ferreira, ponto de partida de todas as linhas. Os bondes eram movidos a tração animal, trafegavam quase o dia inteiro, das 6 da manhã às 9 da noite. O itinerário do Bonde de Pelotas tinha inicio na Praça do Ferreira e terminava na Praça de Pelotas (atual Clóvis Beviláqua) junto à Rua General Sampaio. 

“ e ir viver na Santa Casa de misericórdia, curando os enfermos...” p. 103

A Santa Casa de Misericórdia foi inaugurada no ano de 1861, no mesmo local em que se encontra até hoje, em frente ao Passeio Público. Foi o primeiro hospital de Fortaleza e o único hospital público até o começo dos anos 30. A Santa Casa foi o principal espaço de tratamento da população pobre, desde que os doentes não estivessem acometidos por moléstias contagiosas. Para estes foi criado o Lazareto da Lagoa Funda, localizado à cerca de 7 km do centro.

“Depois, enquanto o vapor singrava em direção ao Mocoripe, começou a examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral de Fortaleza, desde o farol de Mocoripe até a Ponta dos Arpoadores...
primeiro o farol, lá muito longe, esbranquecido, cor de areia, ereto, batido pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague até a cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edifício da Alfândega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tão feio que o mar parece recuar com medo à sua catadura.”   
“noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia movediça que os ameaçava soterrar, uns já enterrados até a fronde, outros inclinados, prestes a desabar; o torreão dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo medieval, cinzento e esguio; o seminário por trás, no alto da Prainha, com suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio Público com seus três planos em escadarias; a S.C. de Misericórdia, branca, no alto; o Gasômetro; a Cadeia; e por ali afora o arraial Moura Brasil, invadido pelo mar, reduzido a um montão de casebres trepados uns sobre os outros...” p.109



Pressionado pelo pai, que não queria o namoro do estudante com a normalista, Zuza embarca para Recife, e observa com atenção, aparentemente pela primeira vez, os detalhes da costa cearense sob a perspectiva mar/terra. Nos trechos acima está todo o panorama da velha Fortaleza do tempo de Adolfo Caminha e que se prolongou até a década de 1930, com pouquíssimas modificações.  

“Maria do Carmo não podia se conformar com a ideia da morte do presidente, o homem da moda, o querido das moças, o grande amigo do Ceará, que tantos benefícios fizera a essa província, mandando construir açudes no sertão, reconstruindo o Passeio Público, ativando as obras do porto, facilitando a emigração, prodigalizando esmolas e finalmente introduzindo em Fortaleza certos costumes parisienses, como o sistema de passear a cavalo a chouto, de aparar a cauda aos animais de sela.” P. 113

Adolfo Caminha esboça o retrato do antepenúltimo presidente da província do Ceará,  Caio Prado. Para completar a tragédia da falta de chuvas e acompanhando as secas periódicas, proliferou no Ceará uma violenta epidemia de febre amarela, agravando o quadro de miséria para milhares de pessoas. Com a epidemia instalada no Estado, o próprio presidente foi uma das vítimas; acometido da doença, faleceu em 25 de maio de 1889.


 Uma das poucas fotos em que aparece o então presidente Caio Prado, numa reunião em uma chácara no Benfica. O presidente é o número 14.  

“Os sinos da Sé começaram a dobrar a finados...” p. 115

Era costume os falecimentos serem anunciados pelos sinos da Sé. A partir daí sabia-se da morte de algum morador por uma cortina preta, com uma cruz prateada no centro, posta na fachada da casa do falecido. O costume foi abolido em 1878 porque a morte de alguém não afligia mais a cidade, em razão do grande número de vítimas das secas e das epidemias. 

“O enterro do presidente passava na esquina, caminho do cemitério. Maria do Carmo assistia com a respiração suspensa e um nó na garganta, o desfilar do préstito. O caixão levado por seis homens de preto, coberto de galões dourados debaixo da chuva miúda, o acompanhamento – uma comparsaria dispersa de gente de todas as classes de chapéu-de-chuva-aberto, marchando resignadamente ao som da música do batalhão que tocava à funeral”. P.116

mais uma vez a descrição de um enterro antigo com a presença dos “gatos pingados”, homens contratados para carregar o caixão, todos vestidos com roupas especificas para essa ocasião. Como se tratava de gente importante, nesse caso, havia o acompanhamento de uma banda de música.  

“durante o jantar declarou que a Maria, no dia seguinte domingo, iria passar uma semana ao Cocó, em casa de tia Joaquina, conhecida como velha dos cajus”. p.119


Grávida do padrinho João da Mata, Maria do Carmo cumpre o destino de mulheres solteiras que engravidavam: ser confinada em algum lugar reservado e distante dos olhos de parentes e vizinhos até o nascimento da criança. O Cocó foi o lugar escolhido para Maria do Carmo ter o filho. Era distante e quase despovoado. Segundo nota do editor, ficava a cerca de uma légua de Fortaleza. A tia Joaquina e o marido mestre Cosme, moravam numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no centro, cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio de água cristalina.

“A esse tempo um grande acontecimento preocupava toda a cidade. lia-se na seção telegráfica da província as primeiras noticias sobre a proclamação da república brasileira.... O Ceará estremecia a esses boatos. Grupos de militares cruzavam as ruas, ouviam-se toques de corneta no batalhão e na Escola Militar. Tratava-se de depor o presidente da província, um coronel do exército. Os canhões La Hitte, da fortaleza de N.S. d’Assunção, dormiam enfileirados na Praça dos Mártires, defronte ao Passeio Público, guardados por alunos de patrona e gola azul... “p.136

A notícia da Proclamação da República chegou por telégrafo, no final da tarde do dia 15 de novembro. O Ceará era então governado pelo coronel Jerônimo Rodrigues de Moraes Jardim, no poder havia apenas um mês. Ao tomar conhecimento da notícia, o presidente promoveu reuniões com os comandantes das forças militares, auxiliares e chefes políticos locais, pedindo o auxílio de todos para a manutenção da ordem pública. Moraes Jardim foi convidado a aderir à república, mas relutou talvez em razão de não acreditar que o Império pudesse cair tão facilmente, como os fatos davam a entender. No dia 16, oficiais do 11° Batalhão de Infantaria, alunos do Colégio Militar e membros do Centro Republicano se reuniram na Praça dos Mártires (atual Passeio Público) para garantir a adesão do Ceará ao novo regime – deliberaram pela deposição do presidente Moraes Jardim. A aglomeração, sob o olhar curioso e espantado da população de Fortaleza, deslocou-se a seguir em direção ao palácio do governo. Chegando à sede do governo, a multidão intimou o último presidente monarquista do Ceará a entregar o poder, ao que Moraes Jardim não ofereceu  nenhuma resistência. Depois por indicação do major Manuel Bezerra de Albuquerque, professor do Colégio Militar, foi indicado para governar a província Luís Antônio Ferraz, comandante do 11° Batalhão.

pesquisa:

Caminha, Adolfo. A Normalista. Rio de Janeiro: Série Bom Livro - Editora Ática 10a. edição, 1994
Farias, Airton. História do Ceará/Airton de Farias. Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2009 - 5a. edição. 400p. 
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1959.
GIRÃO, Valdelice Carneiro. A Emigração Cearense no Governo Caio Prado (1888-1889). Fortaleza: Revista do Instituto do Ceará, 1990.
as demais informações foram retiradas do site Fortaleza em Fotos, onde constam os os nomes de todas as fontes.
Fotos IBGE, Aba Film, Álbum de Vistas do Estado do Ceará - 1908, Nirez e Brasiliana Fotográfica. 

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A Fortaleza do tempo da "A Normalista" 1/2

No romance publicado em 1893, a normalista Maria do Carmo é o pretexto para Adolfo Caminha apresentar aos leitores sua visão de Fortaleza de fins do século XIX. De um lado, o povinho miúdo: o pequeno funcionário público, a mulher que vendia rendas, o barbeiro, o guarda-livros, etc. de outro lado, o governador da província, o coronel Sousa Nunes, seu filho Zuza – estudante de direito – o jornalista José Pereira, o diretor e os professores da escola Normal. É a propósito da vida da normalista que o autor vai delineando quadros da vida da capital: uma aula na Escola Normal, o footing no Passeio Público, uma festa de casamento, um enterro, etc.

a então Praça Marquês de Herval (atual José de Alencar) com o prédio da Escola Normal

Neste painel de costumes o autor quer mostrar toda a mesquinha sordidez da vida social na Fortaleza do seu tempo. O mau humor para com a cidade é evidente e costuma ser apontado pelos críticos de Adolfo Caminha como uma espécie de vingança: o autor jamais teria perdoado seus conterrâneos pelas críticas aos seus amores adúlteros com a mulher de um colega. 

Os Lugares da Normalista 

“João Maciel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João da Mata, habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e donde se avistava a Estação da linha férrea de Baturité”. p.11

João Maciel morava com sua companheira D. Teresinha e sua afilhada Maria do Carmo, aluna da Escola Normal. O Trilho, forma abreviada de Rua do Trilho de Ferro, é hoje a Avenida Tristão Gonçalves. Pela descrição feita, João da Mata residia no lado oeste da rua (lado da sombra) próximo à Praça Castro Carreira, pois de sua casa se avistava o prédio da Estação da linha férrea de Baturité. 

“Davam nove horas na quando todos se ergueram”. p.14 


A Sé em questão era a antiga Igreja de São José, que por volta de 1854 inaugurou o primeiro relógio público de Fortaleza. Seus ponteiros decretavam a hora oficial, e por eles, as fábricas, o comércio, as escolas e os habitantes, ajustavam  seus relógios. A Igreja de São José foi demolida em 1938. No mesmo local foi construída a atual Catedral da Sé.

“A noite estava escura e calma as estrelas tinham um brilho particular, altas minúsculas como cabeças d’alfinete em papel de seda. Ouvia-se distintamente, como por um tubo acústico, a toada dos soldados rezando à Virgem da Conceição no quartel de linha...” p.15

O quartel de linha ficava onde hoje se encontra a 10ª RM. O antigo quartel do 11° Batalhão de Infantaria teve sua construção iniciada na administração do coronel Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca, governador da Capitania no período de 1765 a 1781, em terreno de propriedade do padre José Rodrigues, que o oferecera ao governo juntamente com a capela de Nossa Senhora da Assunção, edificada por ele.

“Desde a saída de Maria do Colégio das Irmãs de Caridade tinha se operado uma mudança admirável nos hábitos de João da Mata... Aquela Maria do Carmo do Imaculada Conceição, toda santidade...” p.16


Antes da Escola Normal, Maria do Carmo fora aluna interna do Colégio da Imaculada Conceição. O Imaculada Conceição foi fundado em 1865 como escola para menores órfãos e abandonados. Dirigido pelas freiras francesas da Ordem das Filhas de Caridade de São Vicente de Paula, chegadas em Fortaleza naquele ano. A partir de 1867 o colégio funcionou num prédio construído para abrigar um hospital. Ocupava a área equivalente a um quarteirão quadrado, na parte setentrional da Praça Filgueiras de Melo, o mesmo local que ocupa até os dias atuais. 

Havia meses Maria do Carmo cursava a Escola Normal.” P.17


Tanto João da Mata quanto D. Terezinha, padrinhos e tutores de Maria do Carmo eram de opinião que o Colégio da Imaculada Conceição não era o lugar ideal para uma menina inteligente como Maria. “Não compreendia  como pudesse instruir-se na prática indispensável da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no silêncio e na sensaboria de uma casa conventual entre paredes sombrias, com quadros  alegóricos das almas do purgatório e das penas do inferno.”
A Escola Normal Pedro II, inaugurada em 1884 na Praça Marquês de Herval destinava-se a formação de professores para as  escolas do Estado.  O surgimento da Escola Normal provocou uma grande polêmica na sociedade, por causa da proposta de formar professoras profissionais, numa época em que as mulheres eram destinadas ao casamento e a criação de filhos. O antigo prédio da Escola Normal atualmente é ocupado pelo IPHAN, localizado na Praça José de Alencar. 

Até a Praça do Patrocínio, como uma grande senhora independente” p.17.

Até 1870 a atual Praça José de Alencar , onde estava localizado o prédio da Escola Normal, chamava-se Praça do Patrocínio, por causa da igreja de N. S. do Patrocínio, construída  no largo e inaugurada em 1852. Em 1893, data em que o romance foi publicado, a Praça já se chamava Marquês de Herval.

A fama da normalista encheu depressa toda a capital. Não se compreendia como uma retirante saída a pouco das Irmãs de Caridade fosse tão bem feita de corpo, tão desenvolta e insinuante ....Nas reuniões do Club Iracema era ela a preferida dos rapazes...” p.17
 
O Clube Iracema foi fundado no dia 28 de junho de 1884, pelos recusados do Clube Cearense, que se formava à margem do mundo aristocrático de então,  um ascendente grupo social médio-alto, constituído por comerciários, despachantes e guarda-livros, muitos deles, já na década de 1870, participantes de atividades  literárias e jornalísticas, e ativos militantes abolicionistas. No início funcionou em prédio na esquina das Ruas Senador Pompeu e Guilherme Rocha. Depois se mudou para a Rua Barão do Rio Branco, onde mais tarde se instalou a Faculdade de Farmácia e odontologia. Hoje, no local, tem uma agência do Banco do Brasil.  

“João da Mata inflava. Certo não a entregaria por preço algum a qualquer rapazola como o filho do coronel Souza Nunes. Entretanto, o Zuza era um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos, assinava a Gazeta Jurídica, frequentava o palácio do presidente...” p.17


O Palácio do presidente era o Palácio da Luz, à época a residência oficial do presidente da Província do Ceará, localizado na Praça General Tibúrcio. Foi construído no final do Século XVIII, com auxilio de mão-de-obra indígena, para servir de residência do capitão-mor Antônio de Castro Viana. O primeiro presidente a ocupar o imóvel foi o governador Luís Barba Alado de Menezes, em 1809.

“Sobre a cômoda, ao pé do oratório, ardia uma lamparina de azeite” p.18

No final do século XIX, onde se situa temporalmente o romance, as casas eram iluminadas por candeeiros, lamparinas e velas, enquanto que nas ruas, praças e demais espaços públicos já havia iluminação a gás carbônico. O material para instalação do gasômetro de Fortaleza chegou em 9 de outubro de 1866, sendo concessionária do serviço a empresa Ceará Gás Company, com sede em Londres.

”O capitão Bernardino de Mendonça chegou a Fortaleza pela estrada nova de Messejana” p. 18 

A Estrada de Messejana ou Calçamento de Messejana é o antigo nome da Avenida Visconde do Rio Branco. 

“Ao cabo de 12 longos dias em que paravam para repousar à sombra d’alguma árvore que ainda verdejava ou nalguma palhoça abandonada, avistaram o campanário branco e alegre do Coração de Jesus” p.21


A descrição se refere à viagem feita pelos pais de Maria do Carmo quando se retiraram do interior de Campo Alegre em direção a Fortaleza fugindo da seca de 1877. Mas a igreja do Coração de Jesus não existia nessa época, visto que só foi inaugurada em 1886, aproveitando justamente a mão-de-obra de retirantes da seca, que vagavam pela capital em busca de trabalho.



“Maria lembrava-se de tudo. Depois ela ficara sozinha em companhia dos padrinhos. Nesse tempo moravam na Rua de Baixo” p. 23  


A antiga Rua de Baixo é a atual Rua Conde d’Eu



“ o certo, porém é que o procedimento de D. Amanda não escandalizava a sociedade. Vivia na sua modesta casa do Trilho, muito concentrada, num respeitoso isolamento, saindo à rua poucas vezes em companhia da filha, não frequentando bailes nem o Passeio Público” (26)






D. Amanda era viúva, morava em frente a casa de João da Mata, em companhia de sua filha Lídia, colega de Maria do Carmo na Escola Normal. Apesar da vida reservada, mãe e filha eram vítimas da maledicência popular. 

Inaugurado em 1880 o Passeio Público era um espaço ajardinado, arejado, reservado para a fruição daqueles belos tempos, onde o footing (passeio a pé), o meeting (encontro entre pessoas) e o flert (paquera) eram praticados regularmente. Sobranceiro ao mar e bem arborizado, o logradouro foi murado e decorado com estátuas representando divindades mitológicas gregas, além de canteiros, coreto, café, passarelas pavimentadas e longos bancos. Atração imperdível  às quintas e domingos o Passeio lotava-se de gente elegante exibindo as últimas novidades trazidas pelos navios vindos da Europa. A banda municipal embalava os namoros, os flertes e o passeio dos frequentadores. 



“ Era hora do almoço. O amanuense estava apressado porque tinha de ir à praia ao embarque do conselheiro Castro e Silva que seguia para o Rio de Janeiro... No porto havia grande lufa-lufa de gente que embarcava e desembarcava simultaneamente, bracejando, falando alto... ” p.31




Na época o porto de Fortaleza era o da Prainha, situado entre o Centro e a Praia de Iracema. A Ponte Metálica, que funcionou como local de embarque e desembarque durante muitos anos, só foi construída em 1906.  



“Um carro parou à porta da Escola de Aprendizes Marinheiros: era o conselheiro, metido numa sobrecasaca muito comprida, cheio de atenções” p.32


A Escola de Aprendizes Marinheiros foi instalada em 31 de março de 1865 na Rua da Praia (atual Avenida Pessoa Anta), perto do porto, portanto, em casas pertencentes ao barão de Ibiapaba; em 1908 mudou-se para o Jacarecanga.

continua.....

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Origem e Urbanização do Benfica

Ao longo da segunda metade do século XIX, a província de Fortaleza foi assolada por sucessivas epidemias de cólera e febre amarela. Em 1862 foi constatada a presença de um surto de cólera-morbus que se propagou para Maranguape e Pacatuba. A falta de controle sobre os doentes gerou o temor que a água consumida pela população estivesse contaminada.

Estrada do Arronches (atual Parangaba) em 1919 - foto Brasiliana Fotográfica 

O sitio Benfica estava localizado na Estrada de Arronches, fora dos limites urbanos de Fortaleza. Começou a ser valorizado quando a epidemia de cólera-morbus assolou a cidade. Devido a distância do núcleo urbano, as terras do sítio foram consideradas aptas para resolver o problema de abastecimento de água, por estarem distantes de qualquer foco de contaminação dos cemitérios e por contar com inúmeras fontes de águas limpas.

Pela resolução n° 1023, de 27 de novembro de 1862, foi concedido ao proprietário do Sítio Benfica, José Paulino Hoonholtz, o privilégio de explorar  por 50 anos o fornecimento de água. O documento obrigava a instalação de no mínimo quatro chafarizes em diferentes pontos da cidade, e ordenava o fechamento de todas as cacimbas residenciais. No ano seguinte Hoonholtz transferiu a concessão do abastecimento para a empresa Ceará Water Company Ltd., que explorou o serviço até 1877, quando foi paralisado por falta de água e a companhia foi à falência. A seca de 1877 perdurou até 1879.

Igreja de N. S. dos Remédios 

Em 1878 foi iniciada a construção da primeira igreja do bairro, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Era desejo de um certo Antônio do Amaral  construir uma capela em terreno de sua propriedade no Benfica, com a denominação de Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, por ser esta a padroeira de freguesia onde nascera, numa das ilhas Açores. Vindo, porém, a falecer sem realizar seu intento, coube à sua mulher dar execução ao desejo do marido. Obtida a competente autorização, começaram os trabalhos, levantando-se as paredes do edifício, mas faltaram recursos e as obras ficaram paralisadas por cerca de 15 anos.

Então, alguns moradores mais abastados do Benfica, tendo a frente o Coronel João Gentil de Carvalho e sua família, fizeram vultosos donativos, que somados a outros recursos de fontes diversas, permitiram a conclusão e inauguração do templo, em agosto de 1910. Após a inauguração, a igreja passou a ocupar lugar de destaque na vida do bairro: tudo que se concretizasse no campo cultural, social ou religioso, tinha origem na igreja. Segundo historiadores, a Igreja dos Remédios é um legado da família Gentil aos moradores do Benfica: durante muitos anos eles foram responsáveis pelas despesas de manutenção e conservação do templo.

Anexa a Igreja dos Remédios foi erguida a Casa das Missões, inaugurada em 1927, também com recursos provenientes de doações, que passou a abrigar os padres lazaristas.  Mais tarde esse prédio abrigou o Hospital Mira Y Lopez, e foi demolido em março de 2013.

residência do empresário José Gentil, hoje Reitoria da UFC 

Em 1909, a chácara localizada na Avenida Visconde de Cauípe (atual Avenida da Universidade) foi adquirida pelo empresário José Gentil, que ergueu no local, em 1918, um palacete para sua moradia. Em torno da casa construiu vilas e ruas com residências de vários tamanhos e estilos, praças e áreas verdes, lugar que ficou conhecido como Gentilândia.

A Gentilândia tornou-se uma verdadeira cidade modelo que serviu de padrão às novas construções e vilas da cidade. Até meados da década de 1940, o bairro esteve em evidência com a execução das obras da Gentilândia, até que o plano de edificação da Imobiliária José Gentil começou a ser gradativamente desativado.

ônibus que fazia a linha do Prado 

No início da década de 1950, o lugar começou a entrar em decadência; antigos moradores começaram a deixar o bairro em busca de novos espaços, esvaziamento acentuado em razão da tendência de crescimento  da cidade para a Aldeota e para o litoral. Com a debandada dos ricos, o palacete de José Gentil foi posto à venda e adquirido pelo reitor da Universidade Federal do Ceará, em 1956. Posteriormente em 1959, foi construída a Concha Acústica, o maior auditório ao ar livre do Ceará, com capacidade para 3.000 pessoas. 

Avenida Visconde de Cauípe

Ao longo dos anos a vila de casas construída em 1931, sempre foi enquadrada pelos mapas da cidade como parte do Benfica. No entanto, em julho de 2000 foi aprovada a Lei Municipal n° 8480, criando o bairro da Gentilândia, englobando o quadrilátero urbano compreendido entre as Avenidas da Universidade, Treze de Maio, Expedicionários e Eduardo Girão, se constituindo no menor bairro de Fortaleza. Mas o nome Gentilândia não foi reconhecido pela população, e as ruas que estariam dentro da área do bairro, são consideradas como pertencentes ao Benfica. O CEP (código de endereçamento postal) assinala o bairro como sendo o Benfica.
  
Estádio Presidente Vargas na década de 1940 

O Benfica acolheu a primeira universidade e os primeiros estádios de futebol da cidade, o Campo do Prado e mais tarde o Presidente Vargas, inaugurado em 21 de setembro de 1941. O Presidente Vargas é o único estádio da capital para jogos de médio porte (capacidade para pouco mais de 20 mil pessoas). Conforme depoimento de moradores, em dias de jogos a maior parte do bairro se transforma em campo de batalha: gangues, bêbados,  agressões a transeuntes e moradores, poluição sonora, acúmulo de lixo, vandalismo, roubos e assaltos, patrocinados por parte do público que frequenta o estádio, são comuns nessas ocasiões.

 
Foto atual do Benfica, com o Shopping Benfica e a Estação do Metrofor 

O Benfica (incluindo a Gentilândia) está localizado na porção centro-oeste de Fortaleza, ocupando uma área de 143,1 hectares. Limita-se ao Norte pela Rua Antônio Pompeu; a Leste pela Rua Senador Pompeu e Avenida dos Expedicionários; ao sul, pela Avenida Eduardo Girão e a Oeste, pela Avenida do Imperador, Rua Carapinima e Avenida José Bastos. 

Fonte: Subsídios a Elaboração a Agenda 21 Local - Diagnóstico Participativo do Bairro do Benfica - Dissertação de Mestrado - autora: Fátima Garcia
fotos do arquivo Nirez

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Orson Welles e a Filmagem no Ceará

Em 10 de setembro de 1941 um grupo de quatro pescadores  cearenses empreendeu um “raid” de jangadas, saindo de Fortaleza em direção ao Rio de janeiro. Manoel Olímpio Meira, o Jacaré, presidente da Colônia de Pescadores; Manoel Pereira da Silva, o Manoel Preto; Jerônimo André de Souza e Raimundo Correia Lima, o Tatá. Os navegantes pretendiam com esse feito, levar uma mensagem de apelo ao então presidente Getúlio Vargas, alertando para as precárias condições de trabalho dos jangadeiros.

 Em 16 de novembro de 1941, a Gazeta de Notícias estampou manchete com o título “apoteótica recepção no Rio”, ressaltando o bom êxito da missão dos 4 jangadeiros. Jacaré, ao saber que voltaria ao Ceará, de avião, respondeu com o bom humor de homem simples: vim feito peixe e vou voltar que nem urubu...

Essa façanha dos cearenses foi publicada na Revista Time, no final de 1941, e chamou a atenção do ator norte-americano Orson Welles, que incluiria o episódio em seu filme “It’s All True”, uma trilogia baseada em histórias reais, rodado no Brasil. A história daquela heroica travessia de 1941, quando num frágil embarcação, foram percorridos 2.500 quilômetros da costa brasileira, seria em parte, rodado no Ceará. Para atores deste tema do filme, foram contratados os próprios jangadeiros.

Casa do pescador Jerônimo, no Meireles 

Orson Welles virou celebridade mundial com seu noticiário radiofônico, quando em 1938 provocou pânico em milhares de ouvintes desavisados. Baseado no filme “Guerra dos Mundos”, Orson Welles anunciou, pelo rádio, um hipotético ataque de marcianos à cidade de New Jersey.  Em 1940, escreveu, dirigiu, produziu e atuou em Cidadão Kane, uma biografia disfarçada do poderoso magnata da imprensa americana Randolph Hearst.

Orson Welles, sentado durante as filmagens no Mucuripe 

No Brasil, onde permaneceu por cerca de 6 meses, Welles iniciou a filmagem de “It’s All True”, encomendado pelos estúdios da RKO. O filme fazia parte da política de boa vizinhança desenvolvida pelo governo dos Estados Unidos. Preocupados com a indecisão ideológica dos países latino-americanos diante da guerra, os norte-americanos – que ingressaram na guerra em 1941 – tentavam construir uma identidade comum com seus vizinhos sul americanos, visando a adesão destes à causa americana.

Em 1942 Welles desembarcou no Rio de janeiro para rodar It’s All True. Para melhor se inteirar sobre o que seria o terceiro tema do filme (os outros temas eram o Rio de Janeiro e a Bahia), Orson Welles fez sua primeira viagem a Fortaleza, visitando a terra e conhecendo os costumes de seus protagonistas. A filmagem começou em maio e Orson Welles intitulou-o de “four men on a raft” (quatro homens numa jangada).

prédio do Jangada Clube, local utilizado por Orson Welles como ponto de apoio em sua estada em Fortaleza 

Durante as filmagens no Rio de Janeiro, Jacaré, um dos personagens do filme, perdeu a vida acidentalmente, no primeiro dia de filmagem, quando se reconstituía a chegada dos jangadeiros ao Rio de Janeiro.Com isso, o filme de Orson Welles ficou inacabado. Pressionado pelo estúdio, o diretor recebeu ordem de regressar o quanto antes aos Estados Unidos. Welles indenizou a família de Jacaré e empenhou-se em concluir o filme utilizando um dublê. Pressionado por todos os lados, com produtores descontentes com a extensão das filmagens e com a ênfase na pobreza e na negritude do episódio sobre o carnaval, Welles deixou o Brasil para nunca mais voltar, sem ter a oportunidade de finalizar o “It’s All True”, editado parcialmente sete anos depois de sua morte.

Vários fatores contribuíram para a interrupção do filme. Entre esses, o rumo da mensagem que ele passaria, diferente daquela orientação da política da boa vizinhança, que desejava enfatizar uma visão paradisíaca do Brasil. O que deveria ser um documentário turístico, com a imagem de um país exótico e alegre, transmitido no exterior pela atriz e cantora Carmem Miranda e pelos desenhos animados do Zé Carioca, havia se transformado num libelo social, mostrando o lado real do Brasil, pela câmara de Orson Welles. 

A Tragédia que tirou a vida de Jacaré 

Em 19 de maio de 1942, durante as filmagens na praia do Juá no Rio, aconteceu o acidente. A mesma jangada usada na viagem ao Rio de Janeiro foi atingida por uma forte onda, e virou, num dia de mar revolto, jogando os quatro homens na água. Jacaré submergiu, voltou à tona, pediu socorro, nadou desorientado mar adentro e desapareceu. Seu corpo nunca foi encontrado. Muitas lendas e especulações surgiram com a morte do jangadeiro. Nenhum amigo próximo acreditava que o mar pudesse vencer Jacaré: era tempo de pesada censura e ele falava demais, daí ficou a suspeita de que o acidente pudesse ter sido provocado.
 
fontes:
Ideal Clube - história de uma sociedade, de Vanius Meton Gadelha Vieira
fotos do Arquivo Nirez e do site Skyscrapercity.com